sexta-feira, 1 de abril de 2011

Somos todos canibais

Azulejaria branca em carme viva, de Adriana Varejão, 2002

O antropólogo Claude Lévi-Strauss escreveu em 1993, num artigo publicado no jornal La Repubblica, que “somos todos canibais”, e acrescentou: “A maneira mais simples de nos conhecermos através do outro é devorando-o”. Tabu em nossa sociedade, o canibalismo, como o incesto, é tema que assombra e simultaneamente fascina o imaginário ocidental, justamente por sua relação íntima com as noções de identidade e alteridade, pois o canibal é o outro absoluto. Não é à toa que é objeto de estudo precioso em disciplinas como antropologia, etnologia, história, psicologia, medicina, sociologia e filosofia. Mas é no campo das artes que esse fenômeno humano extremo é expresso com vigor selvagem.

Exemplo disso é a exposição que a Maison Rouge, da Fondation Antoine de Galbet, em Paris, apresenta até 15 de maio. A frase de Lévi-Strauss, reproduzida em um painel logo à entrada, é como uma enorme epígrafe, preparando o espírito do visitante para o que virá. Mas é a aquarela surrealista de Oda Jaune que abre a exposição de maneira eloquente. No quadro, uma mulher devora outra, ao mesmo tempo em que é devorada, e a imagem da mulher devorada se torna espelho da mulher que come, sugerindo, nessa ambiguidade, a questão: quem é, enfim, o canibal?

Fat Man: The Matrix of Amnesia, de John Isaacs, 1998

Afeito a abalar as noções etnocêntricas do Ocidente, Lévi-Strauss exorciza a noção de canibalismo, indagando qual seria a diferença real entre o ato de devorar outro ser humano e certas práticas de nossa sociedade, como a introdução voluntária de partes alheias no próprio corpo por injeção, enxerto ou transplante, ou seja, a incorporação biológica como uma maneira diversa de se apropriar do outro. É com esse espírito que Jeanette Zwingenberger, curadora da exposição, selecionou os trabalhos, numa idéia de canibalismo que contrasta, e se pretende mais radical, do que a noção positiva da antropofagia de Oswald de Andrade, expressa em seu manifesto de 1928.

— (Lévi-Strauss) se pergunta como é a unidade do corpo atualmente em nossas sociedades e a ligação de parentesco entre nós — afirma Jeanette no vídeo da Maison Rouge que apresenta a exposição.

Vanitas: robe de chair pour albinos anorexique, 1987. Viande de boeuf crue sur mannequin: vestido de carne de Jana Sterbak

E, nesse sentido, a curadora indiretamente reforça a distinção entre canibalismo e antropofagia. O primeiro está associado à noção de comer carne humana para saciar a fome, num ato aleatório e individual; ao passo que o segundo se refere à ideia de ritual coletivo, em que a deglutição evoca simbolismos importantes para os ritos do grupo social. Enquanto Oswald recupera esta última forma para falar de uma cultura nativa brasileira que se abre para o mundo pelo rito antropofágico, a exposição trabalha mais com a primeira noção.

Somos todos canibais se desdobra em várias seções. Entre elas, a figura do estrangeiro e a idéia do não-humano; a relação com o outro e a noção de identidade coletiva e individual, num jogo em que a metamorfose através da deglutição tem um alto poder simbólico; o erotismo e o amor; a violência e a crueldade, sobretudo através do sacrifício; e as noções de canibalismo que perpassam as narrativas infantis, mediantes lendas e contos, evocando inclusive uma preocupação cara à psicanálise: o sadismo das crianças. Nesse sentido, merece destaque a obra de Jerôme Zonder, que nos faz mergulhar no mundo da infância e sua ambiguidade entre inocência e crueldade. No imenso painel, duas meninas, armadas de faca, brincam com um adulto amarrado a uma cadeira, com o rosto coberto por um saco.

Da série Inri, de Bettina Rheims

A brasileira Adriana Varejão trabalha com ladrilhos e azulejos, uma referência à presença colonial portuguesa no Brasil, em sua Azulejaria Branca em Carne Viva, de 2002. A parede límpida, no entanto, se rompe em certo ponto, deformada por entranhas sangrentas, que mancham a alvura dos azulejos, ao ganharem volume e densidade, simbolizando a carne dos nativos dizimados pelo colonizador. Eis novamente a ambiguidade: quem foi o canibal? O português ou o tupinambá? Ao mesmo tempo, as entranhas que mancham os azulejos de Adriana são uma metáfora do nosso próprio interior, “esse tabu, essa face escondida de nós mesmo”, nas palavras de Jeanette.

