terça-feira, 23 de novembro de 2010

Visite Botafogo antes que acabe

A velha guarda no Vol au Vent, domingo à tarde.

Mal tinha baixado o post anterior sobre este enclave de Botafogo, delimitado pelas ruas da Passagem, General Polidoro e Álvaro Ramos (clique aqui) e, ao sair do prédio onde moro, na Passagem, esbarro com jovens tremulando bandeiras coloridas e vendedores distribuindo panfletos do condomínio que será erguido à rua Arnaldo Quintela, onde funcionava o prédio da Oi, quase em frente ao bar Vol au Vent. O marketing do panfleto não deixa dúvida sobre o tipo de sonho imobiliário que o empreendimento, chamado Opera de Milano Residenza, está vendendo: “chegou o 3 e 4 quartos que vai deixar Botafogo muito mais elegante e sofisticado”.

É um projeto da João Fortes Engenharia que está sendo comercializado pela Patrimóvel, com imóveis entre 89m2 e 119m2, cujo valor inicial do metro quadrado é de R$ 7.400, ou seja, estamos falando de mais de R$ 650 mil por um apartamento de três quartos, preço impensável há um ano. Mas, segundo a vendedora com quem falei à porta da obra, trata-se de uma pechincha, pois um empreendimento rival na esquina (Solar alguma coisa) está pedindo mais de R$ 8 mil pelo metro quadrado. Nessa realidade de preço, chego à conclusão que o valor de R$ 1,5 milhão proposto ao dono do Vol au Vent não é nada. Como as novas construções do bairro, o condomínio oferece salão de jogos, churrasqueira com forno de pizza, área de repouso com SPA, sala de brinquedos para crianças, sauna a vapor e uma imensa piscina. Elementos que, segundo a ideologia que movimenta tudo isso, vai melhorar e sofisticar o bairro.

O panfleto do Opera di Milano: exclusividade e sofisticação

O que temos aí, portanto, é o choque de mentalidades diferentes que se digladiam em torno do território, esbarrando-se nas esquinas. E o que tenho visto em Botafogo, simplificando perigosamente o raciocínio, são visões de mundo que valorizam, de um lado, uma idéia de “autenticidade”, presente nos moradores mais antigos, e, de outro, uma noção de “exclusividade” e “sofisticação”, presente no marketing de imobiliárias e construtoras direcionado a um consumidor de renda mais generosa.

Evidentemente, estou simplificando as coisas ao colocá-las nesses pólos. Na verdade, é tudo muito mais complexo, inclusive se formos considerar aspectos de preconceito e discriminação social, políticas de reforma urbana, forças políticas de variadas tendências que disputam o espaço público e os territórios da cidade, o problema das ocupações, favelização, remoções etc e tal. Mas ao conversar com esses moradores, novos e antigos, do bairro, percebe-se o encontro e o desencontro de noções do mundo distintas no que se refere a habitar e a conviver: enquanto uns valorizam uma idéia de “autenticidade”, outros pensam em “exclusividade”.

Sem querer ser exageradamente esquemático e fetichista, vejo que nessas conversas está, de um lado, o habitante que busca conforto, status e segurança num condomínio exclusivo (e, se é exclusivo, é diferente do convencional e, portanto, isolado, distante e distinto); e de outro, o morador antigo, que se vê como representante “legítimo” e “autêntico” dos valores culturais do bairro, que participa de sua vida, instituições, festividades e boemia (e, portanto, se sente integrado).

Pode ser a roda de samba espontânea no Bar da Adelina, puxada por Seu Vavá, ou a procissão de Santa Cecília, padroeira de Botafogo, ou ainda o Bloco do Barbas no carnaval, ou simplesmente o comércio de rua. São valores que o morador mais antigo vê, de modo geral, ameaçados ou pelo menos não compartilhados por esse novo vizinho, mais rico e distante, física e socialmente, dele.

