quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Evocação da floresta


Lavadeiras na Frequesia do Andirá

Vendo a tarde cair agora, o sol baixando por trás do Corcovado, raios saindo das mãos do Redentor em silhueta, evocou, talvez mais pelo calor do que pela luz, o entardecer em Barreirinha, no estado do Amazonas, no coração da floresta. Estive lá a última vez em 1992. A cidade tinha duas ruas principais: uma margeava o barrento Paraná do Ramos, extenso tributário do Amazonas, marcando a entrada da cidade. A outra cortava Barreirinha inteira, ligando a frente ao fundo, onde um porto improvisado dava caminho ao sinuoso igarapé do Pucu, que liga a cidade ao rio Andirá, rio de muita fundura e volume d'água. Não se enxergam as margens quando se está no meio do Andirá (que significa morcego na língua dos maués). Nas tempestades, que os ribeirinhos chamam de banzeiro, o melhor é encostar o barco até passar.


Curumim maué na aldeia Mocorongo, na cabeceira do Andirá, um dia e meio de barco desde Barreirinha

Foi ao atravessar pela primeira vez o Pucu e depois o Andirá que vivi uma das muitas experiências de medo e susto nessa viagem. Ao atravessar o rio de voadeira (uma canoa comum com motor na popa) vi muitos jacarés mergulhando dos barrancos, onde tomavam banho de sol, assustados com o barulho do motor. Jacaré com medo, tudo bem, mas as sucuris e sucurijus, de até 16 metros, perseguem pequenas embarcações e canoas, segundo relatos. Isso dá uma dimensão da pequenez humana diante da natureza. Ver o caboclo que guia a canoa preocupado, não é um bom sinal. E os cinco passageiros restantes ficaram em silêncio, acompanhando atentamente cada manobra, os olhos na água negra transparente. Mas atravessamos bem até a Freguesia do Andirá e ainda fizemos tambaqui na brasa na Ponta da Safadeza, uma praia escondida, onde os casais gostam de visitar...


Crianças da Freguesia do Andirá

Soube outro dia que, com a cheia histórica deste ano (agora o rio está na máxima da seca e o igarapé do Pucu virou uma estrada), 40% da população perdeu as casas e tiveram que deixar Barreirinha. Houve um êxodo da cidade, fruto do aquecimento global, que está derretendo as geleiras dos Andes, que alimentam a bacia do Amazonas. O volume de água é cada vez mais caudaloso e cada período de chuvas torrenciais, que os ribeirinhos chamam de inverno (embora continue fazendo o mesmo calor de sempre), tem trazido recordes de cheia.


Peixeiro mostra os tambaquis no mercado de Manaus

Naqueles idos de 92, havia em Barreirinha um certo sortilégio no momento de transição entre o dia e a noite. Às seis da tarde, com as rádios sintonizadas na Ave Maria, como um ritual diário de devoção e proteção cósmica, a rua era tomada por levas de pessoas ido e vindo. Adolescentes e crianças com uniformes escolares, gritando, rindo, fazendo algazarras típicas da infância. Um bando de curumins e cunhatãs, olhando os "estrangeiros", como eu, e rindo, rindo de se acabar, com as mãozinhas tapando as bocas para tentat em vão conter as gargalhadas. Os adultos, apenas sorrindo, como se soubessem a piada, mas por etiqueta seguravam a onda. A piada éramos nós, com nossas roupas diferentes, máquinas fotográficas, o ar sofrido com o calor: "lá vão os italianos", diziam. "De que riem os índios?", não foi o que indagou Pierre Clastres em um ensaio antropológico muito profundo sobre os índios brasileiros? Recomendo a leitura.


Motor de linha Comandante Jardeson desembarca em Barreirinha

Na procissão de gente, pescadores com seus cestos cheios, o bafo da cachaça se antecipa aos bêbados, que cruzam a única rua em ziguezague. Os homens bebem quantidades industriais de cachaça e cerveja. O pé-sujo do mercado de peixe vive apinhado, ao lado do cais principal de Barreirinha. Mas o que me chamou mesmo a atenção foram as janelas das casinhas de madeira, sempre lotadas de pessoas acompanhando o movimento. Cada pessoa ali tem nome e todos se conhecem. Os afetos e os desafetos são públicos, como em qualquer povoado, em qualquer interior do mundo. Barreirinha é a típica gemeinschaft, do Tönnies.


Meninas no banho de igarap: hormônios em alta, flertes e um desespero para casar

É tudo isso que me vem de ver, agora, no Rio de Janeiro metrópole, o sol se esconder aos poucos. A saudade é um encantamento poderoso, que me transporta imediatamente para aquele universo distante no tempo e no espaço. Desfaz a barreira entre a metrópole e a comunidade, e eu me vejo caminhando ao lado do poeta Thiago de Mello na rua principal de Barreirinha, o povoado mais perdido do planeta, onde ele nasceu e decidiu viver ao voltar do exílio. Ele é uma presença, todo de branco, o ar severo e terno ao mesmo tempo, o passo firme. "Salve, poeta!", diziam alguns, naquele 92, se me lembro bem. Outros pediam conselhos, quase sempre sobre problemas de saúde: "Óleo de copaíba e muita ternura", receitava o poeta, que gostava muito da caminhada da tarde, de sua, hoje, ex-casa, o Porantim do Bom Socorro, até o cais para ver o pôr-do-sol no Paraná do Ramos. Na volta, comprávamos os arremates finais para o jantar, uma ceia repleta de poesia e histórias. Saudade.


