sábado, 1 de novembro de 2014

O botequim e a cidade

(Bar Luiz)

Amigos, o longo sumiço deste espaço se deveu à concentração em que me vi forçado a mergulhar para concluir a fase final de escrita do meu livro O botequim e a cidade: Reflexões antropológicas sobre bar, bairro e boemia. Colocado ponto final na semana passada, agora o manuscrito segue para os editores e tem início as negociações, que, se bem-sucedidas, podem colocar o "filhote" nas boas casas do ramo no ano que vem. Aguardemos e torçamos.

 (Amendoeira)

Apesar do nome pomposo e de estilo acadêmico, o texto segue num tom de crônica na primeira pessoa, servindo como um balanço de minha trajetória pela boemia e o botequim. Nesse campo, comecei como jornalista, escrevendo as seis primeiras edições do guia Rio Botequim, continuei como colunista da Revista Programa, do Jornal do Brasil (fase pré-Tanure) e, depois, enveredei pela academia, iniciando uma pesquisa de mais de dois anos, em que frequentei quase diariamente um botequim específico para realizar uma etnografia, que culminou na minha dissertação de mestrado em antropologia.

O livro resgata de certa forma esse percurso e segue adiante com especulações de ordem filosófica e literária.

Os originais enviados ao editor estão divididos em uma introdução, cinco capítulos e uma conclusão. Mas é um livro curto, conciso. Não saberia calcular quantas páginas.

O primeiro capítulo chama-se Platão no botequim e trata de uma reflexão mais generalizada sobre o espaço do bar ao longo da história do Rio, desde Pereira Passos, refletindo sobre as representações sociais em relação ao botequim: ora vendo-o como espaço de desvio e vícios ora enaltecendo-o como representante de uma importante identidade urbana carioca. Cito aqui uma linda crônica de Fernando Szegeri, uma resenha crítica de Marceu Vieira e um samba de Luís Pimentel, para discutir a visão desses autores sobre os elementos genuínos de um botequim. De certo modo, o diálogo com eles segue depois por todo o livro.

(Bar da dona Maria)


O segundo capítulo — O botequim como filho da cidade — analisa a relação do botequim como comércio de proximidade nos bairros. Sua importância na ordem informal das ruas e sua relação com a vizinhança. Esse capítulo tem muito a ver com minha pesquisa atual, sobre transformação urbana, gentrificação e aburguesamento dos bairros do Rio. O processo aqui é visto a partir do comércio de rua, especialmente o botequim.

O capítulo 3 é o mais etnográfico de todos. Chama-se: Como se faz um dono de botequim, e é baseado nas minhas anotações de campo sobre o botequim de Botafogo que serviu de campo para minha dissertação. Nele, falo da dinâmica de convivência de um grupo de boêmios que frequenta o bar diariamente, culminando com uma briga, que serviu como drama social para o grupo e de rito de passagem para um jovem aprendiz de dono de botequim.

(Bar da Adelina)


O capítulo 4, Clube do Bolinha, se debruça sobre a questão de gênero, uma vez que o botequim é um espaço de sociabilidade masculina. Conto aqui algumas passagens hilariantes e outras dramáticas, como uma boa prosa de botequim.

Por fim, o capítulo 5, chamado Literatura etílica da saudade, se afasta da reflexão antropológica, para entrar num campo mais filosófico e especulativo. Analiso aqui o que chamo de "prosa boêmia", representada por escritores como Paulo Mendes Campos, Fernando Lobo, Jaguar, Sergio Cabral (pai), a turma do Pasquim e cronistas mais recentes, como Moacyr Luz e Eduardo Goldenberg. Também entro na discussão do papel do malandro, diferenciando-o do boêmio, nos termos que a prosa de Antonio Fraga propõe. Foi o capítulo mais difícil e o mais desafiador.

(Nova Capela)


Bem, esta é a versão que encaminhei à editora. Enquanto aguardo os desdobramentos disso, volto aos poucos a ocupar o Pendura.

domingo, 3 de agosto de 2014

Cultura do Rio, noite e dia

A semana que passou foi marcada por algumas boas experiências isoladas em meio à solidão que permeia a vida por esses dias. Uma palestra na Biblioteca Parque da Presidente Vargas me levou a conhecer in loco um projeto de inclusão pela informação e o saber de primeiríssimo mundo. Em alguns instantes me senti no espaço da Biblioteca Mitterrand, em Paris. Mas o caso carioca é ainda mais radical pela estratégia de inclusão, dos equipamentos ao segurança treinado para agir mais como orientador do que como um herdeiro de uma ordem colonial que discrimina, segrega e brutaliza.