O casario da praça Mauro Duarte, com ruas São Manuel e Fernandes Guimarães: na esquina (com toldo verde) funciona o Sabor da Morena

Alguns conflitos evidenciam esse distanciamento. Um condomínio erguido há dois ou três anos na rua Fernandes Guimarães, por exemplo, trouxe moradores que destoam dos vizinhos das vilas e velhos prédios da rua. O samba que ocorria no bar Sabor da Morena foi um dos pontos iniciais de conflito. Algumas reclamações no disque-ruído e o bar acabou autuado pela prefeitura. Por outro lado, no playground do novo prédio, quase que todos os sábados ocorrem festas de aniversário de crianças, com palhaços e música da Xuxa em alto volume, o que, por sua vez, incomoda os moradores da vila ao lado. A diferença é que estes não usam ou não conhecem o recurso de reclamar com o disque-ruído.

Lembro-me sempre da pesquisa de um amigo antropólogo da UFF sobre o ruído. Ele pesquisou as reclamações do disque-ruído, chegando à conclusão que o problema não era o ruído físico em si, o volume de decibéis propriamente dito, mas sim “quem” produzia o barulho. As reclamações eram todas adjetivadas: “uma macumba infernal”, “um samba de malandros”, “um funk de bandidos”, “um culto pentecostal” e assim por diante. Dependendo de quem fazia o barulho, o delito era mais ou menos tolerável. Talvez, se na Morena, em vez samba, rolasse um jazz...

De qualquer modo, esses conflitos entre vizinhos têm um lado bom Significa que ainda há diversidade no bairro. Isto é, que diferentes tipos de noções de cidadania, de usos dos espaços públicos e de civilidades convivem e às vezes se chocam. A convivência de diferenças é que torna um lugar vivo. Basta ver o exemplo do Greenwich Village, em Nova York, tão bem retratado por Jane Jacobs, no livro Morte e vida de grandes cidades. O Village foi um bairro interessante, dinâmico, abrigando gente rica e operários, músicos, artistas e escritores e comerciantes, negros e latinos, entre outros grupos sociais. Foram os conflitos dessa convivência rica que marcaram a dinâmica do bairro. Com tantas diferenças, o espaço público acabou preservado como o espaço de todos (aqui, se tem, por exemplo, o carro que estaciona ocupando toda a calçada, ou o condomínio que privatiza a rua com cancelas e segurança)

Quando o aburguesamento — ou gentrification, como preferem os britânicos e americanos — tomou conta do Village, os moradores antigos, sem condições de arcar com o novo custo de vida estratosférico, se deslocaram para outras áreas de Nova York, como o Brooklyn, e o Village virou um lugar caro e sem a vida interessante que tinha antes. Mais um arremedo estiloso e marqueteiro do que fora dos anos 20 aos 80. Um pouco como o Leblon dos anos 60-70.

Botafogo tem uma vocação para ser um bairro dinâmico. Cinemas, bares, comércio de rua (e shoppings também) em uma região que faz a ligação entre o Centro e a Zona Sul do Rio. E, ao mesmo tempo, é um bairro de tradição, na boemia, no samba, na vida comunitária (veja a luta dos moradores para criar a Praça Mauro Duarte, que teria virado outro espigão, não fosse a mobilização de vizinhos). Botafogo ainda mantém boa parte do casario antigo, das vilas, dos prédios baixos e uma dinâmica quase interiorana em alguns trechos, como no enclave Passagem-Polidoro-Álvaro Ramos. Mas a velocidade com que novos empreendimentos vêm tomando conta do lugar ameaça esse equilíbrio dinâmico, sustentável e saudável.

Como diz meu amigo Jason Vogel: "Visitem Botafogo antes que acabe."

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Crônica de uma morte anunciada

O Vol au Vent, na Arnaldo Quintela, à frente da vila. Ao lado, o terreno de uma nova obra, após a derrubada do velho casario, e ao fundo um condomínio novo ainda em obras: um retrato do bairro

Como muitos pés-sujos da cidade, o Vol au Vent, apesar do nome chic, é um botequim simples, montado numa casa de rua, à entrada de uma vila na rua Arnaldo Quintela em Botafogo. Trata-se de um balcão simples, de um lado, e duas ou três mesinhas, do outro. Na calçada em frente ao bar, vasos de planta delimitam o território e impedem que um desavisado qualquer estacione seu carro ali. Aos domingos, a velha guarda do bairro freqüenta a casa, em frente à qual é armada uma churrasqueira. É a turma do Bar da Adelina, que, como Deus, descansa no sétimo dia da semana e não abre seu boteco na rua vizinha Rodrigo de Brito.