A fotógrafa Bettina Rheims, celebrizada por seus modelos incomuns, apresenta uma inquietante fotografia que representa a virgem, tirada de sua série chamada Inri. Do seio desnudo, em vez de leite, uma gota de sangue, simbolizando o sacrifício de Cristo. Cindy Sherman também apresenta uma mulher, que segura o seio, como se o oferecesse como fonte de alimento. A foto sugere que o primeiro “canibal” é a criança ainda no ventre. Seu primeiro anseio por alimento tem como foco o leite da mãe.

Um dos salões da Maison, com o quadro de Vik Muniz no centro, abrindo a seção Saturno devora seus filhos

Ainda no campo da fotografia, porém documental, a exposição também apresenta tiragens antigas, feitas entre 1893 e 1895, durante expedição científica da Royal Academy of London. Nelas, aparecem guerreiros das Ilhas Fiji, retornando da caça, com seres humanos. Na mesma seção, portraits de canibais. As fotos são perturbadoras.

A exposição tem ainda uma seção que homenageia o pintor e gravador Francisco de Goya (1746-1828), com gravuras de sua série Caprichos e a pintura que representa Saturno devorando os filhos, baseada na mitologia grega, em que Saturno devora os filhos para evitar que se cumpra a profecia, segundo a qual um de seus herdeiros o destronará. Não por coincidência a seção foi batizada de Goya e seus herdeiros. Entre eles, o brasileiro Vik Muniz, presente com uma imensa fotografia também representando Saturno no ato de devorar um dos filhos, feita a partir de lixo e entulho recolhido por catadores do Lixão de Gramacho, o maior aterro sanitário do mundo.

Cindy Sherman, sem título, 1990

Somos todos canibais é um ensaio extraordinariamente variado. O visitante mais sensível não sairá da exposição da mesma forma que entrou. O forte simbolismo das obras selecionadas em torno da ideia de canibalismo se desdobra em inúmeras possibilidades, todas elas demasiadamente humanas.

Serviço:
Exposição Tous cannibales (Todos canibais)
De 12 de fevereiro a 15 de maio, de quarta-feira a domingo, das 11h às 19h
(na quinta-feira, até 21h)
Ingresso: 7 euros (inteira) 5 euros (tarifa reduzida, para jovens de 13 a 17 anos e maiores de 65 anos)
La Maison Rouge
Fondation Antoine de Galbert
10 bd de la bastille – 75012 Paris
Paris www.lamaisonrouge.org
info@lamaisonrouge.org
t : +33 (0)1 40 01 08 81
f : +33 (0)1 40 01 08 83

Lista dos artistas que participam da exposição (em ordem alfabética pelo sobrenome):

Makoto Aida, Pilar Albarracin, Gilles Barbier, Michaël Borremans, Norbert Bisky, Patty Chang, Jake & Dinos Chapman, Will Cotton, Lucas Cranach, Wim Delvoye, Erik Dietman, Marcel Dzama, James Ensor, Renato Garza Cervera, Camil lede Galbert, Francisco de Goya, J. J. Grandville, Sandra Vasquez de la Horra, Pieter Hugo, Melissa Ichiuji, John Isaacs, Oda Jaune, Michel Journiac, Fernand Khnopff, Frédérique Loutz, Saverio Lucariello, Alberto Martini, Suehiro Maruo, Philippe Mayaux, Patrizio Di Massimo, Théo Mercier, Yasumasa Morimura, Vik Muniz, Wangechi Mutu, Álvaro Oyarzún, Chantalpetit, Giov. Battista Podesta, Odilon Redon, Félicien Rops, Bettina Rheims, Toshio Saeki, Cindy Sherman, Dana Schutz, Jana Sterbak, Adriana Varejâo, Joel-Peter Witkin, Ralf Ziervogel, Jérôme Zonder.

3 comentários:

Anônimo disse...

só de ler, a expo já mexeu comigo... beijao

Anônimo disse...

só de ler, a expo já mexeu comigo... beijao

ipaco disse...

Pois é, uma exposição pra mexer com a gente...