Os equipamentos, de altíssima tecnologia, sobretudo para as pessoas deficientes, estão efetivamente à disposição — e são usados por jovens e adolescentes da região da Central e do Campo do Santana. Foi um presente que a cidade ganhou (e há outras bibliotecas: Manguinhos, Rocinha, Niterói, e uma que ainda virá no Alemão). Já tinha visto fotos, e minha amiga Bia Caiado já tinha me contado sobre a maravilha que é o lugar, mas ir ao vivo é outra coisa completamente distinta. A experiência de estar lá é demasiadamente forte.

Confesso que fiquei emocionado em ver adolescente para cima e para baixo, usando aquele espaço. Além das atividades como leitura e audiovisuais, o espaço convida ao ócio da reflexão. É tudo muito gostoso e confortável. Tem jardins, cafés, poltronas desenhadas para engolir a pessoa, cabines de leitura, de vídeo, e uma biblioteca que ainda está sendo montada. Decidi doar parte dos meus livros.
Também tive a oportunidade de conhecer Vera Saboya, uma das idealizadoras do projeto, e fiquei impressionado por sua personalidade e beleza. Ela, que não tem vínculos ideológicos com o governo do estado, topou criar esse presente para a cidade e, agora, teme pelo futuro. Eu sou obrigado a concordar com ela, considerando a mentalidade dos candidatos que estão em disputa. Espero que não destruam essa obra viva, que é de todos nós. 


Estive lá para participar de um seminário sobre o Saara, o mercado adjacente à biblioteca. E essa foi outra emoção. Na plateia, estavam velhos comerciantes do mercado e eu me senti devolvendo a eles a oportunidade que me deram ao me acolher durante minha pesquisa ali. Fiquei ainda mais feliz por ter falado de improviso, já que as pesquisadoras que me antecederam, Paula Ribeiro e Neiva Vieira da Cunha, trataram do que eu me preparei para apresentar e com muito mais competência. Tentei dar um fecho ao que elas disseram, estimulando uma reflexão sobre identidades urbanas: sua força e sua transitoriedade. Um tema sempre presente em meus trabalhos.

E para culminar, reencontrei meu velho amigo Leo Feijó, que me presenteou com seu livro, Rio cultura da noite, que será lançado agora, sobre a história da noite carioca, da abertura dos portos aos dias de hoje. Tive oportunidade de examinar o livro este fim de semana e ainda estou impactado pela qualidade da pesquisa e do texto e o acervo de imagens que contém. Um levantamento que abrange quase tudo, de Madame Satã na Lapa à Copacabana da Bossa Nova; do Le Bateau ao Vivo 1 1//2, com Ademir e Big Boy à Mariozim, Furacão 2000, DJ Marlboro, Crepúsculo, Matriz etc. E o Leo abre o livro com uma constatação antropologicamente profunda: “Quanto mais vibrante é a noite, mais plurais são a sociedade e a cultura local”.

sábado, 19 de julho de 2014

Análise


O Fernando Pessoa, na figura de si mesmo, tem um poema que sempre foi o meu preferido. Chama-se Análise e foi escrito em 1911. Ei-lo:

"Tão abstrata é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E, assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo"

O jogo de identidade e alteridade que o poeta estabelece entre esse "eu" e o "outro" no poema tem sobre mim um poder de encantamento. Essa curiosidade em relação ao humano que se faz na diferença, na diversidade de representar e viver o mundo, foi o que me levou para o jornalismo e, depois, para a antropologia. O outro de Pessoa se confunde com ele próprio a ponto dele ignorar-se a si mesmo neste emaranhar-se com o outro. Aqui, evidentemente, cabe a paixão. Essa energia poderosa que nos faz cair, como dizem os franceses, amorosos por alguém. Alguém de quem, às vezes, não sabemos nada. Essa coisa que nos faz sentir como se sonhássemos o que somos de fato.