Essa festa dominical, porém, está com os dias contados. A informação já corre solta entre os convivas: uma construtora ofereceu R$ 1,5 milhão ao dono do singelo botequim, para transformá-lo em pó. O resto da vila já foi vendida, asseguram os fregueses. Em seu lugar subirá mais um condomínio, dos muitos que vem transformando as feições de um dos bairros mais charmosos do Rio. Charme, diga-se de passagem, que atrai as pessoas, enobrece a área, mas que, na sofreguidão com que as construções se sucedem, vai acabar por matar essa sua característica de lugar especial.

Meu amigo, colega de Globo e vizinho no bairro, Jason Vogel, foi quem me apresentou os dois botequins. E sobretudo seus personagens, moradores antigos de Botafogo, como Adelina, Lea, Vera e Seu Vavá, entre outros. Personagens que contam a história do bairro e acompanham com preocupação as grandes modificações que vêm alterando o modo de vida desse enclave de Botafogo, delimitado pelas ruas da Passagem, General Polidoro e Álvaro Ramos. É um trecho antigo, com muitas vilas, prédios baixos sem elevador, praças, esquinas, comércio tradicional de rua e gente que se considera filhos “autênticos” do bairro, participando de suas instituições e manifestações públicas, como o bloco de carnaval, associação, entre outros.

Mas o bairro também vem sendo ocupado por outro tipo de habitante, trazido sobretudo pelas recentes construções de condomínios modernos, gradeados, com as janelas distantes da rua, e moradores com poder aquisitivo maior e hábitos de consumo distintos. Sua presença crescente modifica a chamada morfologia social do bairro. Não apenas porque cada nova edificação significa a destruição de vilas e prédios antigos, mas também porque os novos habitantes não partilham dos mesmos valores comuns. Com eles, começam a chegar também novos tipos de comércio, coiffeurs no lugar de barbeiros, cafés no lugar de botequins, bancos no lugar de oficinas mecânicas, e assim por diante.

Do mesmo modo, os preços dos produtos começam a subir à medida que os comerciantes percebem que estão lidando com um consumidor com maior poder aquisitivo. Os preços dos imóveis, valorizados numa bolha financeira que se alimenta da expansão econômica e de eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, saltam. E com eles, os dos aluguéis também, estimulados ainda pela nova lei do inquilinato. Os condomínios modernos, auto-suficientes, cobram taxas exorbitantes, mas oferecem estrutura de clube, desestimulando a presença do morador na rua. Nessa nova realidade de preços, os moradores de renda mais baixa se vêem pressionados a deixar o bairro.

Em resumo, Botafogo passa por um processo de aburguesamento, como ocorreu com o Leblon nos anos 70, com o impulso de Sergio Dourado, que transformou o bairro de área de classe média baixa em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Eu, que vivi no bairro nos anos 60, me lembro de aviários em plena rua Dias Ferreira, um tipo de comércio impensável hoje em dia. Apesar disso, o Leblon manteve a vida na calçada, graças a sua robusta boemia, consolidada desde os tempos da Bossa Nova, nos anos 50. Do contrário, seria um bairro de ruas vazias.

Não é o caso de Botafogo, onde a lógica dos novos condomínios (a cada semana empresas como a CHL erguem um novo espigão no bairro) é o de moradia defensiva. Isto é, o condomínio fornece o máximo possível de serviços e segurança (dos equipamentos aos profissionais) e estimulam o morador amedrontado a evitar o máximo possível a vida nas calçadas. Em algumas calçadas, transformadas por esse tipo de construção e sem comércio de rua, já é possível constatar o vazio, que, isto sim, torna o local ermo e perigoso.

