Encontrei-a no elevador de algum prédio, em algum lugar da cidade quando éramos jovens e intermináveis. Chegávamos ou saíamos de uma das festas daquele verão adolescente. Ela cantarolava uma canção d'A Barca do Sol, sorrindo para mim:
Quando a gente se encontrar
Pode ser qualquer dia
Assim como o Manuel
Dono da folia, rei do Bordel
Como o Manuel
Dono da angústia, rei da alegria
Como o Manuel...
Assim, como o Manuel.
Os cabelos longos, a saia hippie, um encontro breve, que escorreu num beijo roubado, e do qual restou um nome, que, às vezes, hoje, nesse outro mundo, nesse outro tempo, ainda rouba meu sono. Como a vida pode ser tão fugaz?
domingo, 29 de julho de 2012
domingo, 15 de julho de 2012
Sonho
Na noite de quarta para quinta-feira passada sonhei que
caminhava por ruelas de uma cidade incomum. Eram ruas tortuosas, sem a lógica
racional do urbanismo modernista, dessas que deixam os transeuntes sem pistas
de onde estão e para onde vão. Ruas labirínticas, como as de cidades medievais,
mas esta do sonho tinha uma ambiência tropical, lembrando uma favela de vielas estreitas
e irracionais, cheias de becos e impasses.
Depois de longo perambular a esmo, reconheci alguns companheiros de copos em botequins de esquinas e tavernas de comida barata. Enfim, cheguei numa residência, maior que as demais. Lá, fui recebido por uma pessoa importante e próxima, que não consigo reconhecer. Um desses personagens oníricos, sem face, mas de profunda intimidade, que me levou a um aposento no segundo andar do que parecia ser um sobrado. Sobre uma mesa, havia uma imensa gaiola dourada, dentro da qual uma majestosa cacatua branca me olhava com ânimo abatido. Estava visivelmente doente.Me aproximei e a enorme ave me fitou atentamente, tranquila; As pálpebras pesando sobre os olhos. Então, lentamente desceu do poleiro, inclinou o corpo e se deitou ao chão, suavemente. Os olhos cerrados. Deu um último suspiro e adormeceu.
terça-feira, 10 de julho de 2012
Drummond, Bandeira e Mario
O poeta Eucanaã Ferraz disse, num programa sobre o
Modernismo brasileiro na GNT se não me engano, que Manuel Bandeira, apesar de
não ter ido à Semana de 22, era uma espécie de poeta-referência dos
modernistas. Eu sempre achei a poesia de Bandeira moderna e maravilhosa. Também
a sua disposição de conversar e trocar com poetas das novas gerações, tornando-se
uma espécie de conselheiro e amigo, misturados. Venho agora de ler um fragmento
de uma entrevista inédita de Carlos Drummond de Andrade, que ficara guardada 28
anos nos arquivos pessoais da pesquisadora Maria Lucia do Pazo, que teve a
fortuna de morar no mesmo prédio da amante de Drummond, Lygia Fernandes, em
Ipanema.
Maria Lucia estava fazendo uma tese sobre o erotismo na
poesia de Drummond e o poeta não apenas deu a entrevista (em 1984), mas chegou
mesmo a procurá-la e propor a ela falar sobre os poemas do seu maravilhoso
livro O amor natural, na época inédito (só foi publicado após a morte do
poeta). Isso é um dado interessante, já que Drummond era tímido, quase recluso,
e não gostava de dar entrevista. Na conversa com a pesquisadora, publicada no
último fim de semana pela Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, Drummond fala de
erotismo, psicanálise e menciona suas influências.
Não há exatamente qualquer informação nova e bombástica, mas
a entrevista mostra a sensibilidade e a inteligência de um poeta que se tornou unanimidade,
a ponto de hoje andar meio desaparecido em sua própria notoriedade: todos sabem
que é bom, mas ninguém mais o lê. Mas não deixo de sentir certo júbilo ao ler
que o poeta aponta Mario de Andrade e Manuel Bandeira como marcos de influência
na sua vida. Porém, de forma distinta. Diz ele: “Através dos modernistas
cheguei a Manuel Bandeira e Mário de Andrade, que foram, realmente, os dois
encontros literários mais importantes de minha vida.”
Mas o interessante é que ele distingue muito bem a
influência de ambos. Com Mario, Drummond traçou o caminho teórico e reflexivo
do ofício da poesia. Mario deu a ele os argumentos propositivos para se
libertar das formas fixas, como já vinha fazendo. Essas formas até então eram uma
espécie de fetiche, que confundia a forma poética com a própria poesia. Instigados
pela poesia de Bandeira, os modernistas destruíram isso e nos libertaram. Já a
influência de Bandeira sobre Drummond é de uma outra ordem. É no plano mesmo da
poesia, e não da forma, da teoria. O poeta mineiro diz na entrevista que “foi o
gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa poesia que me
encantaram”. E, mais adiante, conclui: “A poesia do Mário nunca me influenciou.
A de Bandeira, sim.”
Num longo fragmento de entrevista (infelizmente não sou
assinante da Folha e, assim, não tive acesso à íntegra) dedicada ao erotismo e à
psicanálise (muito pertinente também a crítica a Reich que Drummond faz), no
fim, foram essas confissões de influência que mais me chamaram a atenção. Talvez
porque me identifique com Drummond. A poesia de Bandeira é, talvez, o marco da
poesia modernista brasileira. Bem mais que Mario ou Oswald, tão celebrados nos
tempos que correm. Porém, mais do que “modernista” é poesia de extrema
sensibilidade, delicadeza, mistério e competência. Bandeira era um poeta
completo. Por isso gostei da sacada do Eucanaã Ferraz de levar o poeta carioca ao
programa sobre a Semana de 22.
Visitando meu tio, o poeta Thiago de Mello, no interior da
floresta Amazônica, no início da década de 1990, fui acomodado em uma de suas
bibliotecas da velha casa do Porantim, em Barreirinha (AM). Lá dormi entre
livros raros, correspondência com grandes escritores e obras de arte de valor incalculável. Em
frente a retratos de Zé Lins do Rego, Bandeira, entre outros, uma mesa de
madeira nobre guardava os originais do livro em que o poeta trabalhava naquele
então. Havia ainda partes da tradução de poetas latino-americanos, velho
projeto do Thiago, que só se cumpriu ano passado. Me lembro de ter passado os
olhos em algumas das cartas do seu arquivo. Duas ficaram em minha memória: a de
Neruda, despedindo-se do amigo brasileiro com um poema brincalhão e amoroso, e
outra de Bandeira, na sua intensidade leve. Thiago teve a fortuna de conviver
intimamente com esses dois mestres. Aliás, o Manuel de Manduka é homenagem a
Bandeira, era padrinho do músico.
Encerro com este poema de Drummond, do Amor natural:
A língua lambe
A língua lambe as pétalas
vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua
lavra
certo oculto botão, e vai
tecendo
lépidas variações de leves
ritmos.
E lambe, lambilonga,
lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais
ativa,
atinge o céu do céu, entre
gemidos
entre gritos, balidos, e
rugidos
de leões na floresta,
enfurecidos.
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