Não entendo nada de psicologia, mas creio que a matriz desse sortilégio está nas relações primordiais e básicas que estabelecemos, ainda bebês, com nossos pais ou seja lá quem esteja ali, naquele momento crucial. Sempre li sobre complexo de Édipo, a luta do menino com o pai como um processo de transcendência para a vida adulta. As simbioses com a mãe e o pai e essa confusão toda. Depois, na minha formação como antropólogo, estudei os ritos de passagens, as diferentes culturas e as formas como o mundo é construído internamente na percepção. E como essa é infinita em suas possibilidades humanas.

Não importa qual seja a sociedade ou a cultura — ianomami, pigmeu ou o executivo de Wall Street —, em todas elas existem ritos para lidar com o nascimento, a morte e o casamento. E eu pude descobrir isso além da teoria, visceralmente, no lançamento das cinzas do meu pai no encontro das águas do Solimões com o Negro, onde nasce o Rio Amazonas, seguindo instruções dele. Foi, de fato, um evento, uma espécie de gurufim amazônico, com cantos, música, choro, poemas... dando formas diversas à saudade. Resignação ao vazio. Foi também um momento de reencontro com a Floresta, com amigos, e, sobretudo, de um renascimento.

Mas o efeito, em mim, lá na profundeza da alma, desse rito de passagem foi de transcender essa morte, deglutir a vida, incorporando em mim as coisas dele, mas, mais ainda, descobrindo em mim as minhas próprias coisas que estavam ali submersas na alma. Não fui mais o mesmo depois desse ritual. E se fica o vazio e a saudade, também nasceu um outro ser, engordado do outro, e também de si. Não li o poema acima na cerimônia de adeus, mas bem poderia tê-lo feito.

Quanto à máscara acima, ela é o objeto que simboliza um momento nosso juntos, no meio da revolução sandinista, em 1988. Pai e filho no mais próximo que conseguimos chegar.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Salgado, fotografia, reportagem e antropologia

Lélia e Salgado (foto tirada do site o sensato: http://www.osensato.com.br/sebastiao-salgado-um-brasileiro-que-tem-inspirado-o-mundo/ onde há mais informações e fotos)

O Canal Brasil passou recentemente dois documentários sobre Sebastião Salgado, todos dois muito interessantes. Admiro seu jeito zen e ao mesmo tempo comprometido com a melhoria da vida das pessoas, atitudes que fazem dele uma espécie de sábio. Ele me inspirou muito, tanto na fotografia — ofício que exerci no início de minha carreira na imprensa —, no jornalismo e, me dou conta agora, na antropologia. Inspiração que vem sobretudo pela forma de se aproximar de pessoas, bichos e coisas quando faz suas fotos e documentários fotográficos.

Não entendia porque meus colegas fotógrafos falavam horas — alguns com muita inveja e desdém — sobre os equipamentos que ele usava e sua técnica de fotografar, e não percebiam que sua fotografia começava antes, no seu olhar subjetivo do mundo, na forma de se aproximar de seu “objeto” de reportagem. Nada de foto roubada, nada de teleobjetivas, que colocam o fotógrafo a uma distância segura, mas também ausente da cena. Salgado estava sempre perto, conversava, aprendia o nome, convivia e essa aproximação se refletia na luz das fotografias que fazia. Os dramas e as alegrias estavam lá em todos os tons de cinza.

Para ele, não era mais o “instante decisivo” do Cartier-Bresson, o olhar sensível que acompanha o desenrolar da cena e faz o clique no momento exato. Salgado nunca estave interessado nesse instantâneo. Daí seu temor profundo, quando fotografou o atentado contra Reagan, de ficar conhecido por uma característica que não era essencialmente a sua. Sua fotografia é o resultado da convivência, nem que seja a convivência consigo mesmo, na solidão dos ermos do mundo, como se vê em seu último trabalho sobre o planeta.

Estamos falando, portanto, de metodologia. E se fosse esquematizar o olhar fotográfico documental entre Bresson e Salgado, diria que o primeiro está mais perto do jornalismo e o segundo, da antropologia. Em outros termos, o instantâneo de Bresson é a essência da reportagem, o momento exato, o "instante decisivo", que conta, em resumo, uma história. Já a convivência de Salgado com seu objeto é a essência da etnografia, do trabalho de campo do antropólogo, isolado em civilizações esquecidas, aprendendo a língua, anotando costumes, valores e ritos. Os dois são retratos da realidade, mas tirados com “lentes” bem distintas e para fins igualmente distintos.

