sábado, 27 de junho de 2009

Duas cantoras e uma escritora


Auto-retrato da Camaleoa, literatura e arte na preça

Amigos, enquanto escrevo estas mal traçadas linhas alterno no aparelho de CD duas vozes femininas de singularíssmo apuro sonoro. Refiro-me, em primeiro lugar, à minha amiga querida Andrea Dutra, jornalista e cantora, não necessariamente nessa ordem. Já há algum tempo ela lançou um CD com o violonista Marcus Nabuco, meu ex-vizinho de prédio. Trata-se de um trabalho que me lembrou o antologico disco de Nana Caymmi e Cesar Camargo Mariano ou ainda o igualmente antológico duo de Monica Salmaso e Paulo Bellinatti, regravando os Afrosambas do Baden Powell.


Andrea na Modern Sound, no show do Quarteto Moderno (Pauleira Malagutti no piano, ao fundo)

A onda de Andrea, que além de seus trabalhos solo, faz parte do grupo Arranco de Varsóvia, é o repertório bossa nova, samba e soul brasileiro (Tim Maia, Jorge Ben, Cassiano e por aí). Aliás, foi ela a primeira a cantora a trazer em seus shows toda uma rapaziada do soul que andava esquecida. Eu a conheço desde o século XIV e venho seguindo seus passos desde então. Sou cativo de seu talento, de sua inteligência e afeto. Seu blog, Avant-denière pensées, está assinalido na lista abaixo e pode ser acessado clicando aqui.


Concha Buika, em foto de divulgação: coração na voz

Outro dia, conversávamos sobre faits divers e banalidades, quando entramos no assunto das estranhas circunstâncias da morte do ator David Carradine, um caso de sexo & violência narcísico, e ela me disse, depois de refletir brevemente sobre o assunto:

— É... nossos heróis morreram de overdose.

Sincronicidade. Conversando com meu querido Paulo Pires num evento no Villarino (veja o post imediatamente anterior) sobre a morte, igualmente prematura, do nosso Juca, do Bar do Serafim, ele me disse frase quase igual:

— É... nossos heróis morreram de cirrose...


A capa do CD de Andrea com Nabuco: uma sonoridade singular

Outra cantora que tem feito contraponto com Andrea no meu aparelho de CD é Concha Buika. Seu repertório é uma mistura de flamenco, jazz e blues, mas tudo muito sofisticado em termos harmônicos. Porém, o que me pega mesmo é o cantar. Ela se derrama pela voz, desnudando-se completamente. Ela me lembra o cubano Bola de Nieve, Martírio, Chet, Elis e Piaf. Ou seja, a tradição dos cantores que colocavam o coração na voz e interpretavam sem medo. Hoje, para os ouvidos modernos, isso talvez soe um tanto exagerado, mas, na minha modestíssima opinião, é música na essência, na veia. O disco em questão, presente de um casal da França de passagem por minha casa, chama-se Niña de Fuego.

Abri o sábado com um bom incenso e essas duas musas soando pela casa, limpando a atmosfera, na esperança de um recomeço. E quando falo em recomeço imediatamente me assalta o espírito a escritora Camaleoa, já amiga de anos, desde os tempos em que produzia literatura abusada em Mato Grosso e, hoje, radicada em Sampa, toca os jornais Café Literário e Na Praça, projeto de Eduardo Barroux — que nos deixou precocemente — para uma revolução no país do carnaval. Revolução que agora está nas mãos de Camaleoa em sua incansável iniciativa de produzir jornais com poetas, pintores, fotógrafos e artistas em geral. Enfim, tudo o que acontece em torno e nas praças é interessante.


Capa da última edição do Café Literário (nº 41): pelo correio até minha casa, inaugurando o sábado

Um dos meus desejos mais perversos de 2009 é dar um porre nessa menina com cervejas bem encorpadas. Ela que não bebe. Mais do que qualquer coisa, trata-se de um projeto febril-sideral.

Minha amiga está reconstruindo sua vida após a saída prematura de Barroux numa ventania de fevereiro. E seu blog, Na estrada de novo, também está na lista e aqui. Na penúltima edição do Na Praça, ela escreveu um belo texto que começa dizendo que "depois do vento forte, sobram os livros empoeirados, os cadernos de colagem, os arquivos fotográficos"... para falar sobre as heranças que os encontros deixam nas nossas vidas. Dos mais fugidios aos mais longos.


A capa do Na Praça com retrato de Barroux

Eu colaborei com essa edição, com o poema Fama em homenagem a esses artitas fantásticos que volta e meia passeiam pelo Pendura Essa: Manduka, Espinhara, Luna e o próprio Barroux, idealizador do dois jornais, fotógrafo... enfim, aquele tipo de artista neorenascentista, que faz de escultura a murais na cidade e ainda constrói engenhocas e parafernálias. Enfim, sujeitos criadores que, como essas cantoras, não têm medo de pôr o coração no que fazem.

