sábado, 22 de outubro de 2011

Mundana



Ela gostava mesmo era de uma safadeza. Mas, naquela época, não se faziam as coisas assim, como hoje. Tudo era escondido. Guardava-se a sete chaves a brincadeira, o mostra-a-sua-que-eu-mostro-o-meu. Por isso mesmo tudo era melhor. O escondido é tempero para o prazer mundano. E como gemia. Um arfar como hoje não se ouve mais. Suspiros aspirados por entre dentes, os olhos semicerrados. Tinha pêlos, cheiros, curvas e, orvalhada, se desmanchava. Tão deliciosa quanto mundana. Era só esfregar, e ela se entregava toda, sorrindo, marota. Agarrava, unhava e gritava esquecida. Estrebuchava apaixonada e gozava sem culpa. Mas bastava qualquer sinal, um pio que fosse, e ela se empedrava. Desamarrotava a roupa e vestia o ar pio, a cara de santa. Ave, Maria! Era coisa de roça, coisa daqueles tempos de vergonha e juízo. Nada como hoje. O pai a criou na peia, bastava o erro mais tolo. Era cinto no lombo, palmatória na mão ou os joelhos no milho. Mas pau que nasce torto... E ela tinha alma de puta. Bastava a mão boba, o sarro, e ela se abria. Depois deitava quase satisfeita, o sorriso maroto, e brincava de misturar nossos nomes. Sonhava com família e filhos. Mas àquela época eu ainda caçava estrelas. E, às vezes, a esquecia na penumbra de nossa esquina, à espera, sozinha. Até que um dia se casou. Homem de posse e dinheiro, disseram. Viu o tesouro esquecido e a levou. E a menina mundana que brincava comigo se foi para sempre. Estrangeiro, afirmaram. E, hoje, quando passo pela esquina de nossa penumbra, tiro os olhos das estrelas, e suspiro, entre dentes, um vazio. O que não fui se mistura à saudade de quem se foi e me perturba o dia. Mas à noite é pior, quando meu sono ganha contornos de um sorriso maroto.

sábado, 15 de outubro de 2011

Querida amiga:

Sempre que dirijo estas linhas a você, um outro você se insinua e torna tudo infinito. Perco então o sentido estrito que a desenha em mim e em vez de engrandecer a narrativa, empobreço-a, perdido nessa polifonia que nivela todas numa única mesma. Assim, diluída em sua inteireza, você se torna um resumo precário. Não a encontro mais em meu foco e seu rosto ganha feições irreconhecíveis, evocações imprecisas.

Essa outra voz se impõe, puxada por alguma associação que as une, você e ela. Talvez, o mesmo êxtase ou a culpa cruel que ele provoca. A voracidade, sem fome, que esquece o sabor e devora a vida. Só sei que esse ser intruso interfere no conteúdo da frase, altera adjetivos e impõe verbos solitariamente intransitivos e impessoais. Reina soberano no texto. E quando a fragmentação já contamina os parágrafos, um terceiro outro se soma à dupla inicial; e um quarto; um quinto... E, pronto, você é uma legião.

De modo que, nas esquinas das frases, mesmo de mãos dadas, me encontro e me perco em você. Mas, seja quem for o destinatário, querida amiga, se lhe escrevo é porque o tempo é curto. Há, portanto, urgência nestas linhas, ainda que não inteiramente suas. Não sei bem onde é o incêndio. Sinto-o perto e me aflijo. Tento escapar desse campo onírico, onde o enredo, cheio de desejo e fúria, se solta indomável. Sua felicidade, porém, não se desfruta. Só é possível vazia de sentidos, pois engloba tudo, ao mesmo tempo em que é nada.

Mas não cabe a Quixote desafiar a razão? Então, sob o sortilégio do discurso épico, construo a felicidade irreal e só temo a mediocridade. Pois é esta que, numa dialética perversa, torna a exuberância possível, enquanto se impõe como preço a pagar. Fadado ao infortúnio da insignificância, mais e mais mergulho no fulgor fantasioso, tristemente radiante em minha alienação. E, após séculos na floresta, desenvolvo o gosto por cipós e igarapés. Aprendo a navegar em rios perigosos, olhando as estrelas, onde se deita, querida amiga, seu corpo perfeito e intocável.

No entanto, à medida que o fogo da vida devasta as ramagens inventadas, me aproximo do fim do sonho. É a realidade que me chama. Às vezes, traz a conta de tantos moinhos destruídos: dores no corpo, limites, idade. Mas é sempre generosa ao se pôr, linda ou feia, ao alcance da mão. Sem saber direito como respirar nesse mundo feito de tanta vida, vou me desamarrando de impossibilidades maravilhosas. E troco o rosto indefinido, múltiplo, por seus olhos, querida amiga, que me fitam pela primeira vez.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Histeria

Ela diz que não é
Que não quer... quem sabe, talvez
E sorri um sim escondido
Encardido amarelo, enrustido
Ela diz que não deita
Que não sou de sua seita
Mas aceita, esquecida, o carinho
Se ajeita, e abre, quase sem culpa,
O caminho das Índias
Goza perplexa, e morre de susto
O prazer espremido, derramado
Esquecido, no sim apressado
Grito abafado, logo afogado
Enquanto diz que não quer
Que não é... quem sabe, talvez


sábado, 1 de outubro de 2011

A ciência do esculacho

Amigos, reproduzo abaixo minha resenha, publicada hoje no Prosa & Verso, o suplemento literário do Globo, sobre a bela etnografia que meu amigo Lenin Pires fez sobre os camelôs que trabalham nos trens da Central do Brasil. A foto acima é do autor, de um dos vendedores ambulantes.