Num dos documentários, Salgado abre sua casa, seu estúdio e sua pequena agência de fotografia. Entendemos seu uso do preto e branco e da cor; a transição do filme para o digital, enfim, algumas questões técnicas que teriam agradado muitíssimo os fotógrafos da minha época, que fetichizavam máquinas, lentes, filmes e equipamentos. Mas, mesmo quando fala especificamente sobre técnica, Salgado faz o tempo todo a ligação com esse olhar anterior, que o forma como fotógrafo. O filme nos apresenta sua família, os filhos, a mulher e a dinâmica de seu dia a dia em casa.

O outro documentário, em que ele é entrevistado pelo grande Eric Nepomuceno, Salgado fala exclusivamente de si. E aí podemos entender melhor sua fotografia. Sua origem em Aimorés, Minas Gerais; seus pais, seu amor por Lélia. Eric, ao estilo psicanalítico, vai lançando palavras, como “medo”, “luz” etc. e, numa associação com seu eu profundo, Salgado vai comentando. E, para mim que perdi minha mãe recentemente, foi particularmente emocionante quando, ao comentar o termo “saudade”, ele falou da presença da mãe em sua vida, por meio da memória, e contou de um abraço que ela lhe deu, no seu primeiro retorno à casa de sua infância.

Minha simpatia por ele só cresce e cada vez mais o vejo como um sábio.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Erickson Luna

Há coisa de uns cinco ou seis anos, estava em casa de bobeira, quando o telefone tocou. No outro lado da linha, o poeta Erickson Luna. Por sugestão de Soraya Simões, ele me ligava de um hospital do Recife, onde se recuperava de uma fratura. Estava sóbrio e falamos por uns cinco minutos, nesta que seria a nossa última conversa. Luna morreria alguns meses depois. Ele foi um poeta tão genial como radical. Desses artistas, como Manduka, que se entregam de corpo e alma à sua arte, sem concessões de qualquer espécie e que acabam morrendo abandonados, indigentes. Estar perto dessas pessoas é viver uma intensidade tal, que o cotidiano depois nos parece vazio de sentido. É uma experiência transcendental. E pessoas assim, me parece, hoje já não cabem no mundo compartimentado e digital que vivemos.

A primeira vez que vi Luna foi um susto. Estava com poetas, jornalistas e antropólogos, numa mesa misturados, num mercadinho no Centro velho de Recife. Braulio Brilhante, Chico Espinhara, Soraya, entre outros, pessoas que fazem a prosa voar, a conversa espiralar. Braulio e Espinhara tocando um movimento de poesia marginal da maior qualidade em Recife. Marginal no sentido da marginalidade mesmo, com todo o respeito ao CEP 20 mil (Espinhara morreu meses depois de Luna, consumido por versos e álcool). Naquele dia, esperávamos a chegada desse poeta genial, que queriam me apresentar. Era o bêbado que eu vira adormecido no chão, próximo à entrada do banheiro infecto do mercadinho.

De repente, como surgido da poeira, como uma entidade das ruas, aparece o mendigo-poeta. Era Luna, figura esquálida, com cavanhaque e cabelos desgrenhados. Uma fúria nos olhos, que ganhava vida em momentos de indignação. Muito parecido com Manduka nesse sentido. Luna sorriu para a mesa, mirou os olhos arrebatados de Soraya e recitou uns versos para ela, enquanto ouvíamos em silêncio. É difícil narrar isso sem soar piegas, mas, na intensidade do momento, foi uma chegada. Uma alma que faz falta ao mundo de hoje e que merece ser lembrada sempre

Deixo uns versos de seu último livro, Do moço e do bêbado:

