quinta-feira, 23 de julho de 2009

Fina estampa



Querida amiga, gosto mesmo é daquele teu vestido amarelo que cai, preguiçoso, cheio de florzinhas, primaveril, que te veste com ares de Rosinha, quintal e verde. Gosto sobretudo porque te põe onde não andas jamais. Tu, que de Rosinha não tens nada, que acendes labaredas de dragões adormecidos, e perambulas nas esquinas mais cinzas da cidade, às vezes vestes o pano que empresta singeleza à tua figura. E me encho de graça ao perceber o contraste, por conhecer a força que o tecido esconde... num zás de encantamento te transformas. Florzinha, Rosinha... até que um canto de sorriso perverso aflora, quase imperceptível no início, e ages, transformando tudo e aqueles, como eu, que te acercam. Para sempre. Por isso, não esqueço que um dia veio um vento justo quando caminhavas para encontrar-me. Ver-te emergir do vestido inflado no sopro indecente, inflou-me igualmente para além do céu profundo.

sábado, 18 de julho de 2009

Cantiga de um quase atropelo



Querida amiga, a grande avenida se estendia muito além dos meus passos, a luz baixa do sol incendiava os olhos e a cabeça seguia longe, um tanto letárgica pelo mormaço. O calor afetava o cerebelo e me doíam os ossos ao pisar o chão. Por onde andaria você? Me perguntava entre as muitas coisas que me queimavam o peito. Nunca mais tivera notícias desde aquele adeus chuvoso, muitos invernos atrás, numa esquina de idioma estrangeiro, para lá dos trópicos. De repente, num cruzamento, o sinal fechando, respondo instintivamente à buzina. O chamado era para mim e nosso era o carro. O velho guerreiro de estradas esquecidas, que compartilhamos naquele tempo transformado em mais-que-perfeito pelo sortilégio da memória. Sincronicidade, pensei sem pensar, já atravessando a rua em sua direção, sorriso de ponta a ponta. Mas estanquei com o assovio da freada brusca do outro carro que vinha apressado, animal japonês de todas as tecnologias, para ocupar o espaço vazio entre a calçada e o nosso velho jipe, parado na faixa do meio, preguiçoso. Foi por pouco, amiga. E, no fim, só o triz de um susto e a constatação de que não era, afinal, você ao volante. E, enquanto o japonês me xingava a desatenção, percebia: tampouco era o nosso velho carro. Nem sequer sincronicidade; apenas desejo e fantasia. O alguém que agora estava atrás do volante eu conhecera outro dia. Me dizia, assustada, cuidado! E eu concordava, constrangido. Certamente não valeria a pena ser atropelado pela saudade.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Do fundo do baú (2)



Pois é, amigos. Continuo na minha incursão pelo tempo e a memória através de negativos e cromos (slides) dos meus tempos de repórter-fotográfico no início de carreira. Me deparei com essas do mano Caetano, tiradas em sua casa em 1988. Era um trabalho freelancer para um jornal de Petrópolis. Na época, Caetano não estava falando com a imprensa fluminense depois de uma polêmica que já nem me lembro qual era. Ele vivia no Leblon, na esquina da General Urquiza, e nós chegamos em sua casa lá pelas 5 da tarde, a hora que ele costumava acordar e as fotos foram feitas assim, com ele mal saído da sesta.



Batemos um papo muito interessante sobre música. Naquele então, Caetano não era essa unânimidade de hoje e nem tinha a mídia a seu serviço. Hoje, tudo o que ele faz é registrado como um acontecimento, os mais comezinhos jabás são transformados em grandes reportagens para um público ávido por notícias sobre celebridades e faits divers sensacionalistas. Mesmo assim, considero sua trajetória importante para se entender um certo processo cultural brasileiro que dialoga com certas tradições, inclusive tradições antagônicas entre si, como o Cinema Novo e o Cinema Marginal, por exemplo. O tropicalismo do Caetano é politicamente populista nesse sentido específico: de uma força que dialoga com tudo o que se considera interessante e relevante.

O tropicalismo de Caetano vai aos modernistas, à geração de 45, com João Cabral do Melo Neto, ao concretismo dos irmãos Campos e Pignatari; vai a Glauber, a Sganzerla; dialoga com Zé Celso e tudo de novo que aparece. Com isso, ele reforça o princípio cultural da antropofagia, de deglutir tudo o que há de interessante para recriar, a seu próprio modo, essas coisas todas. Uma certa e eterna liberdade criadora que se alimenta dos outros.



Alguns anos mais tarde, por volta de 1996, fotografei também para uma entrevista a Vera Zimmerman, a Vera Gata da canção de Caetano. Como ele, ela também estava acabando de despertar em sua casa iluminada pela manhã de um dia de semana, no alto de Santa Teresa. Na época, gostava de buscar esses caminhos alternativos ao fazer portraits: sem maquiagem e sem iluminação artificial. Acreditava que me daria uma linguagem e um estilo próprios nos retratos, deixando as sombras duras e o contraste forte.

sábado, 4 de julho de 2009

Mexendo no fundo do baú


Eu e Clarissa, foto retirada do fundo do baú

Amigos, depois de duas décadas fotografando com negativo e slides, acabei formando sem querer um acervo que registra não apenas minha história pessoal, mas um período — entre meados dos anos 80 e fim dos 90 — em que muita coisa aconteceu. A luta pela democratização (Diretas Já, eleição do Tancredo, por exemplo), minhas viagens pela Amazônia, Cuba, Nicarágua, França... e sobretudo as pessoas que passaram por minha vida.

Em dezembro, comprei um scanner de negativo e comecei, lenta e preguiçosamente — ou como diria o Umberto Eco na sua erudição, delectatio morosa, a arte de demorar-se nas coisas (sobretudo no amor) para melhor degustá-las —, a digitalizar essas imagens, que estavam guardadas, organizadamente em arquivos etiquetados, dentro de caixas de papelão. A cada envelope de negativo que abro, uma história se descortina e a memória é assaltada com a "nitidez perversa da saudade", como diria García Marquez. Sobretudo por pessoas que foram embora para sempre ou que passaram fugidiamente pela minha vida, como Clarissa Alcântara, uma gaúcha, escritora sensível, com quem vivi intensos dez dias em novembro de 1988, no Rio. Depois, duas ou três cartas, um livro de presente e nunca mais notícias.


Maureen com um menina nicaraguense no colo

A mesma história, meses antes, no mesmo ano, na Nicarágua, com Maureen Moore, uma atriz americana que quis conhecer a revolução sandinista naquele então. Nos encontramos em Manágua e, de lá, viajamos de carona por mais oito cidades do país, entre as quais, Granada, Matagalpa, Juigalpa, Masaya, Pochomil... visitamos lagos, vulcões e sobretudo feiras e mercados, onde, em qualquer lugar do mundo, se conhece a alma de uma cidade (aliás, abro um parêntesis para mencionar os relatos e as fotos de meu amigo Bruno Ribeiro, que esteve na gelada Filândia, e registrou entre outras coisas o mercado de peixe, vejam aqui). Depois disso, eu e Maureen trocamos meia dúzia de cartas (naquele então não existia e-mail) e, enfim, perdemos contato para sempre. Fica a saudade, agora reacendida pelas fotos tiradas do fundo do baú.

Bem, pelo menos fica a saudade.