segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Marché D'Aligre, meu campo em Paris

O mercado coberto, de 1779. Há todo tipo de produto alimentício aí dentro, de loja especializada em azeites de oliva a cortes especiais de carne. Do lado de fora, uma feira comum e outra de antiguidades

O Marché D’Aligre foi criado no século XVIII, localizado entre o fanbourg Saint Antoine e a rue Chariton. Era um mercado criado para alimentar a população da área, composta basicamente de artesãos e comerciantes. Bastante popular e marcado pela presença de trabalhadores e operários, o fanbourg Saint Antoine foi um dos pontos de revolta contra os regimes antigos, que vieram culminar na Revolução Francesa, a derrubada da Bastilha e a criação da República. A parte coberta do mercado foi construída em 1779 e o nome Aligre é uma homenagem a uma viúva que ajudava o orfanato das crianças abandonadas (naquela época, cerca de mil crianças eram abandonadas pelos pais nas ruas de Paris) que eram recolhidas — o Hospice des Enfants Trouvés. Mais tarde, o orfanato foi derrubado para dar lugar à praça Trousseau, mas o mercado coberto permaneceu.

Os vestígios do passado estão por todas as partes no mercado, que abre todos os dias, exceto às segundas-feiras. No domingo, por volta do meio-dia, é o momento de maior movimento e uma boa ocasião para ver a mistura dos antigos (magrebinos, operários, comerciantes e artesãos) e novos moradores do bairro, os bobos (contração da expressão bourgeois-bohème), são jovens de classe média alta, profissionais liberais com dinheiro que estão se mudando para o bairro que, até então, permaneceu popular. Minha amiga, que me hospeda nesse início de temporada, me disse que comprou seu apartamento aqui relativamente barato, mas hoje não conseguiria financiá-lo e, se decidisse vendê-lo, valeria pelo menos quatro vezes mais. Isso porque o bairro está todo sendo reformado, ou revitalizado, como preferem adjetivar as autoridades.

Há um movimento (não sei ainda de quem, se das autoridades ou de parte dos moradores) para não deixar o mercado funcionar todos os dias, com exceção da segunda. Mas já há igualmente resistência. Ontem, havia um abaixo-assinado pedindo para que o Marché D'Aligre continue funcionando como sempre, iniciativa dos comerciantes do mercado.

Ao contrário de Botafogo, onde tudo — vilas, prédios antigos, praças etc. — é derrubado para dar lugar a novos empreendimentos imobiliários, em Paris não se pode tocar nas fachadas. Portanto, as reformas são internas. Do lado de fora, tudo permanece igual. Mas, ao entrar, por exemplo, nas novas lojas que abriram na esteira dos bobos (pronuncia-se bobôs), leva-se um susto : tudo moderno e novinho, com decorações suntuosas. Na esteira dos novos moradores, surgiram no bairro cafés sofisticados, livrarias especializadas (em arquitetura, por exemplo), galerias de arte, entre outros tipos de comércio que vão substituindo os velhos alfaiates, reparadores de bonecos, relojoeiros, entre outros.

Ao mesmo tempo, há resistência às mudanças. Associações de moradores e outros gruos organizados do bairro (centros culturais, ateliês comunitários etc.) promovem discussões e tentam integrar os vizinhos, com a ideia de reforçar uma identidade de bairro. Há ainda uns hotéis que alojam sem-tetos e pessoas pobres com subsídios do governo, mas em vez de cobrar por mês, cobram diárias comuns (70 euros). Esses hotéis acabaram virando favelões, onde vivem sobretudo imigrantes magrebinos. Mas agora, na era Sarkozy, isso está sendo desmontado e as pessoas, realocadas para outras áreas. Ou seja, há claramente um movimento de aburguesamento do bairro, que permite traçar um paralelo com Botafogo.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

De malas prontas

Festa na rua: os tambores uruguaios do Candombe na rua Fernandes Guimarães, em Botafogo