Pra eu poder
e só
andar nas ruas
fez-se em volta uma cidade

Para se dar
mais colorido à noite
pôs-se acima um luminoso

E pra que eu
me sinta bem enfim
nesta cidade
há-se em mim um cidadão

Portanto livre
como o que é em noite
e que enche as ruas
perseguindo luzes
acordado
ainda que em sonhos
íntegro
ainda que meio-homem
plenamente meio
mariposa


sexta-feira, 21 de março de 2014

Meditação

Hoje acordei em meio à ventania desarranjando a casa. Papéis no ar, garrafas ao chão... calor no primeiro dia do outono. A nova estação chegou para acalmar o espírito. Então ouvi dois CDs do Guinga. Fui entrando naquele universo harmônico de altíssimo bom gosto. Aqueles acordes estranhamente familiares. Choros, valsas que me lembram Manduka: aquela coisa rara que não se ouve por aí. Não vou falar sobre o popismo que domina a MPB e que iguala tudo numa escala de equivalência que os críticos e os empresários do mundo fonográfico podem entender e faturar. Uma linguagem comercial no seu sentido mais singelo. Não vou julgar as coisas de arrepio do momento. Fugazes melodias que embalam o dia a dia nos ônibus. Mas quando entro nessa outra esfera, dois passos acima do chão, além da mediana, a música se torna uma outra experiência. Uma implosão. O cansaço se desfaz, lavado pela emoção estranha. Aquela sem nome, incomum, especial. E desperto para o dia transformado.

sábado, 8 de março de 2014

Canção do outro

Uma sensação de saudade antiga — mistura de perda de alguém com o tempo que se foi. E além. Um vazio tão oco, que não se espreita ver o fundo. E que esse mesmo não há. Pois foi essa que veio, cedo, a luz do dia ainda esquecida de si, atrás do morro e o céu com estrela. Veio no silêncio sem ventos e quieta se instalou plena no centro do peito. E vi você tão longe que nem sei. Confundi os sopros. Vi que não era, na verdade, você. Outro você. Diferente o mesmo. Interno segredo íntimo de ser você e eu a mesma face do espelho. Embolados num mundo sem palavras. Sensações. Distância que não se mede em léguas. Tão longe que só se vê pelo coração cortado, escorrendo o sangue na dor do quase que fomos, no triz do ser que se incompleta de si. Inalcançável de tão dentro.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Guimarães Rosa, um regionalista?

Estou lendo o livro de cartas do Caio Fernando Abreu, organizado por Italo Moriconi, e me deparei com uma delas, endereçada a Hilda Hilst, na qual o escritor cita Guimarães Rosa como um escritor regional. Essa classificação ficou me perturbando a mente dias e dias e, por fim, me obrigou a refletir sobre o incômodo. Pra começo de conversa, preciso esclarecer que os romances do Caio nunca me pegaram. Ele foi um bom escritor, mas não fez nada de extraordinário no plano  da literatura. Nem acho que esse tenha sido o sua meta, sendo filho de uma época desencantada com o fim de utopias que movimentaram as gerações anteriores, seja pelo viés político da “revolução”, que trará justiça social ao mundo; ou pela transcendência individual por meio do “desbunde”. É justamente esse caráter iconoclasta de quem já não tem mais nada a perder que permite perturbar cânones e inverter ordens. O que é bom.

Mas isso não confere necessariamente verdade e esses abalos, e achei rasa a afirmação de Caio sobre o velho Guima. Chamá-lo de escritor regional é não perceber o vigor e a complexidade de sua produção. É limitá-lo ao universo restrito da gemainschaft, o mundo rural em oposição à vida urbana, rica em contrastes furiosos e constantes. Mas o universo de Guimarães Rosa é de uma complexidade que está mais perto da gesellschaft. As grandes questões existenciais que perpassam o ser da cidade, também estão lá na mente dos personagens de Guimarães Rosa, enquanto olham a margem do rio.

Veja-se o caso de Grande Sertão: Veredas: Um romance em que o narrador é o protagonista, que dialoga com um interlocutor invisível e que, muito provavelmente, vem do universo urbano. O pano de fundo da história é uma guerra, justamente a guerra entre uma forma de vida de valores patriarcais e religiosos que vai sendo confrontada pelo racionalismo da República. Esse conflito é que põe o sertão em turbulência, com antigas e novas forças sociais se digladiando Gerais afora adentro. Coronéis, jagunços, vaqueiros, padres, policiais e outros personagens que se cruzam nesse drama social trazem o contraste desses mundos em choque. Nosso protagonista, Riobaldo, é arrastado contra sua vontade para esse conflito e se torna um grande líder, depois de muito relutar. Ao mesmo tempo, se apaixona por um companheiro, mergulhando numa crise de identidade profunda. Afinal, não se reconhece como homossexual, mas não consegue explicar e muito menos negar a atração por Diadorim. E, por fim, a profunda discussão metafísica sobre a existência de Deus e o diabo. De fato, classificar um romance desse como uma mera produção regional, com todo o respeito ao Caio, uma percepção míope.

