domingo, 27 de janeiro de 2013

Caipirinha Appreciation Society

Kika Serra e MC Suing fazem, já há algum tempo, um extraordinário programa de rádio, via podcast, chamado Caipirinha Appreciation Society. Trata-se de música brasileira na veia, mas não os clichês que abundam as rádios brasileiras e festivais patrocinados por gravadoras. Ou seja, trata-se de uma rádio em que se pode ouvir coisas interessantes, raras, criativas, artistas geniais desconhecidos, e poder ter uma ideia de que música brasileira não se conformou a uma ordem industrial internacional e continua sendo de algum modo original e criativa.

Graças à Kika e ao MC Suing, vê-se que a tese de Hugo Sukman, de que o tropicalismo colocou a MPB na ordem mundial do pop e matou o que havia de diferente e original na música do país, é uma verdade relativa. As pessoas continuam compondo de forma independente e criativa, o problema é que não têm voz na mídia tradicional.

No site deles, quem quiser pode se inscrever para receber as atualizações dos programas e ouvir programas anteriores, todos armazenados como podcast. O Caipirinha Appreciation Society pode ser acessado aqui, e o Google+ vai fazer uma transmissão especial deles sobre o carnaval.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

No quarto das meninas

Jovem Karajá que passou pelo ritual que a torna uma adulta na aldeia e lhe confere as marcas dos Karajá, o círculo tatuado nas bochechas (fiz essa foto na aldeia Karajá da Ilha do Bananal, em 1987).

A fotógrafaa libanesa Rania Matar migrou para os Estados Unidos nos anos 1990, onde, depois de ter se formado em arquitetura, se dedicou à fotografia. Em seu site oficial, que pode ser acessado aqui, ela apresenta uma série de retratos de adolescentes na intimidade de seus quartos. São adolescentes americanas, libanesas, refugiadas palestinas entre outras. Suas fotos mostram o que há de comum e de distinto entre essas meninas-a-se-tornarem-mulheres com uma riqueza de detalhes que só uma imagem pode mostrar. Algo bem além das palavras para os corações sensíveis. Estão ali o que aproxima essas meninas e o que as separa, como, por exemplo, o lenço muçulmano. Suas imagens insinuam sonhos que se tocam, no devir feminino que vai se constituindo, mas que são culturalmente distantes ao mesmo tempo.

A adolescência não é um fenômeno da natureza. Está na ordem da cultura. Da nossa cultura, genericamente chamada de ocidental. É, portanto, uma invenção nossa. Em algumas outras culturas esse longo período de transformação da criança em adulto se dá por meio de ritos de passagem, em que a criança se torna adulta para a sociedade onde está inserida, e para si própria, em sua subjetividade. Quando estive com os índios Karajá, na Ilha do Bananal, entre Tocantins e Mato Grosso, nos idos de 1980, percebi bem esse processo. Havia adultos e crianças. Nenhum adolescente. Apenas jovens adultos, empenhados na divisão do trabalho da aldeia. O tuxaua Maurê me contou que as meninas quando menstruam pela primeia vez são isoladas, na casa das mulheres, onde são socializadas nas coisas do mundo feminino. Quando saem, após um período relativamente longo, já são consideradas adultas, independentemente da idade, aptas a casar e assumir as tarefas das mulheres na aldeia. Elas então ganham a marca dos Karajá, um círculo tatuado com espinha de peixe em cada bochecha.

Andrea, libanesa de Beirute, em seu quarto. Reparem nas medalhas. Foto de Rania Matar

Por sua vez, entre os índios Maué, no médio rio Amazonas, os meninos passam pelo ritual do Tocandira ao se tornarem homens. Tocandira é uma formiga-de-fogo, preta e minúscula, cuja picada provoca dores lacinantes, similares à picada de vespa. O ritual consiste em danças e cantos, em que os meninos vestem uma série sucessiva de sete luvas repletas das tais formigas. O pajé dá umas baforadas de fumo mágico nas luvas, e os garotos dançam e cantam em um círculo formado por mulheres no primeiro anel e homens no segundo. Luva após luva, cada um deles dança na sua vez até que uma das mulheres, compadecida ou interessada, tira o menino do círculo e o leva para sua rede, onde começa uma espécie de casamento. Se, por acaso, o jovem não for escolhido por uma das mulheres, o xamã, então determina o momento em que ele conclui o ritual.

