domingo, 25 de julho de 2010

Fluido como água


Alguns escritores são muito felizes na construção de sua narrativa, lapidando as palavras com cuidado, a ponto de evitar excessos pernósticos, mas também sem nos deixar morrer de sede por escassez de uma lírica mínima. Nas coisas que escrevo é este equilíbrio que se mostra o mais difícil de obter. Depois que a idéia cai no papel, ou na tela do computador, é um duro trabalho de enxugamento buscando esse balanço delicado. E, no fim, nunca estou certo se consegui ou não. Por isso, gosto muito de alguns escritores, hoje clássicos, mas também da nova safra, como se diz.

Há exato um ano comprei o Dicionário amoroso da língua portuguesa, e só hoje comecei a ler. Trata-se de um projeto de meu amigo Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá, editado pela Casa da Palavra. A idéia de ambos foi reunir 35 escritores de países onde se fala e se escreve o português, propondo a eles que escrevessem um conto em torno de uma palavra-chave central, que se tornaria então um dos verbetes do Dicionário. Entre os escritores estão feras como Antônio Torres, Bruna Lombardi e Alexei Bueno. Também profissionais das letras de Angola, Moçambique, Portugal e Timor Leste.

Mas queria falar um pouco sobre o conto que abre o livro, justamente o de Moutinho, inaugurando o dicionário com o verbete água. É um conto brevíssimo, sobre o amor entre pai e filho, expresso num banho. O tema do envelhecimento, do constrangimento que as perdas das habilidades físicas traz, são narrados de forma fulminante e fluida, como sugere o verbete. A vida escorre no banho, e, apesar de todo o afeto, expresso, por exemplo, um dolorido "obrigado", não se sai limpo e leve ao fim do banho. A água e o banho como metáforas do ciclo da vida se insinuam na narrativa direta sobre a inversão da relação entre pai e filho e a estranheza que essa troca de papéis provoca, combinando um efeito singular e raro. Água é o conto de um grande escritor.

Lembrei-me da participação de Moutinho no Projeto MaPa, que reunia no palco do saudoso Cinemathèque escritores e músicos. Na sua apresentação, ele levou a platéia a um passeio sideral com suas palavras, do mesmo modo como nos guia agora no verbete que lhe coube no Dicionário amoroso.

Moutinho vem de uma geração pródiga em bons escritores, com suas marcas, características e defeitos. Conversava semana passada sobre isso com o poeta Thiago de Mello, que apesar dos elogios rasgados aos escritores da safra atual, reclama da sua imprecisão gramatical ("É preciso dominar o idioma", disse ele). Quanto a mim, não gosto de uma certa mistura da narrativa jornalística com o texto literário. Problemas, diga-se de passagem, que Moutinho não tem. Apesar de ser jornalista por formação, o texto literário de Moutinho não tem o defeito de soar como uma reportagem. Isso é um sinal de maturidade literária. E é maturidade que encontro no conto Água.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Adeus a Paulo Moura


Nesses dias de abundância de informação, soube com "atraso" da morte de Paulo Moura, vitima de câncer. Taí uma notícia que não queria ler ou saber, mas é ligar o computador e ser bombardeado pelo mundo. Um saxofonista criativo e um virtuose do clarinete, Paulinho lançou nos idos dos anos 1970 um disco ainda hoje futurista: Confusão urbana, suburbana e rural e inspirou gerações e gerações de músicos brasileiros, tornando-se uma referência.

Imediatamente, ao ler a notícia de sua morte, me lembrei da parceria entre ele e meu pai, o músico Gaudêncio Thiago de Mello. O velho, tendo migrado para Nova York em 1966, estava gravando seu primeiro disco em 1972, com uma constelação de músicos extraordinários, como o compositor e pianista Dom Salvador, o trompetista Claudio Roditi, o pianista Richard Kimball, entre outros. Recomendado por um amigo em comum, Paulo, de passagem por Nova York, procurou meu pai e imediatamente foi integrado ao time.

