terça-feira, 26 de outubro de 2010

Folias metafísicas de Geraldo E. Carneiro


Foi pelas letras para as canções da Barca do Sol, grupo emblemático em que seu irmão era um dos compositores, e as sofisticadas composições de Egberto Gismonti, em cujos LPs vinham encartados um jornalzinho literário, que cheguei ao texto de Geraldo Carneiro. Na ocasião, no que me pareceu ser uma fina gozação com os poetas britânicos, assinava seus versos como Geraldo E. Carneiro. Desde a primeira leitura foi um impacto. Me recordo de expressões como “terroso”, entre outros termos viscosos e densos, assim como sua forma de narrar a sensualidade feminina. Era tão próximo, tão perto de mim, que me dava a sensação de que o poeta roubava, através de um mecanismo patafísico qualquer, minha verve. Geraldinho dizia coisas que eu diria e, assim, me deixava sem palavras.

Nem mesmo com Thiago de Mello, mestre querido e orientador de tudo em mim — prosa ou verso — que se transforma em palavra escrita, tive essa sensação de simbiose literária. Ou ainda Manduka, que, inalcançável, apenas me cabe admirar. Mas sendo poeta apenas nas horas vagas e sem competência para criar versos, deixo que Geraldinho Carneiro atue como um parâmetro de qualidade literária para mim. E quando afirmo que me identifico com ele na poesia, quero dizer o tudo que ela carrega: o seu humor peculiaríssimo, muitas vezes autosacaneável, a erudição literária e filosófica, a elegância métrica e, sobretudo, a forma de olhar e ver o mundo.

É engraçado, Geraldo é da mesma geração de Chacal, Ana Cristina César, Waly Salomão, Cacaso, Tavinho Paes, da turma da poesia marginal, geração 70, retratada por Heloisa Buarque de Holanda em 26 poetas hoje. Portanto, uma geração anterior à minha. Eu comecei a rabiscar os primeiros versos na entrada dos anos 80, com a gang da poesia pornô e a feira de poetas independentes da Cinelândia: Mano Mello, Tanussi Cardoso, Kairo Assis Trindade, Eduardo Kac, Claufe Rodrigues, Flavio Nascimento, Lapí, entre outros. No entanto, tenho essa forte impressão, lendo os versos e a prosa de Geraldo, que compartilhamos o mesmo olhar sobre a vida, ou quase. Me indentifico mais com ele do que com os meus contemporâneos.

Comprovo isso mais uma vez ao folhear a edição de seus Poemas reunidos. Ali está uma seleção de sua produção poética desde 1972, ano em que eu entrava definitivamente na adolescência, ao cruzar, no início do verão, com uma morena esguia, (des)vestindo a inédita tanga, nas “dunas do barato”, no Pier de Ipanema. O corpo molhado e quase nu, saindo da água, parecia a imagem de uma deusa que vinha anunciar que o mundo começava naquele instante. Tempo, como escreveu Tavinho Paes numa síntese precisa: “em que as paixões entravam em combustão espontânea, incendiavam a libido das pessoas e a AIDS ainda não era uma ameaça.” Ou seja, quando não havia pecado do lado de baixo do Equador ou, como preferiria o próprio Geraldo: “no subúrbio do Ocidente”.


Os poemas reunidos são uma delícia em vários níveis e me contenho para degustá-lo aos poucos, como convém, exceto nos versos apaixonados, que pedem uma deglutição mais voraz. Vejam, a guisa de exemplo, os versos desse poema chamado Os fogos da fala:

a fala aflora à flor da boca
às vezes como fogos de artifício
fulguração contra os terrores do silêncio
só espada espavento espelho
ou pedra ficção arremessada
ou canção pra cantar as graças
as virilhas as maravilhas da amada
a deusa idolatrada do amor:
essa outra voz quase jazz
que subjaz ventríloqua de si mesma

Ou ainda este À flor da língua:

uma palavra não é uma flor
uma flor é seu perfume e seu emblema
o signo convertido em coisa-imã
imanência em flor: inflorescência
uma flor é uma flor é uma flor
(de onde talvez decorra
o prestígio poético das flores
com seus latins latifoliados
na boca do botânico amador)
a palavra, não: é só florilégio
ficção pura, crime contra a natura
por exemplo, a palavra amor.


