domingo, 30 de maio de 2010

Sexo & erotismo






No início dos anos 80, eu começava o curso de jornalismo na faculdade. Havia acabado de comprar uma câmera, uma Yashica, na zona franca de Manaus, e me matriculara num curso extracurricular de fotojornalismo, cum um sujeito extremamtente mal-humorado (naquela época fazia parte da identidade profissional do jornalista ser antipático, arrrogante e grosseiro, hoje, com o desprestígio do ofício, a coisa melhorou um pouco). Mas o curso era muito interessante porque era calcado na prática. O professor sorteava um tema, que podia ser qualquer coisa, e tínhamos então uma semana para fazer as fotos, um fim de semana para revelar, fazer contato, selecionar e ampliar o material (no laboratório da faculdade) e apresentar o trabalho para o julgamento do professor e demais colegas.

Meu primeiro tema foi: Central do Brasil. Fiz então umas fotos da estação e depois brinquei com os reflexos das janelas. Nada muito legal, mas tinha uma vergonha muito grande de me aproximar das pessoas, de modo que optei por fotografar coisas. Ao apresentar o trabalho ficou evidante a falta de gente nas fotos. Todos falaram sobre isso e me vi diante do dilema: se quero ser jornalista, não posso ter vergonha de me aproximar das pessoas, seja para fotografar seja para conversar. Aí, veio o segundo sorteio: sexo & erotismo. Apavorado e sem saber ao certo o que fazer, fui para a praia. Ou faria alguma coisa ou desistiria para sempre e pegaria um sol, pelo menos não perdia meu sábado.

Agora, remexendo os arquivos para scanear, achei as fotos acima. Fiz uma seqüência de uma amiga, a Tininha (que depois se tornou minha modelo em outros ensaios) comendo sanduíche de ricota com cebola, e fotografei corpos na areia. Naquele início dos anos 80, as meninas do Posto 9 usavam biquínis baixos, deixando um pouquinho dos pentelhos aparecendo e expunham, sem muita culpa ou vergonha, suas virtudes corporais. As fotos dos corpos não trouxeram nada demais, mas a idéia de fotografar alguém comendo sanduíche, como sexo & erotismo, provocou uma boa discussão no curso. As fotos acabaram expostas numa exposição realizada pelo Metrô, na Estação Carioca.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Vila Mimosa na livraria da Travessa

Amigos, nesta terça-feira, dia 18, na livraria da Travessa (na Ouvidor), será o lançamento do livro da antropóloga Soraya Silveira Simões, Vila Mimosa: Etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca (EdUFF), com fotos da fotógrafa francesa Olivia Gay e da brasileira Gianne Carvalho. A coisa começa lá pelas 18h e recomendo muitíssimo a todos. Reproduzo abaixo a resenha que fiz sobre o livro para o Prosa & Verso, do Globo:

A cidade cenográfica da prostituição

Antropóloga analisa a construção da nova identidade social da zona de meretrício em etnografia sobre a Vila Mimosa

Paulo Thiago de Mello

Manuel Bandeira escreveu, referindo-se às pessoas que trabalhavam numa antiga zona de prostituição do Rio de Janeiro, que "gente como a do Mangue vive porque é teimosa". E foi com pertinência que a antropóloga Soraya Silveira Simões recorreu à frase de Bandeira para abrir o capítulo inicial de seu livro, Vila Mimosa: Etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca (EdUFF, no prelo), uma adaptação de sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense. Noções como teimosia e resistência estão no coração de sua narrativa, que, numa prosa bem costurada, leva o leitor a se aventurar pelos mais de 70 bordéis de uma rua sem saída da Praça da Bandeira.

Soraya parte da dramática relação de prostitutas e cafetinas do Mangue com o poder público, as corporações interessadas em ocupar a região, os planejadores urbanos com seus projetos de renovação, políticos e a polícia. É no bojo desse embate, que remonta aos anos 1980, que se consolida a organização política das prostitutas e surgem líderes como Gabriela Silva Leite, fundadora da ONG DaVida. Em 1996, porém, as meninas da Vila Mimosa, último resquício do Mangue, são removidas para dar lugar ao Teleporto e ao complexo da prefeitura, sugestivamente apelidado pela população de "Piranhão".



Com os recursos da indenização, as mulheres compram um galpão à rua Sotero dos Reis, formando o núcleo do que hoje passou a ser chamado de Vila Mimosa II — ou VM II —, um espaço, ou melhor, um lugar marcado por uma cenografia propícia ao jogo de sedução que caracteriza a ambiência da zona.

