sexta-feira, 23 de novembro de 2012

April in NYC




Quando abril chegar
E o sol mudar o arco de sua curva
Talvez não sejas mais
Do que memória e falta.
Dependerá do sonho de vida
Que costuras agora no tecido do dia
Para cobrires tua existência.

Quando abril chegar
Talvez seja tarde demais
E o tempo cumpra os presságios
Que murmuras hoje.
Dependerá da vida que sonhas
A vontade de mudar o arco da curva
Que o sol desenha no espaço.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A lógica do som




Hoje, meu pai colocou um CD do Paulinho da Viola, que por coincidência está tocando esta semana no Carnegie Hall em Nova York, e a voz suave se insinuou pelo apartamento, enquanto lá fora Newark afundava no cinza e no frio. Fiquei pensando nesse universo musical que ronda a vida de certas pessoas como meu pai, como o Paulinho da Viola. A mecânica dos dias, as relações afetivas, a percepção do mundo, enfim tudo o que possa fazer sentido, a cognição mais básica, o afeto provém da música. É um raciocínio musical, em progressão harmônica, em evolução melódica e, sobretudo, rítmica. Figuras como ele são trespassadas por sons e existem em harmonia com eles.

Meu pai gosta de ver TV (esportes e notícias, nessa ordem), mas muitas vezes tira o som do aparelho e coloca uns CDs e se deixa levar pela música diante das imagens mudas. Aquilo me incomodava logo que cheguei aqui, mas percebi que é disso que ele é feito. O que para mim parece caos, para ele está em harmonia porque é a música e não a imagem que comanda a ligação com a realidade. Ele viaja. Eu olho e me preocupo. Penso que ele está triste ou alheio. E ele está a pleno vapor na sua coisa sonora. Na sua musica. De repente, ele se vira e diz algo que só poderia ser dito por alguém lúcido. Me lembra a expressão de Glauber Rocha dizendo para a câmera, numa entrevista, “vocês pensam que sou louco, mas eu sei o que estou fazendo”. Hoje, no café da manhã, ele me disse, num tom de quem descobriu um segredo luminoso, que ontem dormira ouvindo umas sinfonias. E foi assim que adormeceu bem e teve um sono mais confortável do que os dos dias anteriores.

Vê-lo tocar o piano, mesmo que brevemente, nos últimos dias, me encheu de alegria. O portentoso Steinway & Sons ressoou vigorosamente pela casa, a harmonia seguindo uma lógica precisa, dando coerência cromática à linha do baixo, como ele sempre gostou. E o mundo todo também faz sentido. Tudo se encaixa. Não há dissonância, exceto aquelas que dão prazer ao ouvido.

domingo, 11 de novembro de 2012

A vida mínima



Os monstros de vento estão logo ali, à espreita. Devoram a vida à medida que nos aproximamos. A forma de enfrentá-los é viver. Mas não a vida panorâmica, geral. A vida no nível micro, nos minutos, nas coisas em que nos engajamos cotidianamente, sem grandiosidades. Esse foi o erro de Quixote. Projetar a revolução, o heroísmo, o amor. A vida lhe escapou. A loucura o dominou. Foi engolido pelos moinhos de vento, monstros da imaginação. Mas, por outro lado, a vida assim tão mínima, tão microscópica, me parece tão destituída daquilo que nos faz seres extraordinários. Eis o dilema. A questão é, então, como colocar nesse plano micro toda a grandeza do universo, todo o nosso amor e paixão, toda a alegria de respirar, por mais dolorido que seja. Com a morte à esquina, esperando seu momento triunfante, esses momentos ganham um revestimento. Comer ovos com bacon no café da manhã e falar de outro tempo, por exemplo, ou até mesmo sucumbir à televisão e sua hipnose repetitiva... Tudo pode ser grandioso, se há contato, se há troca. E é isso que me dá a certeza de que pior que a morte é a solidão.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Nova York, dia 1




Newark, Nova Jersey, 7.11.2012. Embora hoje seja meu segundo dia, a “sensação térmica”, como se diz por aqui é como se tivesse acabado de chegar. Ontem, foi um dia de espantos, assombros e encontros. Estava insone e completamente chapado pelo cansaço da viagem, preocupado com o que haveria de encontrar por aqui, após a passagem do furacão Sandy, e pelo que virá pela frente, com a previsão de uma nevasca para hoje à noite. Meu fuso horário ainda é o do Rio, três horas à frente. Engraçado, ano passado, quando fui à Paris, quatro horas de diferença, não tive jet lag. Dessa vez senti e ainda sinto o fuso horário, como uma espécie de torpor. A calefação seca o ar e parece que estou ainda no avião, com a boca e o nariz secos. Mas vou me adaptando. Escrevo rápido, sem muito rebuscamento, preocupado com o tempo da bateria do computador. Ainda não tenho tomada que funcione aqui.