Os dois poemas são do livro Folias metafísicas, escritos entre 1993 e 1995, e estão presentes na antologia. Aliás, o livro traz um pertinente prefácio de Nelson Archer, que situa Geraldinho em meio aos poetas de sua geração e posterior, afirmando que, embora dialogue com as linhagens e tradições literárias brasileiras, que fizeram escola nas atuais gerações, Geraldo Carneiro não se filia cegamente a nenhuma delas. Suas influências mais marcantes seriam a de poetas de várias escolas: Bilac, Bandeira e Vinícius. Muito boa companhia.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Três poetas da geração 70


Por uma estranha coincidência, li em seqüência nos últimos dois anos a biografia de Torquato Neto, feita por Toninho Vaz, e a reedição d’Os últimos dias de Paupéria, reorganizado por Vaz em dois volumes, que separam a produção do Nosferatu tropicalista e marginal na coluna Geléia Geral, de seus textos mais íntimos (poemas inéditos, cartas e anotações do período em que ficou internado no sanatório, material que não tinha nas edições anteriores, organizadas por Waly Salomão e Ana Maria Duarte, mulher de Torquato). Em seguida me caiu em mãos, numa edição amorosa do Instituto Moreira Salles, um grande livro ilustrado com textos inéditos e fac-símile dos cadernos de poemas de Ana Cristina César, chamado de Antigos e soltos. Muito generosa, a edição permite vislumbrar um pouco do processo criativo de Ana, bem como sua intensidade emocional. Em alguns momentos é possível vislumbrar como o poema surgiu e como foi sendo trabalhado por Ana até sua forma final.

Vindo dessa leitura incrivelmente densa e ao mesmo tempo pesada, já que os dois poetas se suicidaram ainda jovens (ele com 28, em 1972, e ela, aos 31, em 1983), caí, por puro acaso, na leitura da autobiografia, ou coisa que o valha, de Chacal. Não o terrorista, mas o poeta marginal da geração de Ana, e pródigo agitador cultural, figura maior do “coletivo” (como se dizia nos anos 70) de poetas: Nuvem Cigana, e maestro das estripulias — ou artimanhas como prefere o poeta —, do CEP 20.000, passando por experiências lisérgicas e herbanárias, conforme ditavam os tempos naqueles anos de chumbo, com Asdrúbal trouxe o trombone, Circo Voador, Parque Lage e outras explosões performáticas daqueles dias, pra lá de psicodélicas (não nos esqueçamos da famosa urinada de Tavinho Paes no palco de um teatro de São Paulo, mas isso é assunto para outro post). E sobretudo as produções mambembes de livros de poesia em mimeógrafos, vendidos na noite da boemia, e independentes de editores.

Não posso precisar se meu sentimento foi influenciado pela seqüência de leitura — Torquato, Ana C e Chacal —, uma espécie de relativismo injusto a priori, mas fiquei com a sensação de que Chacal descreve em vez de narrar sua vida. E faço aqui uma referência à oposição que Georg Lukács estabeleceu em seu ensaio Narrar ou descrever?, no clássico livro Ensaios sobre literatura. Segundo ele, descrever nivela todas as coisas no texto, ao passo que narrar hierarquiza, dando densidade psicológica à narrativa. E mostra exemplos concretos apresentando a descrição uma corrida de cavalos em dois romances, Naná, de Émile Zola, e Ana Karenina, de Tolstói. Ao ler as duas passagens, fica bastante claro o que ele quis dizer com essa oposição.

Pois bem, não sou especialista, mas me pareceu que Chacal descreve mais do que narra sua vida no livro. Tanto é assim que a leitura flui como água, com pouca densidade, mesmo em momentos mais dramáticos e cruciais, como seu atropelamento quase fatal em São Paulo, e na descrição de sua queda no Jóquei, após uma noitada intensa com Cazuza no Baixo Gávea. Momentos que, se narrados, nos colocariam quem sabe no coração do poeta, na sua cabeça, do lado de dentro, como ocorre com o livro de Torquato. Talvez esse seja o preço da autobiografia: a dificuldade de um mergulho total no fundo da alma. Provavelmente coisas de superego vigilante.