Quando decidiu tomar como objeto de sua dissertação de mestrado o comércio informal de ambulantes nos trens que ligam as zonas Oeste e Norte e a região metropolitana fluminense à Central do Brasil, o antropólogo Lenin Pires se viu confrontado pela expressão “esculacho”, que, por seu poder de iluminar certa realidade social, se tornou um guia condutor de sua reflexão. Foi em 2003, durante uma reunião entre camelôs que se organizavam para negociar com a Supervia o que consideravam ser uma espécie de legalização de sua atividade nos trens e estações, e, assim, evitar o “derrame", isto é, a tomada de seus produtos por agentes de segurança.


Na reunião, diz Pires, “um camelô, em sua expressão cansada, olhar cabisbaixo, comentou baixinho com um colega: ‘O derrame eu até entendo. O derrame é do jogo, tudo bem. O problema é o esculacho’”. No dizer antropológico, derrame e esculacho são categorias nativas, expressões do grupo estudado que qualificam de forma clara os limites morais da realidade que vivem. Mas, diferentemente de derrame, esculacho, no sentido dado pelas pessoas pesquisadas, descortina um sistema de relações e valores. Esculacho é uma forma intolerável de desrespeito, desconsideração e negação do outro, que se situa no limiar da exclusão social. Extrapola, portanto, a regra do jogo, e entra no campo do insulto moral, pois, além de submeter o ator à ordem já desigual, ainda o humilha.

No prólogo, o autor dá um outro exemplo de esculacho, dessa vez coletivo, com consequências devastadoras. Pouco antes das 8h de uma manhã de agosto de 1996, quando o sistema ferroviário era administrado pela Companhia Estadual de Trens Urbanos (Flumitrens), a estação do Engenho de Dentro estava lotada: as composições, mais uma vez, rodavam com atraso. Situação que não apenas trazia o desconforto da espera, enquanto a plataforma enchia cada vez mais, mas se estendia, em suas consequências, ao repertório de explicações ao qual os usuários se veriam obrigados a recorrer para justificar no trabalho o atraso.

Mas como o que é ruim sempre pode piorar, a notícia chegou pelo boca a boca e tomou conta da plataforma: um outro trem, que seguia da Central do Brasil para Deodoro, descarrilara e todos os ramais de acesso ao Centro do Rio estavam bloqueados, afetando cerca de 400 mil pessoas. Por volta das 8h30m, em meio à tensão crescente, um funcionário da Flumitrens informa pelo sistema de som da estação de Engenho de Dentro: “Atenção senhores passageiros, a Flumitrens informa: o trem não tem condições de continuar. Vocês vão ter que se virar para conseguir condução.”

Tomadas como um insulto, as palavras do funcionário da Flumitrens desencadearam um dos maiores quebra-quebras da cidade. Trens, plataformas, bilheterias e trilhos foram destruídos numa onda de fúria que só não acabou no linchamento de funcionários, porque eles se esconderam ou fugiram. O caos durou cerca de uma hora e só foi interrompido com a chegada da tropa de choque da Polícia Militar. Moral da história: esculhamba, mas não esculacha.

É por meio de categorias nativas como esculacha que o antropólogo tira da sombra a realidade dos camelôs que circulam nos trens da Central, vendendo todo tipo de mercadoria. Ele descreve e analisa suas estratégias para sobreviver, as formas como narram o drama de seu trabalho, as várias identidades que assumem ao longo da jornada e, sobretudo, como se relacionam com a Supervia.

Durante anos, Pires percorreu quase diariamente os trens entre o subúrbio carioca e a Central do Brasil, focando seu olhar na prática dos vendedores ambulantes. Isso permitiu que ele discutisse uma série de questões em torno da informalidade sem se restringir ao cumprimento da lei e das normas. Com isso, ele enriqueceu uma reflexão importante, sobretudo nesses tempos de choque de ordem, deslocando o problema para além da legalidade. Ao descrever o ritual diário desses ambulantes em sua relação com os vários níveis de autoridades e com os passageiros, o antropólogo lançou luz sobre velhos problemas da sociedade brasileira, como desigualdade social, informalidade, flexibilização de regras, jeitinho, entre outras formas peculiares de administração de conflitos.

Pires também apresenta no livro uma reflexão epistemológica importante sobre a antropologia urbana brasileira, ao descrever sua formação, ou melhor, sua “conversão” de sindicalista em cientista social, contrastando os ritos da militância sindical com aqueles da academia no que se refere à realização de pesquisa científica. Esse processo de aguda reflexividade permitiu ao antropólogo olhar por trás dos estereótipos. Além disso, como pesquisador associado ao Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (Nufep), da Universidade Federal Fluminense — coordenado pelo professor Roberto Kant de Lima —, Pires faz parte de uma geração de pesquisadores urbanos, que se caracteriza pela ênfase no trabalho de campo.

Fiel a essa linhagem, Pires trabalha com distintas matrizes teóricas para tratar, de forma competente, a complexidade dos problemas sugeridos pela etnografia. Talvez essa seja uma das marcas mais criativas da antropologia urbana brasileira: não ter o pudor de usar variados instrumentos e métodos para trabalhar os problemas que o campo sugere. Segue-se, assim, um caminho alternativo ao de certo formalismo, que, por solene deferência ideológica, busca encaixar a realidade empírica em uma lógica rígida, definida a priori.