Hoje, sim, senti a cidade. Acordei com a expectativa de neve, mas tive uma notícia melhor: a vitória de Obama. Alívio e, por estas bandas, o Nordeste americano, a maioria está contente. Como acontece sempre quando estou em trânsito, fico num estado de alerta sensível nos primeiros dias. Por isso, aproveito para escrever. Faz dez anos que vim à Nova York pela última vez, e estou aproveitando o estranhamento para anotar coisas, que depois desaparecerão na naturalização que se dá com a adaptação à nova realidade. Esse estado é muito intenso. A sensação acordou já no embarque, ainda no Rio. E minha atenção foi se aguçando a cada etapa: embarque, acomodação no assento, decolagem, viagem, aterrissagem, chegada, imigração, malas, alfândega, transporte para a cidade. O primeiro passo no novo solo.

Fui acolhido por Alberto Ocampo. Um taxista colombiano, amigo de meu pai. Foi um luxo. Atravessei do aeroporto JFK para Nova Jersey, passando pelo Brooklyn e fazendo um inventário dos destroços que Sandy deixou. A temperatura? Zero grau. O horizonte de edifícios nova-iorquinos continua lá. Um cartão postal clássico da cidade, como aquela foto acima do Corcovado, em que se vê a Baía de Guanabara; ou os telhados de Paris. A diferença é que aqui e em Paris a luz é cristalina. No Rio, só no outono e no inverno o ar permite uma mesma luz tão limpa. 


Sempre viajo com um romance. Normalmente aquele que está há tempos na cabeceira, mas que, no corre-corre do dia a dia, nunca abri. Trouxe o livro da portuguesa Alexandra Lucas Coelho, chamado E a noite toda (ia trazer o romance do Paulinho Pires, que também tem a ver com meu momento, mas não achei na minha bagunça, na hora de fazer a mala) A história também é marcada por viagens, aeroportos, check points, e um romance polifronteiras, como já vivi também. E os personagens são jornalistas cobrindo conflitos pelo mundo, o que também me soa bastante familiar. Pautas, deadlines, hotéis baratos, entrevistas coletivas, fontes obscuras, fotografia, perigo. Vamos ver como acaba. O livro é realmente muito bom, com uma narrativa leve, mas profunda. Texto ligeiro, conteúdo profundo. Uma boa combinação.

Pensei nas minhas viagens, Manágua, os sandinistas (a primeira máscara que ilustra este post é de lá); Amazônia, a natureza; Paris, o amor que ganhei e perdi entre estações. E as coisas materiais que marcam um certo cosmopolitismo, o jantar especial com vinho de adega; os encontros com personagens especiais e suas histórias extraordinárias. Os idiomas e as confusões que emergem em atos falhos, como responder a Alberto, ontem, em francês uma pergunta feita em castelhano. Essas coisas.

Quando estou neste tipo de situação, uma espécie de narrador literário assume meus olhos e tudo o que vejo vai se transformando em narrativa. Frases de efeitos, no início, bem exageradas e piegas, mas depois vou lapidando o texto. Faço anotações, escrevo códigos que depois descortinam toda uma ideia complexa, com muitas ramificações. Queria ser assim o tempo todo, mas não suportaria tanta sensibilidade. Acabaria com queimaduras de terceiro grau. Depois que a naturalização se impõe, o narrador vai embora. Só aparece em momentos especiais.

Acontece que esta é uma viagem especial. Além do que foi mencionado há uma circunstância especial e inédita: o encontro com meu pai. É simultaneamente uma despedida e um encontro original. Pela primeira vez estou com meu pai sem a mediação do Ego, dos projetos de sucesso, do artista genial. Pela primeira vez encontro o homem, com seus altos e baixos, à medida que a sombra da morte paira à esquina. A memória rateando, um tumor no centro do corpo, as funções mais básicas submetidas a uma sensibilidade outra, limitadora. O apetite que se sacia antes do tempo; as manias obsessivas que se desvanecem em meio à uma sensação de desordem geral inevitável.