Um trecho do Grande Sertão

"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro — dá gosto! A força dele, quando quer — moço! — me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho — assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza."

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Empata-foda

Querida amiga, outro dia pensava sobre nossas predileções literárias e me dei conta do peso que esse gosto, tão pessoal, tem como parâmetro amoroso entre as pessoas. Você, por exemplo, gosta do poeta V. e eu sempre tive uma certa preguiça em relação à produção metafísica dele, preferindo seu lado mundano e mulherengo. Portanto, V., para mim, é um poeta parcial, pois não enveredei por suas inquietações sobre Deus e o Cosmos. E, veja, não é que não goste de V.. Apenas não senti o impulso de lê-lo nessa vibração espiritual, preferindo seu lado secular, sua bossa nova, seus amores carnais. Nessa onda ele é genial. Mas é essa divisão que me impede de elegê-lo como predileto. E me pergunto se não é essa a verdadeira razão do nosso desencontro. Como um planeta interceptado na quadratura de um signo incompatível ou coisa que o valha. Por amor a você, até atravessaria as veredas de reflexões patafísicas de V. na esperança de ver abrir em mim uma iluminação reveladora do lirismo que antes não percebia, e, por meio de V, exibisse orgulhoso todo o meu amor por você. Mas você mesma sentenciou: "Você não gosta de V.", me disse outro dia, tão casualmente quanto alguém que se resigna a uma diferença abissal e incompatível. Tremi de medo de que não fôssemos mais o que quer que somos no campo do afeto, esse gostar que fica aquém do que quero e além do que você suporta. Um limbo cheio de aventuras perigosas. O seu poeta V. acabou ficando entre nós, veja você, como um empata-foda, o que me fez escrever esse poema pra você, querida amiga:

Queria ser um poeta
Como aquele que vive em teu peito
E repetes os versos d'alma
Queria poder estar tão dentro de ti
Habitado de teus sonhos
Como, sem saber, está o poeta
Aquele que vive em teu peito
Sem perceber-te entregue
Como entregue me ponto a ti
Queria ler teu corpo
Como teu poeta recita versos d'alma
Conjugaria teus músculos
E aprenderia teu beijo
Como quem decora poesia

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A vida como ela é


Você chega; me levanto, cortês e ansioso. O panamá na mão. Um abraço trêmulo e nos sentamos. Você diz: "Que calor!"; peço uma cerveja. Os olhos se cruzam, envergonhados, meio sem jeito. Trocamos frases cotidianas. De chegada. Assuntos alheios, mundanos. Mas os olhos dizem mais. Perscrutam minuciosamente. Sem deixar escapar nada. Mas são as palavras que vão abrindo as portas, criando trilhas; e somos eloquentes. A cada frase, a conversa adensa e nos aproximamos mais. Apesar da configuração difícil, quase impossibilidade, por outros laços em que nos atamos. Mas também descartamos a indiferença. E somos honestos em reconhecer, sem dizer, o desejo. A cerveja chega. Você diz ao garçom: "Obrigada!" Nos soltamos mais, aliviados pela situação cada vez mais definida em suas imprecisões. Há um campo de possibilidades, vasto, apesar dos laços alheios. "Vou ao banheiro", você diz, após o enésimo copo. Espero sua volta, como o tigre espreita a gazela na floresta. Quando chega, gesto felino, pego-a pela mão com firmeza; você para. Me levanto, ansioso. Pouco cortês, mas incisivo, ignoro as etiquetas, inclino para o beijo, enquanto puxo seu rosto. Vejo um pânico fugidio em seus olhos, mas, por fim, você aceita a investida e se entrega. O tempo para, enquanto sinto esse primeiro ato de amor, apesar da culpa. A obscenidade está fora de nós; não no beijo. "Sou puta?", você sussurra constrangida. Aperto seu corpo contra mim, como quem diz que não. "Te amo!", digo, como se isso fosse suficiente. Não é. Nos sentamos novamente e brindamos a vida como ela é.  Me levanto e digo: "Minha vez!" E parto para o banheiro, exíguo, infecto, onde entro pisando em nuvens.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Sobre perdas