A mudança não se dá sem conflitos. Os moradores da área protestam, queimam pneus e apelam às autoridades contra a presença indesejada das prostitutas em seu bairro, temendo o contágio do estigma que marca a profissão. O movimento da Vila Mimosa, no entanto, acaba trazendo prosperidade ao local. Bares e hotéis, antes às moscas, passam a ganhar dinheiro com a crescente movimentação. E os moradores, antes desconfiados, descobrem que podem lucrar, alugando quartos, fazendo baby sitter, vendendo roupas etc.



Situada no espaço reservado pela sociedade ao desvio, à flexibilização de normas e etiquetas, a zona de prostituição cenograficamente construída na Vila Mimosa II acabou por constituir o que na sociologia urbana se chama "região moral", definida e demarcada por seu métier, reconhecido por todos em suas múltiplas representações. Soraya lembra que os lugares do desvio na cidade são circunscritos, geográfica e simbolicamente. É assim que se pode falar "de meninos de rua, travestis da Lapa e das putas da Vila Mimosa".

"Na Vila Mimosa não se chega, se entra"

E a VM II cumpre essa prescrição sem ambigüidade, ao contrário de outras áreas de prostituição do Rio, como a Praça Mauá, também reduto da boemia e zona portuária; ou a Avenida Atlântica, área turística e residencial. Por isso, lembra a autora, na Vila Mimosa "não se chega, se entra". O toldo amarelo de uma loja na metade da rua demarca o início da zona, separando simbolicamente aquele território moral do resto do bairro. Atravessar esse limite é entrar em outro universo, simultaneamente previsível e imponderável, onde o jogo de encenações dá aos atores papéis que só ali podem ser desempenhados.

A partir da mudança de endereço, os atores da zona se esforçam em mudar também as representações sociais sobre o ofício — hoje reconhecido pelo Ministério do Trabalho — como um negócio que tem no domínio do corpo seu principal ativo. A antropóloga mostra como, tendo um pé no Mangue como evocação da resistência do grupo — ou da teimosia percebida por Bandeira —, as pessoas envolvidas no negócio da prostituição na VM II deram novos sentidos à identidade social do ofício.



Nesse processo, é criada a Associação dos Moradores do Condomínio e Amigos da Vila Mimosa (AMOCVIM), para atuar não apenas como representante dos interesses de donos de casas, prostitutas, moradores e comerciantes da Vila Mimosa, mas também como agente propagador e controlador da nova imagem da prostituta. Através da Associação, as profissionais da VM II obtêm acesso a academia, cabeleireiro, manicure, clínica médica. Ela também promove uma série de atividades, como o concurso de beleza Gatinha Mimosa, churrascos e projeções de filmes, para sedimentar o novo conceito de zona.

A instalação da clínica evidenciou ainda uma forma de controle moral. Fazer exames tornou-se não só uma obrigação, mas um temor. Quem evitava o médico tornava-se suspeito de estar doente, aos olhos dos donos de casa e das próprias prostitutas, que condenam comportamentos de risco, como sexo sem camisinha ou sexo anal, classificando-os como "sem-vergonhice" ou "baixa auta-estima". Soraya menciona o caso de uma profissional que, ao ser diagnosticada como portadora do vírus HIV, teve as portas da Vila Mimosa fechadas para ela.

Pesquisa revela tensões do dia-a-dia da zona

O trabalho de campo também registra a tensa relação entre donos de casa e as prostitutas, os conflitos de interesse na disputa pelos clientes, o processo de sedução e de procura no espaço da Vila, a presença de curiosos, entre outros aspectos do dia-a-dia da zona.

No plano da luta política das prostitutas da Vila Mimosa, a etnografia detalha ainda a briga, ao lado do então deputado Fernando Gabeira, para retirar do Código Civil a criminalização de lenocínio, vadiagem e atentado ao pudor. São esses aspectos de criminalização que abrem espaço para a ação e domínio de agentes públicos corruptos nas áreas de prostituição. O livro também trata, numa de suas passagens mais interessantes, da formação da prostituta, a partir de sua chegada e acolhimento na Vila Mimosa. Estão ali ainda os enredos tristes como justificativa moral para a prostituição e o sonho de "largar essa vida" enunciado até por aquelas que assumem o ofício como vocação.



A inquietação que levou Soraya ao campo surgiu ao fazer um ensaio fotográfico sobre prostituição. Ao enquadrar aquelas mulheres em suas lentes, surpreendeu-se ao percceber que, onde achava só haver o outro exótico, ali estava também alguma possibilidade de "nós". Um reconhecimento do gênero através do sexo, não apenas em seu aspecto biológico, no elo que o corpo feminino estabelece, mas igualmente na sua forma social, com todos os papéis que a sociedade reserva à mulher. Tratou-se, portanto, de um encontro que se deu simultaneamente pelo contraste e pela complementaridade.