Quando esse assunto aflora, todos parecem concordar que o processo de ocupação do bairro deveria ser feito com cuidado e não sofregamente, como ocorre hoje, estimulado por todos os motivos citados acima. Mas também há um ar de desalento e desestímulo entre os moradores que se consideram “autênticos” representantes do bairro. O poder público tampouco se manifesta, refém de grandes incorporadoras e imobiliárias que estão financiando parte da reforma urbana da cidade, através de parcerias público-privadas. E ninguém discute o tipo de bairro e cidade que se quer construir. Mais uma vez, a vida de um bairro carioca será determinada pela avalanche de novas construções, sem que se tenha um estudo de impacto, de crescimento sustentável e que preserve o patrimônio físico e simbólico de Botafogo, e que, sobretudo, considere as variadas noções de vida dos moradores.

Enquanto isso, a velha guarda aproveita aos domingos as últimas cervejas geladas do Vol au Vent, antes da chegada dos tratores.

sábado, 13 de novembro de 2010

O samba chegou na primeira hora


Outro dia, chegava em casa vindo do jornal, exausto, a meia-noite já se anunciando, quando no boteco da esquina esbarro com meu querido mano véio Gabriel da Muda, numa mesa repleta de músicos e poetas. Com sua voz de trovão, ele manda:

— Você será o primeiro a ganhar meu CD, que acaba de sair do forno — disse, enquanto me passava o primeiro exemplar de O que vai ficar pelo salão, ainda com cheiro de fábrica, retirado da caixa de papelão onde outras 24 unidades compunham a primeira leva da impressão.

Ele estava ali com os músicos e seu parceiro na poesia das composições, Roberto Didio, celebrando o trabalho. Apresentações feitas, agradeci o presente e o privilégio como pude, oferecendo o CD Disk-Tum-Derrei, do meu pai, Gaudencio Thiago de Mello, que, por coincidência, levava lacrado na mochila. Reciprocidade.

A vida tem dessas sincronicidades bacanas.

Mas o gesto generoso de meu amigo se completou mesmo no dia seguinte, quando, ao tomar café da manhã, botei o CD pra tocar. Que beleza! A música preencheu a casa, numa gravação de altíssima qualidade, os instrumentos presentes na mesma intensidade da poderosa voz de Gabriel, que no CD assina como Gabriel Cavalcante. O disco todo é bom. Tem convidados especiais, como Áurea Martins, Cristina Buarque e Moacyr Luz, que foi quem, aliás, me apresentou ao Gabriel num tarde memorável no Armazém Senado, com Paulinho Lemos, compositor brasileiro radicado na Espanha.

No CD, que mostra o maduro lado compositor de Gabriel, tem ainda uma pérola de Moa e Didio, o Cio e a paz, que, na voz de Gabriel, evocou a mesma emoção que senti ao ouvir pela primeira vez Sinal fechado, de Paulinho da Viola. Ou seja, a nova geração do samba mostra que está aí sem dever nada à velha guarda. Belíssimo trabalho.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Les Demoiselles D'Avignon


Les Demoiselles D’Avignon, de 1906, é considerado um marco do modernismo e o evento que deu início ao cubismo como movimento, mesmo não sendo ele um quadro cubista no sentido estrito. É uma dessas obras que ficam no limbo das conceituações, dando margem a uma miríade de interpretações e alumbramentos. Escapa inclusive à própria intenção do autor, por algum mecanismo que se insinua, vindo do fundo do inconsciente, com uma força que se sobrepõe ao projeto autoral. Porém, mesmo tendo esse percurso incontrolável e selvagem — na verdade, justamente por ser assim — produz um resultado íntegro. Por isso é tão perturbador. O próprio Picasso ficou incomodado com aquela tela de dimensões desproporcionais que tantas reações causou às mentes racionalistas daquele então.

Dizem os especialistas que, iniciada em 1905, sua pintura foi encerrada abruptamente no ano seguinte, deixando o quadro incompleto. Parece que Picasso queria acrescentar dois homens vestidos entre as mulheres nuas, mas desistiu. A tela estava pronta independentemente da vontade do pintor. A obra se impôs na força das mulheres nuas, nos seus rostos distorcidos, no movimento da imagem, em sua luz e cores e na fúria das pinceladas... e se tornou arrebatadora. Imagine uma mente cartesiana e puritana, tão comum naqueles tempos (como hoje, talvez) olhando aquele delírio erótico. Justamente no auge do mundo das certezas, naquele começo de século XX, o raciocínio lógico e moralista seria tão confrontado pela arte moderna, pela psicanálise, pela antropologia, pelo urbanismo, pela arquitetura, pelas revoluções utópicas...