Me permitam reproduzir os versos aqui:

A morte prematura
Endeusa o tipo.
E como saíste cedo
Esquecido, maldito
Tens tudo para
Dar luz ao mito.

Mas uma fama,
Que assim se deita
Desarruma a cama
Atrasa a colheita.
Morte e saudade
Arrebatam o homem
Santificam o nome.

Porém, és mais
Que páginas, jornais
Luz que acende
Sol que arde,
Nunca dependerás
De alarde.

A razão disso tudo, meus amigos, é esse sábado musical e a fortuna de abrir a caixa de correio (real, não virtual) e encontrar as duas últimas edições do Na Praça e do Café Literário num envelope pardo com selo e tudo. Uma sincronicidade para começar bem o sábado.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Dois eventos etílico-gastronômicos


O segundo andar do Mercado São Pedro, onde os botecos preparam peixes e frutos do mar comprado embaixo (no primeiro plano: os irmãos André e Renata)

Amigos, neste último sábado, organizei a pedidos com um grupo de amigos uma ida à Niterói, para um passeio etílico-gastronômico na cidade que é berço de excelentes botequins e restaurantes. A idéia, singela, era comerçarmos no Mercado de Peixe São Pedro, sair dali e, por dica de meu querido amigo Guilherme Sturdart, conhecer a empadinha do Pára Pedro, um boteco na esquina do mercado. Seguir para o Caneco Gelado do Mário e ver o dia morrer da calçada do Decolores. Quando a idéia foi lançada, vários amigos se animaram, mas daí veio a chuva torrencial de sexta-feira, a falta de grana de alguns e outros obstáculos e grupo minguou, restando apenas dez felizes e obstinados comensais.


Os boxes com peixes e frutos do mar do Mercado São Pedro

O problema foi que ao chegarmos no Mercado, exageramos na compra dos peixes e dos camarões, de modo que quando levamos para o segundo andar, ao boteco do seu Sileyr, foram preparados inúmeros pratos: camaraões fritos, moqueca de peixe, peixe frito empanado, pastéis de camarão temperados com leite de côco, entre outras iguarias. Silvio, pai de JPaulo, freguês contumaz há mais de 15 anos do Mercado, organizou tudo. Sabia em quais boxes comprar o camarão, em quais comprar os peixes e qual o melhor boteco para prepará-los, no segundo andar. Tudo perfeito.


Ju e JPaulo: mesa animada pelos obstinados comensais

Vou poupá-los dos detalhes, para evitar a produção de saliva excessiva, meus amigos. Basta dizer que comemos como nababos, e nos demos conta, não sem uma certa pena, de que teríamos que alterar nossos planos originais. Depois de dois engradados de cerveja, distribuídos por dez pessoas, e toda essa comilança, abortamos o Pára Pedro e o Caneco. Fomos direto para o Decolores, antes de atravessar a Baía de volta ao Rio, onde, parte da turma, terminou a noite, na mureta do Bar Urca, para contemplar, ao revés, o cenário do fim da tarde que presenciáramos de Nikiti. Um detalhe: no Decolores, encontramos o garçom Joel bem-humorado, de modo que ouvimos alguns boleros inspirados.


Seu Sileyr (no centro) é o tipo de dono de bar, que se senta com os fregueses

No meu caso, foi preciso tirar o domingo para uma recuperação, sobretudo da alma. Passei o dia convalescendo, mergulhado em livros e jogos de futebol, entremeados por sonecas e bastante água. A sorte é que peixe é algo que o organismo metaboliza com rapidez, sobretudo se for fresco.


Ensopado de peixe, ao estilo moqueca, uma das iguarias preparadas

Queria estar bem para a segunda-feira, onde teria outro evento etilico-gastronômico: o aniversário de 56 anos do Villarino, que foi celebrado ontem, com um coquetel para convidados, amigos da casa e de seu Antonio Vásquez, o espanhol que foi garçom do bar mitológico e depois virou dono. É graças à sua obstinação que a casa continua existindo, apesar da crise, da concorrência desleal com fast-foods, do descaso das autoridades com esses patrimônios, como diz o Guilherme, imateriais do Rio de Janeiro.


O garçom Ramos, do Villarino, também conhecido pelo apelido de Marlon Brandon

Bem, todos conhecem mais ou menos a história do bar. A famosa parede, com desenhos, assinaturas e poemas de fregueses como Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Lygia Clark entre outros, e que foi apagado num gesto infeliz do sócio português da casa (ontem, conheci uma nova versão da história, em que a medida teria sido uma punição ao Di, cujo pendura se avolumava além do tolerável).


Paulo Pires (à esquerda), Dapieve e Manya (do outro lado da mesa) e Guilherme (ao fundo), amigos no Villarino

Foi lá também que Vinícius de Moraes foi apresentado ao Tom Jobim e lá teria tido início a parceria entre os dois. Ou seja, amigos, o Villarino é um clássico, o bar-uisqueria, uma tradição de boemia que está rapidamente desaparecendo na cidade. E só não desapareceu graças à obstinada determinação de seu Antonio, que recusou inúmeras ofertas de compra do lugar, inclusive do Bradesco e da Drogaria Pacheco.