A partir da semana que vem, salvo algum imprevisto burocrático, este escriba colocará a mochila nas costas, uma rede de mosquitos, e irá se aventurar pelo mar bravio, na tarefa antropológica de estudar os nativos gauleses d’além mar. Eles que, como qualquer cultura humana, se julgam o centro do universo e o modelo de civilização, a ponto de duvidar se o resto do mundo é mesmo humano, sobretudo quando pensam em nós, da banlieue do Ocidente, certamente terão um choque ao ver este ser que vos escreve, oriundo dos trópicos, ainda esbaforido do calor de 40 graus, perambulando de bermuda alegremente pelas ruas de Paris, durante os próximos meses.

O que me leva a essa viagem é uma bolsa de pós-doutorado, obtida graças ao apoio do convênio entre a Capes e o Cofecub, do qual o (Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS/UFRJ), ao qual pertenço, é um dos participantes. Como bolsista da Capes, preparei um plano de estudo que tem a ver com a etnografia que venho fazendo deste pequeno enclave de Botafogo, conformado pelas ruas da Passagem, General Polidoro e Álvaro Ramos e cujas reflexões, venho narrando aqui neste Pendura. Minha idéia é comparar dois bairros de Paris — Belleville e Marché D’Aligre —, que estão vivendo um processo de aburguesamento, com as transformações que estão ocorrendo na morfologia social de Botafogo, pelas razões explicitadas nos posts abaixo. Em Paris, como não poderia deixar de ser, os motivos são distintos, tendo outros fenômenos, como a imigração, por exemplo, como fatores das transformações dos bairros.

Lá, minha pesquisa estará sendo coordenada pelo professor Laurent Thévenot, na École des Hautes Études em Science Sociales (EHESS), ao passo que, no Rio, continuarei com a orientação e o apoio do meu querido prof. Marco Antonio da Silva Mello (coordenador do LeMetro), que me aturou no mestrado e no doutorado. São dois feras das ciências sociais, o que coloca um grande desafio sobre meus ombros. Será um séjour curto, de uns quatro a cinco meses, mas tempo o suficiente para levantar um bom material bibliográfico, participar dos seminários da EHESS e outras instituições acadêmicas e fazer um mapeamento inicial de um trabalho de campo nos dois bairros.

A pracinha Mauro Duarte: de dia balanço, à tarde, festa na rua

Se Botafogo (e o Rio de Janeiro como um todo) tem peculiaridades, como o boom econômico, a realização das Olimpíadas em 2012 e a Copa em 2014, entre outros, como fatores de estímulo a uma bolha imobiliária com impacto na morfologia social do bairro, em Paris, esses dois bairros enfrentam a chegada de forte leva de imigrantes asiáticos e uma classe média, em busca de uma noção de vizinhança “autêntica”. São jovens profissionais liberais, executivos e empreendedores que se mudam para Belleville e Marché D’Aligre em busca de um status distinto daqueles dos chamados beaux cartiers (bairros burgueses), de onde vêm. Um pouco como a onda de morar em Santa Teresa, que atraiu um tipo de classe média carioca. Mas os novos moradores, com hábitos e poder aquisitivo distintos, acabam mudando o perfil do bairro e a noção de autenticidade que os atraíra em primeiro lugar, é a primeira a se transformar em outra coisa.

Também pretendo buscar um contato com as organizações civis que defendem os interesses dos moradores dos bairros, como associações de moradores, centro culturais, órgãos públicos municipais etc. A impressão que tenho, por histórias que ouvi e vendo daqui de longe, pelos sites, é que os parisienses são bastante mobilizados nas questões de bairro e as mudanças lá enfrentam ferrenha resistência. Dificilmente aconteceria lá o boom imobiliário que vem deformando Botafogo, sem uma resistência mais forte. Mas a mudança da identidade de um bairro não se dá apenas pelas transfigurações imobiliárias. As substituições de população, os grupos sociais que vão invadindo e fagocitando trechos, são suficientes para mudar a morfologia da rua, sem que se tenha derrubado um sobrado.