As Demoiselles inauguram um tipo de arte que se presta mais firmemente a esse tipo de ilusionismo da alma. Um traço a mais, uma pincelada um pouco mais forte e lá vem uma imagem que estava escondida no inconsciente do pintor, além ou aquém de sua intenção racional e muito mais do que uma tradução de sua intuição emocional. Talvez, uma questão de soltar a mão e deixar o fluxo do movimento seguir o curso numa semi-consciência. E Picasso foi sábio o suficiente para saber que naquela tela havia algo que surgira para além de sua intenção, algo que mudaria para sempre o fluxo das coisas, como só uma obra de arte pode fazer.

Por isso me incomoda muito a idéia da arte como mero entretenimento. Como algo que existe para nos alegrar e divertir. Uma noção perigosa que anda disseminada hoje em dia em mentes brilhantes, com medo de fugir de padrões de sucesso. Abraham Moles descreve esse gozo do entretenimento como o kitsch, que seria o oposto da arte. O kitsch, ensina ele, não é só a obra cafona, é sobretudo a obra que entretém, que diverte, que esvazia do seu objeto a potência da arte, tornando-a confortável e conformada. Já a obra de arte nem sempre é agradável e bonitinha. Muitas vezes é repulsiva e dolorosa, angustiante e, quase sempre, transformadora. Quem passa por uma obra de arte, seja um romance, um filme ou uma exposição, não sai mais o mesmo que entrou. Alguma coisa interna muda e seu olhar para o mundo também se transforma. Sem que se dê conta. Já o kitsch deixa tudo como está, conforma, confirma.

Quando se fala em vanguarda, e é interessante ler os inúmeros manifestos que surgiram desde o século XX, para mim o que está em jogo é a ruptura com o que havia antes. Uma ruptura é um movimento necessariamente brusco e violento, no mínimo, agressivo. Só possível se ocorrer numa obra de arte ou num ato concreto de violência, como uma revolução. Mas o sistema também aprende a se defender dessas, digamos, convulsões, sobretudo incorporando e esvaziando sua linguagem revolucionária, sua capacidade de mobilização artística e da consciência, através do sentimento, da emoção. E hoje, me parece, vivemos o paroxismo desse processo de absorção e esvaziamento das coisas essenciais, nessa pós-modernidade em que os sentidos se esfacelam, as modas se sucedem velozmente, o kitsch domina, o niilismo impera e a alma se esfarela.

Outro dia assistia ao programa Altas horas, do Serginho Groissman, uma espécie de Chacrinha modernizado para adolescentes, bastante agitado e de múltiplos estímulos. Mas, ao contrário do Chacrinha original, Serginho é bastante educativo e moralista. Havia tanta gente interessante: atrizes, escritores, bandas de rock e pop, convidados curiosos, público participante e tal. Me pareceu um caldeirão (curiosamente o nome de outro programa de TV) em que se jogam todos esses artistas, misturados com depoimentos de especialistas sobre temas morais, como sexo, e outras atrações curiosas. Tudo dissolvido há aí uma poção pop. Se isso tem um lado genial de colocar esses indivíduos num ambiente que se impõe sobre eles, também tem um inegável elemento que dilui e diminui aquelas singularidades artísticas, exceto nos casos de pessoas realmente genais, como um Hermeto Pascoal, por exemplo, que é capaz de subverter o script. Bem, isso é a TV, certo?

Mas as Demoiselles, essas mulheres insinuantes, putas num bordel, estão aí como um lembrete sensual, hoje tão necessário, de que a obra de arte, além de revolucionar a alma das pessoas que entram em contato com ela (a começar pelo artista), também tem o potencial de transformar o mundo. Por isso, a arte, como expressão do inconsciente humano, é potencialmente subversiva frente a qualquer sistema político, a qualquer dogma moral, a qualquer racionalização.