Fico com a impressão, talvez injusta, admito, que o texto de Chacal tem essa forma descritiva para além das intenções conscientes do autor. Mas pensando bem, é um pouco como sua poesia, e não poderia deixar de ser. Seus versos nunca me pegaram (como também não me pegaram os de Waly Salomão, mas por minha culpa: não soube lê-los), o que não quer dizer muito. Aliás, dessa geração, gosto imensamente de Geraldo Carneiro e, entre os tropicalistas, Capinam, embora goste muito de Torquato também. Mas Capinam é um mestre. Também gosto de muita coisa de Ana C. No caso de Chacal, a leitura da biografia me permitiu descobrir versos dignos. Mas, para saciar meu gosto, tenho que garimpar em sua vasta produção. Aliás, o próprio Chacal escreve: “Para o mundo acadêmico sou um poeta descartável, de poucos recursos e baixo repertório. Para o mundo pop, um poeta, um intelectual, um crânio. E todos têm razão. Menos eu. Menos eu."

Honestidade é a principal virtude do livro, que tem também muitos defeitos, na minha amadora opinião (não estou nem no mundo acadêmico nem no mundo pop, olho Chacal do limbo). O principal defeito é sinalizar com um jantar e oferecer um sanduíche. Há trechos que parecem ter saído no primeiro vômito, sem qualquer lapidação, com repetições e construções pobres. Há muita informação mas pouca densidade narrativa, me pareceu, sobretudo, um texto preguiçoso, em que as situações são descritas friamente, sem circunstâncias. É um texto bem mais informativo do que emocional. Quase um registro enciclopédico da literatura marginal da zona Sul carioca desde os anos 70.

Mas, como informativo, o livro é um mergulho no tempo recente. Eu que sou da geração imediatamente posterior à do poeta, curti ler sobre momentos especiais da vida na cidade. Chacal fala das “dunas do barato”, como Waly Salomão apelidou as dunas do Pier, na praia de Ipanema. E isso me trouxe a minha adolescência, início dos anos 70, quando surgiu a tanga e o amor era livre, mas difícil. Em 1975, o Asdrúbal, com a peça Trate-me leão. “Nós somos jovens...”

Volto a dizer: é um livro honesto. Honesto sobretudo com o que Chacal me parece ser, como poeta e como pessoa. Apesar de minhas opiniões rabugentas e pedantes, o livro me levou a desfrutar melhor a sua letra e mais ainda seu dom de maestro de movimentos cósmicos em torno da poesia, sobretudo a poesia recitada em público. De extrema importância soltar o verbo (lembro-me do poeta Erickson Luna esbravejando seus versos perfeitos no mercado de Recife para um público diverso...), embora não tenha nada contra livros de poesia.

O título do livro, Uma história à margem, com direta referência ao movimento do qual fez parte e ajudou a criar, me lembrou a abertura que Paulinho Pires fez do livro sobre Torquato, a quem situa como um artista “à margem da margem da margem”. Colocado nesta perspectiva, as coisas se encaixam melhor na seqüência de leitura que fiz, pois estabelece um nível de hierarquia entre radicalismos distintos dos três poetas.

E saio convencido de que devo ser mais generoso em minha leitura. Abaixo versos de Chacal:

O outro

só quero
o que não
o qee nunca
o inviável
o impossível

não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível

só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o inaudito

não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível

eu quero
o outro.

sábado, 2 de outubro de 2010

A invenção das marés


Não deixam nunca de me surpreender as marolas que a mídia cultural faz, criando ciclos virtuosos de marés, contra as quais nem é bom pensar em remar. Há coisa de uns dez anos, havia toda uma euforia em torno da poesia de João Cabral de Melo Neto, à revelia do próprio autor, que era tido meio que como um elo racional entre a poesia, digamos, literária propriamente dita e as rebeldias e inovações das vanguardas, notadamente o concretismo. O poeta, nessas narrativas jornalísticas, dava sentido racional a uma identidade literária brasileira, que começava no modernismo e chegava ao presente, no tropicalismo. Cabral foi, nesse período, o poeta aplaudido pela crítica dos cadernos culturais e de literatura, que olhava — e olha — com certo desdém para as linhagens e as tradições que não se vinculavam mais diretamente ao eixo: modernismo, antropofagia, Cabral, concretismo e tropicalismo. Mesmo essa linha do tempo sendo questionável, ela estava na lógica dos argumentos que figuravam no jornalismo cultural.