Detalhe da geladeira espelhada do Villarino

Para mim foi uma honra participar dessa comemoração, ao lado de amigos, como o Guilherme Sturdart, Paulo Pires, Manya Millen e Arthur Dapieve, com a família de seu Antonio, que ontem cantou canções populares da Galícia, num momento de alegria. Parabéns, e que outros 56 anos sejam celebrados pela casa.


Seu Antonio Vásquez (sentado), cercado por familiares e amigos

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Toda aberta ao vento



Amigos, como ando enrolado com umas tarefas interessantes, reproduzo, ampliado e com modificações, um post mais antigo, do Pindorama 2, de 23 de maio de 2007. Uma elocubração sobre a mulher, a partir de uma conversa com uma amiga especial num velho botequim de Copacabana num dia de encontro casual. A amiga em questão é essa aí em cima, cuja foto manipulei, pois ela não gosta muito de aparecer assim, digamos, publicada. As fotos de baixo, igualmente manipuladas no Photoshop, são de um francês chamado Pascal Renoux.

Toute ouverte au vent



Toute ouverte au vent. É assim que um mito ancestral define a mulher, me disse uma amiga outro dia, numa mesa de bar. Ela mesma um ser mariposado, toda aberta ao vento, atravessada por sopros e furacões, cuja história de vida é marcada pela tragédia e a morte. Por haver me desencontrado de mim mesmo em seu jardim labiríntico, completamente apaixonado, ouço com atenção tudo o que ela me diz. Procuro memorizar não só as palavras, mas o tom de sua voz, na esperança de tentar desvendar, nas ênfases de seu sotaque afrancesado, o mistério do amor fugidio.

O mito, porque é mito, está sempre certo, seja qual for a alegoria, o delírio, a metáfora. A mulher infla na gravidez, seca na tristeza, reluz na paixão, e é quase sempre aérea, varada por ares os mais distintos, flutuando pela vida, numa intensidade brumosa, leve, por pouco incorpórea, e repleta de aberturas no corpo. Navegar pelos caminhos macios de sua pele, escalar os montes de seus músculos, percorrer suas curvas e perder-se para sempre em seus recantos mais obscuros é o exercício existencial ao qual me dedico desde a minha pré-história. Como diz o poeta Geraldo Carneiro: “Amar é o mar em que me precipito.”

Encontrei minha amiga do outro lado da rua, em pé na calçada, à espera de que meus olhos distraídos, enfim, cruzassem com os seus. Naquele momento, vagava sem rumo, em busca de um canto para amarrar as palavras que vêm dançando em volta de minha cabeça nesses dias de reencontros com velhas paixões, e eis que ela emerge na terceira margem do rio, como uma aparição. Sincronicidade. Andava no seu jeito de sempre, como quem pisa descalço no chão, e me tomou pela mão, dizendo que queria ver o mar. Porém, de longe! Pois as ondas ainda a assustam com as lembranças de abismo e a maresia que traz de volta a história trágica de sua vida. Porém, uma chuva começou a cair intensamente e nos lavou o passado. Éramos inteiros naquele momento e, assim, pude vislumbrar seus ventos. Ela finalmente enterrava seus mortos.



Mais tarde, no velho botequim de bandeira lusitana, conversamos sobre a alma. Ela me disse, então, que a vida só se mantém após a morte na memória dos que estão vivos. Discordei por instinto, sem saber argumentar numa retórica patafisica. Como não sei nada desses assuntos, deixo o desejo decidir. Além disso, sei que em todas as sociedades e culturas humanas há a idéia de continuidade existencial.

Depois de nosso vôo sideral, nos despedimos de uma vez por todas num abraço. Éramos agora completamente outros em nós mesmos. Zerados em um novo começo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Cartas d'além mar (23)



Querida amiga, agora que você mergulha cada vez mais em terra estranha; agora que você se põe cada vez mais além da distância dos meus dedos, a vejo com mais freqüência nas esquinas da cidade. Agora que seu sotaque ganha novos sons, e o idioma traz velhas expressões do tempo em que foi embora, ouço sua voz todas as noites, mal os olhos se fecham ao adentrar o azulado campo onírico. E, no entanto, concretamente, a distância se faz presente, quando fico sabendo de coisas de sua vida por mensageiros ocasionais, quando percebo que não mais ajudo a escrever o roteiro em que éramos protagonistas, as histórias de amores felizes e viagens sem fim pela estratosfera de nossas conversas. Nossa vã filosofia: em que pedaço do infinito nos encontramos? Será que tudo tem mesmo um fim? Agora que nos tornamos uma abstração, um presságio de outro dia, um arrepio na memória, ponho os pés no chão e me descubro incerto das direções.