Meu pai morreu dia 11 de novembro de 2013. Passou tranquilo, dormindo, depois de uma vida bem vivida até os 80 anos. Reclamava um pouco da solidão nos últimos anos e se empedrara num mundo todo seu, onde as coisas mais básicas de que precisava estavam ao alcance da mão, exceto, talvez, a companhia inexistente de alguém ao lado. Inclusive o piano Steinway & Sons, onde compunha seus temas. Um câncer raro o levou. Não fosse isso, creio que viveria até os 100 anos. Era forte e saudável. Há muitos anos não bebia nem mesmo a cervejinha. Apenas um aperitivo após o almoço. Quando foi avisado do diagnóstico, em agosto de 2012, o médico não escondeu as perspectivas sombrias, informando inclusive as estatísticas de sobrevida das pessoas com esse tipo de tumor: de três a seis meses, após o diagnóstico. Ele superou, portanto, todas as expectativas e seguiu, inclusive apresentando uma melhora. Mas dizia, em tom forçadamente casual, que cruzaria o Rio Jordão em abril. Quando estive com ele em novembro de 2012, numa Nova York gelada, indaguei de onde havia tirado aquele mês. "O médico falou", respondeu. Então escrevi pra ele o poema que segue:

Quando abril chegar
E o sol mudar o arco de sua curva
Talvez não sejas mais
Do que memória e falta
Dependerá do sonho de vida
Que costuras agora no tecido do dia
Para cobrires tua existência

Quando abril chegar
Talvez seja tarde demais
E o tempo cumpra os presságios
Que murmuras hoje
Dependerá da vida que sonhas
A vontade de mudar o arco da curva
Que o sol desenha no espaço.

Em fevereiro estive novamente com ele. Me parecia mais saudável, embora não houvesse tratamento possível. O tempo se esgotava silenciosamente. Ainda assim recuperamos um pouco do humor. O café da manhã era o nosso melhor momento juntos. Sempre fora e, agora, tinha um valor especial, com a ideia de despedida. Eu fazia o café forte, como ele apreciava e comíamos conversando, contando histórias. Um dia, seu humor estava tão pra cima, que posou para mim com chapéu de Tupac Amaru e máscara sandinista.


Deixei-o com a promessa de voltar. Mas não consegui. Em novembro de 2013, na madrugada do dia 11, uma segunda-feira, ele atravessou o rio. Foi-se dormindo. Ao que consta, não sofreu. Durante todo o processo, só foi sentir dores nos últimos dias, quando recorreu à morfina.

Foi-se o homem ficou o mito. O grande artista, o compositor, o músico, multi-instrumentista. Obituário nos jornais. Organizamos agora uma expedição para cumprir seu último desejo: jogar suas cinzas no encontro das águas do Solimões e Negro, onde nasce o Rio Amazonas.

Ainda sob o impacto dessa perda, no dia 17 de dezembro foi a vez de minha mãe. Se a morte de meu pai foi vivida a distância, a da minha mãe foi sentida momento a momento, ao lado dela. Do primeiro dia em que foi internada com falta de ar e dificuldade para respirar, até a madrugada em que ligaram da clínica para avisar que ela havia passado. Enterramos em 12 horas. Não deu para avisar ninguém e, mesmo assim, compareceram ao São João Batista uma boa centena de pessoas. Amigos dos três filhos e as amigas dela. Umas donas arretadas, bossa nova, de humor mordaz.



Minha mãe não era artista. Era uma pessoa simples, que sofreu muito na vida, mas nunca deixou que isso tirasse sua leveza. No dia mesmo em que a levei ao hospital, quando fazia 40 graus sufocantes e ela mal respirava, ao descer do táxi, agradeceu, simpática, ao motorista. Impossível pensar que estaria entrando na clínica para não mais sair com vida. Morreu uns dez dias depois. E ainda me recupero do calvário que foi conviver com UTIs, médicos, enfermeiros, burocratas de hospitais e cemitério.

Agora a vida segue. Sinto a dor dessas perdas irreparáveis, uma angústia que vem com a sensação de desamparo, mas também me sinto pronto pra seguir em frente, tentando ter a mesma leveza que ela teve enquanto viveu.