Mas, apesar desses sinais, apesar da magreza assustadora, lá está o velho. O humor de sempre, o tom de voz, o carinho. O personagem é quase o mesmo. Mas a relação também mudou. Estamos sem expectativas. Apenas estamos juntos e vivemos o agora. E o tempo passa. A TV ligada, o som ligado, certa cacofonia tecnológica para nos lembrar de um cotidiano que, antes, incomodava e agora traz um alívio, como se pudéssemos reinstalar a normalidade por meio desses aparelhos que nos cercam a vida inteira. E, assim, este é o momento: viagem, viajantes, cotidiano, provincianismo, cosmopolitismo... encontros e despedidas. Tudo ao mesmo tempo agora.

sábado, 3 de novembro de 2012

De volta a Nova York



A janela embaçada pela diferença de temperatura. Na rua, um gelo, em casa, calor

Nova York é um lugar esquisito na minha vida. Depois de morar lá nos anos 1970, no fim da adolescência, percebo que construí uma intimidade e uma história em meio àquelas ruas e avenidas numeradas, que fazem da cidade muito mais do que um ponto turístico ou mesmo um lugar de visita. Sempre vivi a cidade, seu dia a dia, mesmo quando não mais morava lá e estava apenas de passagem.

Aliás, me dou conta de que sempre viajei assim. Nunca fiz, por exemplo, esses roteiros europeus, tipo: três dias numa capital, dois em outra e, ao fim de 15 dias, visitou-se três, quatro cidades sem conhecer nenhuma. Não consigo sentir o lugar em tão pouco tempo. Preciso entrar no cotidiano local e isso demanda um tempo mínimo de entrega, de abertura à realidade que se descortina e também requer boa dose de esquecimento da realidade de onde se vem. É um processo denso, que exige do viajante saber o seu lugar no mundo, seja este o destino ou a origem, os dois ou nenhum. Quando essas coisas não estão claras, o viajante vive no limbo, numa espécie de não-lugar. Está sempre de passagem, incapaz de fincar raízes. 

Claudinha, uma amiga no Central Park, na última que estive em NYC, em 2002

Tinha 17 anos quando me mudei, mala, cuia e greencard à mão, para Nova York. A cidade vivia o frenesi do Saturday Night Fever, o verão do filho de Sam, a chegada do humor britânico do Monty Python, o jazz leve de gente como Grove Washington Jr, ou pesado, como o de Dexter Gordon, e o funk jazzístico dos Crusaders. Havia índices cariocas de violência urbana e o meu cotidiano consistia estudar inglês na Columbia University (tive a sorte ganhar uma bolsa integral) e conhecer a cidade.

O Brasil que ficara para trás estava no auge da repressão política, na transição do Médici para o Geisel. Na Maçã, aderi como simpatizante à militância política, participando de um grupo de defesa de prisioneiros políticos da América Latina, chamado Usla, ligado ao partido trotkista. Organizávamos protestos em frente aos consulados das ditaduras latino-americanas, como o Brasil e o Chile, cobrando a divulgação do paradeiro de presos políticos desaparecidos. Também estudava música, influenciado por meu pai, Gaudencio Thiago de Mello, compositor e multi-instrumentista, o que me permitiu conviver com músicos incríveis e aprender com eles. Depois vi que meu negócio era escrever. 

A rua 22, em Chelsea, onde morei nos anos 70. Outros tempos

Cada vez que voltei a Nova York desde então, de certo modo recuperei um pouco dessa vivência interrompida por minha volta prematura ao Brasil, em 1979, e pude reviver a experiência da cidade. Na última vez que estile lá, em setembro de 2002, vi as cicatrizes do 11 de Setembro, visitei endereços onde morei nos anos 1970 e vi que, por exemplo, o prédio onde vivi na rua 22, havia sido destruído por um incêndio. E, mesmo diante daquela ausência, onde uma outra construção foi erguida, me lembrei da velha morada.

E, agora, preparo as malas para chegar à cidade devastada pelo furacão Sandy,  para me despedir do meu pai que está bem doente. Essa sim parece ser mais que uma viagem dentro de uma viagem, uma jornada, cujos sentidos e consequências só serão apreendidos em algum momento no depois. No agora, é fazer as malas e encarar os percalços do vendaval.