Brianna, adolescente americana, também fotografada por Rania Matar

Em todas as culturas humans, a passagem entre isso que chamamos infância e aquilo que chamamos vida adultua é sempre marcada ritualisticamente. Afinal, a adolescência não deixa de ser um longo rito de passagem na nossa sociedade. O mesmo, aliás, pode ser dito em relação ao nascimento e à morte. Nenhuma sociedade ou cultura é indiferente a esses fenômenos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Feito tatuagem

A revista New Yorker, na sua seção Photo Booth, traz na presente edição um slide show de mulheres tatuadas no início do século passado, revelando que a relação entre a inscrição no corpo das mulheres da cultura ocidental de desenhos, símbolos e textos é bastante antiga. Veja o link aqui. Peguei "emprestado" da revista duas fotos que me chamaram muito a atenção. A primeira foto é de Maud Wagner, que me impressionou pela expressão dos olhos, tão bem capturadas no portrait, mais do que pelas tatuagens. A foto é de 1911 e ela é considerada a primeira tatuadora americana. O outro retrato é de Bobbie Librarry, tirada em 1976 por Inogen Cunninghan, quando ela tinha 93 anos, a poucos meses de sua morte.

Fico imaginando essas duas mulheres americanas, naquele mundo vitoriano, puritano e positivista. Deviam perturbar a ordem das coisas. Isso me lembrou uma amiga que, recentemente, ensaiou duas vezes a intenção de ser tatuada para marcar um momento muito especial de sua vida. Na hora H, porém, ela desistiu. Talvez porque o que ela esteja vivendo tenha a ver com "trasitoriedade", como ela mesma definiu; e não deixa de ser, a meu ver, uma certa contradição marcar esse "movimento" com algo tão definitivo.


Fiquei pensando nos sentidos intimos que as pessoas dão à tatuagem (e às outras inscrições no corpo, como piercings, depitlações eternas, malhações, cirurgias etc.). Hoje, tatuagem se tornou algo tão comum e tão "na moda", que não consigo deixar de pensar que houve um esvaziamento dos sentidos mais profundos de tal gesto. No fim, ele perdeu força. Por isso, fiquei aliviado que minha amiga, tão extraordinariamwnte singular, tenha desistido (pelo menos temporariamente) de fazer a sua. Até porque há outras formas de celebrar seu rito de passagem, tão dolorido como libertador.

No mais, estou começando a achar que num mundo tão pulverizado de sentidos e ideais como o atual, onde somos afogados por tantos significados, informações e palavras, não ter qualquer sinal gravado no corpo talvez seja a atitude mais radical de todas. 

PS: O Francisco Bosco respondeu ao que parece ter sido uma série de críticas à sua coluna da semana passada sobre a Índia. Ele não menciona as ponderações que fiz no post abaixo, mas cita a questão do etnocentrismo e o classico antropológico de Louis Dumont, Homo Hierarchicus, sobre a Índia. Vale a pena ler a resposta dele, disponível aqui.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A Índia de Bosco e Antonia

Em sua coluna semanal no Segundo Caderno do Globo, Francisco Bosco usou a notícia sobre o estupro coletivo de uma jovem de 23 anos em Nova Délhi, que resultou em sua morte, para contar suas impressões pessoais sobre a misoginia na Índia, a partir de uma viagem realizada com sua mulher, minha amiga Antonia, há alaguns anos. O ataque, com requintes de perversão e violência, provocou uma onda de protestos no país e revoltou a chamada comunidade internacional. A pressão oriunda da indignação geral foi tão grande, que acabou resultando na aprovação às pressas de uma legislação que torna mais severas as penas para agressões contra as mulheres, algo bastante comum e quase sempre impune.  

Esse caso já havia chamado minha atenção não apenas como fait divers, mas pela forma como foi coberto pela imprensa em geral. De todos os jornais que acompanhei, apenas o francês Le Monde e o americano New York Times fizeram um esforço para contextualizar a história dentro da complexidade cultural indiana. Nem mesmo o El País foi além da história do estupro. Essa contextualização é importante especialmente para quem não é indiano e desconhece a complexidade cultural daquela sociedade: patriarcal, misógina, dividida em castas, impregnada de tradições religiosas conservadoras se olhadas do ponto de vista ocidental, onde os casamentos são ainda arranjados segundo determinados valores etc. 