No caso de Botafogo, acho que é importante fortalecer as entidades civis e as iniciativas culturais que reforçam a noção de bairro, de proximidade das pessoas. Hoje, por exemplo, haverá mais um evento na pracinha Mauro Duarte: o bloco do Barbas fará uma espécie de esquenta carnaval. Na semana passada foi o Bola Preta, que transformou a praça num festival de marchinhas. Outro dia, teve uma procissão religiosa pela padroeira do bairro. Também acho que temos que valorizar o comércio de rua, sobretudo os botequins e casas de pasto, mas também, os barbeiros, manicures, sapatarias, padarias, farmácias etc. Locais semipúblicos, onde se troca informações sobre o bairro, áreas de sociabilidade comum. São essas pequenas instituições que fortalecem a noção de bairro a ponto de mobilizar as pessoas contra as mudanças desordenadas, sem critérios comuns, exceto o lucro dos empreendedores.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A cidade dos arquitetos

A pracinha Mauro Duarte e a rua Fernandes Guimarães ao fundo. Mais um condomínio será erquido no local

O assunto está no ar. O Segundo Caderno do Globo publicou uma reportagem interessante da Catharina Wrede no último sábado sobre a arquitetura da cidade. É verdade que teria sido mais abrangente e interessante se a reportagem não tivesse se restringido à visão dos arquitetos, englobando a voz de urbanistas, sociólogos, historiadores, antropólogos, geógrafos e outros pensadores da cidade, assim como, talvez, moradores que vivem nos bairros em constante transformação. Tenho sempre a impressão de que os arquitetos querem o monopólio da discussão sobre a cidade, como se tudo fosse uma questão de linhas arquitetônicas e de fachadas com estilo. E, assim, caímos no velho debate entre a visão racionalista dos modernistas, como Le Corbusier, Niemeyer e Lúcio Costa, ante uma visão mais, digamos, orgânica da cidade.

Mas o fato é que a grande arquitetura que domina hoje na cidade é a arquitetura comercial, dos condomínios fechados, da lógica defensiva, impregnada de uma ideologia elitista e segregacionista dos espaços urbanos. A estética cafona desses empreendimentos é menos importante do que a promessa de exclusividade e auto-suficiência que eles oferecem. A reportagem, que ouviu vários arquitetos, aponta mesmo para o fato de que os estilos arquitetônicos reconhecíveis do Rio de Janeiro pararam na década de 60. Trata-se do que sobrou do período colonial ou das reformas de Pereira Passos, da art déco dos anos 30-40, até os exemplos modernistas da década de 60. A partir daí é um mundo diluído, sem um "rosto" reconhecível, comercial.

Todas essas observações são reconhecidas pelos arquitetos entrevistados pela Catharina. Alguns apontam que o Rio perdeu o papel protagonista na construção de uma identidade arquitetônica brasileira e que os profissionais do setor não se preocupam com o que vai sendo erguido na cidade, de prédios a viadutos, que sobem sem critérios ou discussão. Ou seja, se não há uma discussão arquitetônica, de estilo, muito menos há uma sobre os impactos e os efeitos dessas intervenções na morfologia social dos bairros. Não se trata só de debater linhas estéticas do casario, das avenidas, viadutos, praças etc. mas refletir também sobre como essas construções interferem na vida cotidiana do bairro, das pessoas que moram nele. Por isso, esse debate é sério demais para se restringir a arquitetos.

Enquanto isso, já está anunciada a construção de mais um espigão na saturada rua Fernandes Guimarães, em Botafogo, Solar não sei das quantas. O cartaz indica o sucesso de vendas e que é bom quem estiver interessado correr, pois estão negociando os últimos apartamentos. Mas, nas conversas da esquina, só ouço lamentações. Mais um prédio para fazer sombra nas vilas e casas que restam, mais carros na saturada rua, mais um condomínio exclusivo, fechado e de costas para o bairro, ajudando a esvaziar as calçadas, as praças e a vida da esquina.