Passado algum tempo, e os holofotes agora lançam luz sobre a figura de Ferreira Gullar, que acaba de lançar sua antologia completa, participou de gravações de sua poesia, recitando o maravilhoso Poema sujo, entre outras efemérides, que permitiram resgatar o poeta do limbo, também, como em Cabral, à revelia do próprio Gullar. Quando Cabral dominava nas páginas da Ilustrada ou nas citações de Caetano Veloso, entre uma canção e outra, alguns viam Gullar com olhos muito menos generosos naquele então, chegando mesmo a classificá-lo como uma espécie de Judas do concretismo, por ter rejeitado o movimento que ajudara a criar.

Não importa o mérito dessas considerações, isto é, se Gullar ou Cabral são ou não de fato “o cara”, exceto para ressaltar as ondas cíclicas de admiração e ódio de especialistas e críticos (sejam estes jornalistas, acadêmicos ou mesmo escritores) de nossa imprensa “especializada”. O que me faz lamentar mesmo é a falta de generosidade com as manifestações que não estão no fluxo na maré. E considerando-se o momento pós-moderno, ou seja lá como se chama isso que vivemos, e que Tavinho Paes define muito bem quando diz que se trata de uma reafirmação incontrolável de “mais, mais, mais, mais, mais... do mesmo”, isso se torna de fato algo grave.

Em primeiro lugar, há muito pouca informação sobre determinados processos, certas correntes e manifestações individuais ou coletivas. A chamada geração de 45, por exemplo, saco de pancada dos moderninhos de plantão, é desenhada como um movimento amplo a ponto de incluir Gullar como uma de suas referências na poesia. No entanto, também é vista como um movimento que dá passo retrógado em relação ao modernismo, principalmente com respeito à sua segunda geração, pois propõe a volta à técnica literária e uma atenção às regras de linguagem, mesmo que seja para quebrá-las. Dominar as redondilhas e os sonetos, para poder abandoná-los em seguida.

Na prosa, como sempre, tudo é muito mais fácil. Nesse campo, definem a geração de 45 como o texto que abandona os enfoques culturalistas e ideológicos do período precedente, para instaurar um regionalismo, de um lado, ou urbanismo, de outro; mas com aprofundamentos psicológicos e inovações na linguagem. Um movimento para cima, que surfa na onda da redemocratização, do fim da segunda guerra, do desenvolvimento econômico e social de JK. Vêm daí nomes como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, inventando linguagens — regional e urbana —, narrando aspectos psicológicos profundos e intimistas: narrativas em fluxo de consciência, entre outros experimentalismos, colocando o leitor na mente dos protagonistas, entre outras bossas.

Nenhum escritor de prosa da geração de 45, e vamos incluir na lista, marcada pela diversidade, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Lygia Fagundes Telles, Ariano Suassuna, entre muitos outros, enfrenta tanta crítica, quanto os poetas considerados pertencendo ao mesmo movimento. Mesmo levando-se em conta que o “formalismo” dessa geração é, talvez, o que tenha pavimentado a ligação entre o modernismo e as chamadas vanguardas literárias que surgiriam na geração seguinte, nos anos 50, a começar pelo concretismo, mas não apenas ele (não esqueçamos, por exemplo, do Poema Processo).

Mas isso tudo são banalidades quando se olha com o filtro do tempo. Fico feliz que tenham resgatado Gullar do exílio em que se achava, tachado de “poeta engajado” por seu histórico político ou de mais um “parnasiano enrustido”, querendo pôr regras no verso livre. E me pergunto: quantos poetas e escritores não estarão ainda perdidos no limbo, fora do alcance de nossos intelectuais de plantão nas páginas culturais dos jornais. Tenho encontrado algum conforto em páginas de blogs, como o de Antonio Cícero (no link ao lado), Tavinho Paes, entre outros, assim como em revistas literárias digitais. Pode ser que esses espaços, ainda um tanto espalhados e perdidos na imensidão da internet, abram caminhos alternativos à miopia dos que hoje inventam o fluxo da maré.