O ataque não foi apenas um estupro coletivo qualquer, mas uma reação furiosa contra uma classe média que vem surgindo na Índia, estimulada pelo avanço econômico como potência emergente, e que vem incorporando alguns valores seculares ocidentais. Os seis assassinos e estupradores mostraram todo o seu ódeio contra essa nova Índia, expressa nas roupas e nas maneiras do jovem casal de estudantes. Enfim, não sou especialista em Índia, mas, talvez, a "afronta" maior do casal, e sobretudo da jovem, tenha sido a expressão de um individualismo, como valor moral, em uma sociedade traficional, patriarcal, misógina, e extremamente hierarquizada em seus valores.

Me lembrei do episódio da jovem que foi agredida em Ipanema, nos anos 80, por fazer topless. Hoje, não crieo que haveria tanta reação, embora, se não me engano, o topless seja proibido por lei. Será que mudamos tanto? Valores e costumes estão sempre em choque nos processos sociais urbanos, pois as metrópoles vão se transformando incessantemente, apesar de vivermos nossos costumes como imutáveis e absolutos.

Esperei que Bosco, um filósofo que admiro muito, fosse fazer uma avaliação mais sensível da Índia e acabei surpreendido por um certo etnocentrismo, expresso ao narrar o sufoco que passou com Antonia na viagem dos dois à Índia e, sobretudo, Nova Délhi, descrita por ele como uma metrópole caótica, densa e provinciana.  Ele chega a mencionar a falta de capacidade da população local de relativizar o outro, o estrangeiro com costumes distintos, como sintoma de provincianismo, sem se dar conta da sua própria falta de relativização nesta análise generalizadora daquela sociedade. Eu que fou fã dos textos dele, confesso que fiquei surpreso com essa falta de, digamos, sensibilidade antropológica. 

Em determinado momento ele conta que foram visitar uma mesquita, cujo acesso se dá por uma rua estreita de bazar (que ele chama de camelôs, diluindo toda riqueza do suq árabe), e acabaram barrados grosseiramente porque Antonia estava de bermuda. Taí a expressão nítida de um choque cultural. Mas creio que se faltou sensibilidade aos guardiões muçulmanos do templo, também faltou sensibilidade ao casal brasileiro em entender que estava num país estrangeiro, com costumes tradicionais e religosos conservadores, e que era preciso observar essas regras. Não dá simplesmente para achar que o mundo todo tem que aceitar o padrão ocidental como valor cultural universal. Até porque aniquilaria as diferenças culturais tão fundamentais para a sobrevivência do ser humano. 

Por outro lado, perdoo Bosco, pois escreveu seu texto a partir do sentimento de amor e proteção à minha querida Antonia, o que torna uma análise mais isenta difícil. E é particularmente comovente, em sua narrativa, a parte em que descreve a crise de choro de minha amiga, sua mulher. Qualquer leitor sensível terá, no mínimo, compreendido a frustração de Antonia naquele momento.

A deplorável violência contra as mulheres na Índia está dentro de um contexto cultural complexo. É preciso entendê-lo. A reação da população à violência dos estupradores mostrou exatamente o tipo de choque cultural que está acontecendo ali e, mais do que isso, aponta para mudanças importantes, que se estabelecerão ou serão violentamente massacradas pela tradição. O tempo dirá.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Folhas no chão

Querida amiga, o farfalhar do vento nas folhas soltas em minha mesa espalhou ideias pela casa e me fez perceber o silêncio. Não fora o torvelino espiralado dos papéis em branco dançando no ar, não me teria dado conta do escorrer silencioso do tempo, dilatando os dias, prolongando as horas, lento avanço, enquanto espero um sinal de vida. Passado o susto, tento desintegrar a nuvem de concreto, transcender o virtual e respirar o mesmo ar. Talvez seja tarde demais. O tempo empedrou meus extremos, os ossos doem e meus olhos enxergam em preto e branco. Mas há algo ainda que pulsa, amiga. Desconfio que ainda sei abraçar e tenho sede de amor.