Thiago ao violão, no Rio este ano

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Tirando o atraso


Morro da Conceição, a caminho da rua do Jogo da Bola

Amigos, nesses dias que passaram desde meados de novembro, mergulhei numa série de tarefas que exigiram minha atenção apaixonada, como a resenha sobre o trabalho de Soraya sobre a Vila Mimosa e algumas traduções que estou realmente desfrutando fazer, apesar do trabalho hercúleo. Com isso, a freqüência aqui andou meio frouxa e agora trago algumas notas de coisas que rolaram recentemente.


Imediações da Gamboa com a Ponte ao fundo, vistas do Morro da Conceição

Como vocês sabem, em meados de novembro, chegaram ao Rio vários cineastas africanos e latino-americanos para participar do III Encontro de Cinema Negro, produzido pelo Zózimo Bulbul. Entre os vários diretores presentes, Idriss Diabaté é um amigo de uma amiga que habite à Paris e que deu meu telefone. Ele participou do festival com o filme La femme que porte l'Afrique. Trata-se de um griot de 60 e poucos anos e uma alma curiosa da humanidade. Fiz um tour com ele e outros dois diretores, Cheik Camara (Guiné) e Missa Hebié (Burkina Faso), pelo Centro do Rio, mostrando nossa cidade, o Morro da Conceição, o cemitério dos pretos novos, a Pedra do Sal, a Praça Mauá, a Candelária, a marca das criança assassinadas, o CCBB, a livraria Folha Seca, de meu amigo Rodrigo Ferrari, o Digão, o Arco Telles, o Paço, o Buraco do Lume, a Carioca, Cinelândia e coisa e tal. Acho que Andrea Canto ia gostar do passeio. Trocamos muitas idéias sobre essa coisa da mistura brasileira. E no fim, o Idriss me presentiou com dois filmes dele: Stinka: Revolte du coeur e Le do que danse.


Da esquerda para a direita: Cheik Camara, Idriss Diabaté e Missa Hebié

Na seqüência, tive uns bons momentos com Mila Chaseliov no Bar Rebouças, onde estamos discutindo seu projeto de pós-graduação. A idéia é um mergulho na antropologia urbana, comparando as boemias (e formas de sociabilidade) entre Tel'aviv e Rio de Janeiro. A primeira uma cidade que recebe imigrantes de todo o mundo, unidos pela identidade judia, mas que no espaço urbano da noite não se misturam. Já aqui, todos sabemos bem como é. Esse encontros com Mila acabaram num almoço-jantar na casa de Nelson Pereira dos Santos, que nos preparou um nhoque da fortuna e nos regalamos com histórias sensacionais. O Nelson é uma cabeça lúcida no meio dessa desconstrução toda...


Mila Chaseliov no Rebouças: modéstia a parte, sou bom de portrait. Essa foto foi feita com a merda da câmara do celular, só dois megapixels

Vale mencionar que o Rebouças anda sensacional. Com suas mesinhas na calçada, a singeleza do pé-sujo autêntico, a simpatia do dono, seu Alberto e o garçom Jorginho. Morei naquela esquina uns meses da minha adolescência. Período difícil, ditadura, dureza e coisa e tal. Agora, quando me sento na calçada do Rebouças, vendo novas gerações por ali, me sinto feliz por ter sobrevivido. Ainda mais que ampola vem sempre mofada e a Mila convenceu a casa a comprar a Heineken, uma excelente cerveja na garrafa de 600ml.


O Bar Rebouças, com seu Alberto no fundo...

Já o aniversário de meu mano Zé Octávio foi comemorado no Bar do Serafim, onde fizemos uma homenagem ao Juca Ribeiro. Na hora do brinde, a rapaziada atrás do balcão ficou com os olhos marejados. Foi bonito.


Zé Octávio e Noelli, e o Serafim já com as portas já arriadas

Daí teve o lançamento do Rio Botequim. Não vou tecer comentários sobre o livro, mas quero registrar o choro emocionado da Stela, do Villarino, ao receber seu diploma e o desabafo: "Poucos sabem o duro que é atrás do balcão. Por isso fico feliz com a homenagem." Eu gosto muito de Stela, do Vilarino, seu Antonio e da história que aquele lugar carrega. No evento, Kátia, do Aconchego Carioca, me apresentou ao Claude Troisgros, que foi extremamente simples e simpático. Tivemos uma interessante conversa sobre botequim e cafés parisienses.

E, no último fim de semana, com a final do hexacampeonato do Mengão, fui ao Aconchego, ao Petit Paulette e segui para o Salvação, já pra lá de Marrakesh... Encontrei meus queridos Fraguinha e Digão no primeiro bar e a cerveja desceu direto em estômago vazio. Valeu a pena.


Alfredinho, Marcelo Moutinho e outros amigos no Bip, na madrugada de ontem para hoje

E, por fim, ontem, fui ao Lamas para o lançamento do livro do Alexei Bueno. Aproveitei para comer um picadinho do Chico, receita do Rufino, da Adega da Velha, que não está no cardápio. Lá encontrei o poeta e ator Emanuel Cavalcanti, que quer organizar um evento para o Manduka ano que vem. Também estava lá Marcelo Moutinho, com quem parti para outro lançamento de livro. Dessa vez no Bip-Bip. Trata-se do livro organizado pelo Luís Pimentel, Contos e causos de futebol, com Armando Nogueira, Aldir Blanc, Nani, e outros cobras.

Mas bom mesmo foi reencontrar a figura maravilhosa do Alfredinho. Enchemos a lata até as duas e tantas da madrugada. Para uma segunda-feira, até que não está mal.