Associada ao Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS/UFRJ), coordenado pelo antropólogo Marco Antonio da Silva Mello, Soraya faz parte de um grupo de pesquisadores que se debruçam sobre as questões da cidade, daí o uso de métodos de pesquisa tributários da etnografia urbana contemporânea. Hoje, ela é pesquisadora convidada do ClerséCentre Lillois d'Études et Recherches Sociologiques et Économiques, da Universidade de Lille 1, na França. Seu livro, com lançamento previsto para janeiro, certamente ajudará o leitor a ver além dos estereótipos e do estigma que marcam amais antiga profissão do mundo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma ideologia para o país do futebol

(imagem emprestada da internet — sem crédito)

Tinha 10 anos quando o Brasil foi tricampeão em 1970. Vi e torci, como um moleque de 10 anos, cada jogo daquela Copa, vibrando com as jogadas geniais daquele time de sonho, com o futebol arte brasileiro no seu esplendor; e temendo os adversários que tínhamos pela frente (a retranca da Inglaterra, por exemplo, no jogo duríssimo, com o goleiro Banks agarrando tudo, exceto o chute de Jairzinho, no segundo tempo, após uma trama do ataque brasileiro). Pois bem, tendo sido marcado por esse futebol, de passes precisos, dribles genais e gols de placa, cresci mal acostumado no que se refere ao futebol... e à vida.

Me lembro do período em que morei em Nova York. Naquele século XII, batia uma pelada num jardim da Universidade de Columbia. Éramos todos estrangeiros: latino-americanos de todas as partes, italianos, africanos e um ou outro americano de origem latina. Entre as partidas, batíamos boca apaixonadamente sobre futebol, cada qual puxando a brasa para sua sardinha. E me lembro que, mesmo com a Seleção vindo do desastre de 1974 (estávamos às vésperas da Copa de 1978), defendia o futebol brasileiro com um ar aristocrático que deixava meus interlocutores indignados.

Por isso, para mim — e sei que muitos discordarão —, uma Seleção como a de 1982 é capaz de me encantar mais, apesar da derrota para a Itáilia e a eliminação de uma Copa até então garantida, do que o time tetracampeão em 1994. Naquela Copa, cada jogo foi um sonho (daí a decepção com a derrota ter sido tão grande: acordamos, de repente, sem nada). Na de 1994, vencemos com partidas apertadas, burocráticas, mal jogadas, uma retranca sem fim, que dependia do talento e da malandragem de Romário e Bebeto para sair do zero a zero. Ganhamos sem sonhos, suspiros e explosões de felicidade. E inoculamos em nossas almas a lógica americana da vitória, a qualquer preço. Ser o número 1, sempre. Me lembrei das discussões que tinha em Nova York com meus colegas de pelada e senti uma ponta de vergonha ao ver a Seleção brasileira vencer uma Copa do Mundo na disputa por pênaltis. No erro do craque adversário. Ou seja, a Seleção de 1994 calou meu discurso aristrocático.

As opções entre futebol arte e a lógica Dunga são mais do que meras tácticas de jogo. Elas representam uma visão de mundo e são, portanto, opções ideológicas. E me dou conta de que, no plano pessoal, sou sonhador e busco, no futebol e na vida, o sortilégio das jogadas geniais, da arte descompromissada com qualquer coisa que não seja o encantamento. O preço é alto, como bem sei, ao chorar a derrota de 1982, ao me iludir nas desilusões amorosas com aquela musa sonhada, ao ver o bolso vazio, apesar do trabalho árduo e talentoso etc. Mas cada momento é vivido como um sonho, intensamente e sem limites.

Hoje, me esforço para pôr os pés no chão, mas é difícil mudar depois de uma vida inteira mergulhado nessa busca pelo encantamento. Por isso, não gostei da Seleção do Dunga anunciada ontem. E vejam que acho que ela tem chances de erguer a taça. Toda a imprensa especializada foi unânime em afirmar que Dunga foi, pelo menos, coerente com sua lóigica. Bem, não poderíamos esperar nada distinto disso, não é mesmo? Como esperar que ele convocasse dois moleques do Santos, brincalhões e geniais em suas jogadas desconcertantes, assim de sopetão? Como apostar, tendo Dunga à frente da Seleção, na arte, na folie en tête? E, sendo indulgente com ele, acho até que buscou um meio-termo em relação ao esquema de 1994: uma defesa burocrática e um ataque mais criativo.

Mas o que está em jogo é a própria representação do Brasil como nação. Pois certamente um dos momentos genuinamente cívicos que temos é o da convocação da Selação. É sempre uma ocasião em que nos assumimos como nação, mesmo que inconscientemente. E a escolha que Dunga faz se reflete no que somos no mundo, no que nos distingue de outros povos. Nossa singularidade, qual é? Será o esquema burocrático com seu potencial de vitória ou o encantamento capaz de inventar algo novo e deslumbrante?