Anos e anos mais tarde, o disco, de selo independente, foi relançado em CD com co-produção de Arnaldo De Souteiro (reproduzo a capa acima), rebatizado como Amazon, o nome da banda do velho, que durante anos incendiou a noite de sábado do Sweet Basil. Também tocou no Village Gate e no Jazzmania. Está lá o sopro de Paulo Moura. Na foto abaixo (borrada pela pouca luz), um reencontro entre os dois no bistrô da Modern Sound, há dois ou três anos.

domingo, 11 de julho de 2010

A terceira margem do sonho


Então você veio assombrar meu sono mais uma vez... Eu, que já a tinha perdido no fundo da memória, a ponto de esquecer seu nome, me vi assaltado no meio da noite, levado por suas mãos novamente àquele mundo que se dissolve em sensações. E mesmo no plano onírico você tecia os enredos de sua alma, colocando-se quase ao alcance de meu abraço. Sempre pronta para ir embora... aeroportos, o mundo de lá... Mas no sonho seus olhos tinham brilhos cintilantes. Não a dureza cinza e opaca que se fixou em mim na despedida remota. A frieza inerte do gesto que não se fez. No sonho você era o avesso, travessa e feliz... Me deixou roubar o beijo, antes de embarcar, e sentiu a mão que passeava por seus poros arrepiados... Confusa, duvidou do próprio destino. O navio apitava e já não sabia se devia embarcar. Olhava-me inquirindo. Via o mundo pela primeira vez com meus olhos, lá da margem, de onde acenava comigo o chapéu do adeus e dizia: quero ficar. E o abraço se completou enquanto se punha o sol. Assim, atravessamos o entardecer do sonho em silêncio, ouvindo a música do vento, sentido o calor morrer em cores quentes no horizonte... Éramos nós agora na proa rumo ao mundo novo. Mas enquanto o dia morria no sonho, a luz nascia no mundo real, trazendo a cidade em seus ruídos indiferentes. Despertei então e me vi esparramado, ofegante, teso e só. Tão vívida fora sua presença... Abriu todos os meus baús e o quarto se encheu de fantasmas.

Último pitaco da Copa 2010

Bem, com a merecida vitória da Espanha, a Copa acabou não saindo muito cara para o Brasil. A fúria tem, enfim, seu primeiro título e o escrete canarinho permanece como única seleção pentacampeã. A Itália, que poderia igualar o feito, dançou na primeira fase. E Alemanha, que poderia encostar, com um tetra, dançou para a Espanha. E a Argentina, que chegaria ao tri, mas aqui na nossa vizinhança, também dançou, e bem.

Agora, observando o nível da final, vê-se nitidamente que se o Brasil tivesse ousado, lavando um time criativo e jovem, para compor com os craques que foram escalados, não sei não... E ninguém saberá. Optamos por um time retranqueiro e dependente ao extremo de alguns jogadores que não estavam em sua forma física ideal. Pagamos o preço. Não estou chutando cachorro morto, porque fiz essas críticas aqui, antes mesmo do início da Copa.

Foi uma final emocionante apenas por ser final, porque o futebol em si deixou muito a desejar. A Espanha dominou e a Holanda ameaçou nos contra-ataques. Mas o futebol foi feio, os jogadores sem domínio da bola, sem conseguir concluir com chutes a gol. Jogo atravancado, de faltas. Enfim, o típico futebol sem talento que parte para cima, de um lado, versus o retranqueiro, do outro.

Pelo menos não se fez uma injustiça histórica, com uma vitória da Holanda na África do Sul. A Holanda colonizou a África do Sul e inventou o sistema do apartheid. Seria ruim vencer justo ali.

sábado, 3 de julho de 2010

Dois pitacos sobre a Copa antes das semifinais

Se a Alemanha levar a Copa, será com justiça. Estou torcendo agora para o Uruguai, para manter o título entre os sul-americanos. Por outro lado, Espanha nunca venceu uma Copa, isso manteria as outras seleções ainda longe do desempenho do Brasil. A Alemanha será tetra, se vencer na África do Sul, como todos sabemos.

Ontem até esbocei uma simpatia pelo time de Maradona, após a eliminação do Brasil, mas ouvi na CBN que em Buenos Aires os portenhos comemoraram a derrota do escrete canarinho como se fosse uma vitória argentina... Tomei então a decisão de torcer pela Alamanha e secar o time de Maradona. Deu certo. Um chocolate de 4 a 0. Somos, afinal, latino-americanos, filhos do continente América e nos devoramos mutuamente em respeito e desdém. Os europeus, com sua civilização triste, torcem por uma vitória do continente.

Quanto à derrota do Brasil, não vou chutar cachorro morto. O que tinha a dizer, disse aqui antes do início da Copa. Mas temos que tirar o que há de positivo nisso: o fim do futebol pragmático e de resultados, o fim da era Dunga. Assim, como em 82, a pior derrata brasileira foi dar vez a essa lógica norte-americana do vencer ou vencer, de qualquer jeito, na retranca, nos pênaltis... agora, talvez os dirigentes entendam que se quiserem que o Brasil ganhe qualquer coisa, o melhor caminho será seguir aquilo que ele tem de melhor: a criatividade, o sensacoinal, o fora de série.