sábado, 30 de maio de 2009

Reflexões sobre o bairro


Rua de Botafogo, na minha vizinhança. A última casa à direita deu lugar a um espigão há um ano e meio

Amigos, volta e meia discorro aqui no Pendura sobre a importância do comércio de rua. Insisto no papel integrador que essas casas comerciais — de botequins a salões de beleza, de açougues a jornaleiros, do aviário à casa de artigos de candomblé, do barbeiro da esquina ao secos & molhados do seu Antonio — desempenham em seus bairros, servido de ponto de encontro, de troca de informações, de sociabilidade e de socialização da vizinhança na cultura específica da rua, do bairro. É essa cultura que dá a cada bairro da cidade a sua singularidade e ao morador as chaves para ser e estar ali.

Os botecos inclusive têm ainda uma função de clube social, onde os vizinhos se encontram para jogar conversa fora e debater filosoficamente questões da maior importância, em contendas que só têm comparação no simpósio descrito por Platão, no seu banquete. Debates sobre o amor, a honra, o respeito, a política, o futebol, a mulher e por aí vai. Sempre calorosos, às vezes exaltados.

Para mim esse fenômeno urbano é tão óbvio, que me exaspera ver que as autoridades, encasteladas em seus distantes núcleos de poder, não se dão conta ou simplesmente não querem ver esse aspecto de extrema riqueza e importância para a vida social dos bairros. Executam seus planos de urbanização sem conversar com os moradores que serão afetados, partindo simplesmente de visões preconceituosas e estereotipadas, mas sobretudo autoritárias, normalmente a partir do ponto de vista de uma classe média assustada com a cidade, ponto de vista esse que ganha incrível ressonância na mídia.


O bloco do Barbas, que brinda os foliões encalorados com um banho de carro-pipa: um verdadeiro êxtase

A isso se soma uma indústria imobiliária feroz, que em seu afâ de vender o máximo possível de unidades residenciais (sim, porque não dá para chamar de apartamento ou casa os espaços que oferecem) inventam condomínios supostamente autosuficientes, que oferecem tudo: bar, piscina, sauna, videolocadora etc. e ajudam a esvaziar as calçadas da vizinhança onde se instalam. Os moradores desses lugares, igualmente convencidos de seu status de "modernos", evitam o comércio de rua, preferindo os shoppings, os hipermercados, os centro comerciais. A Barra da Tijuca é um exemplo dessa lógica e é, por isso, que em boa extensão do bairro não se vê viv'alma nas calçadas. É talvez o único bairro do Rio que exige que seus moradores possuam carro.

Como já disse aqui, vivo num pedaço de Botafogo que muito se assemelha aos melhores bairros da subúrbio carioca. Com suas casas, sobrados e prédios de, no máximo, três ou quatro andares, essa área é cercada do mais vasto e variado comércio de rua. De bicicletário a reparador de fogões, das velhas padarias a chaveiro. Ali estão velhos ofícios, como sapateiro, alfaite, jornaleiro, apontador de jogo do bicho, mecânicos etc. À tarde, os cachorros das casas latem e a criançada grita, correndo atrás de bola, andando de bicicleta ou soltando pipa na praça. A velha guarda fica nos botequins, observando a rua. São os olhos informais da rua, observando as gerações crescerem, o movimento diário da vida no bairro. Foi por isso que o Chico, da Adega da Velha, percebeu logo que havia algo estranho e anormal na conversa de Marianinha com o estranho, como relatei aqui, alguns posts abaixo.


O Belmiro, boteco de esquina de Botafogo

Sucede, que a vida na cidade é incontrolável e todas esses elementos — o tradicional e o novo — estão em contante confronto e mutação. Em algumas áreas da cidade eles se impõem de forma tão acachapante, que a região muda completamente, num processo de gentrificação, ou aburguesamento, como aconteceu com o Leblon nos anos 60, que, de bairro classe média baixa, se tornou uma das referências da elite carioca. Ou, para trazer a coisa mais para perto, como parece estar acontecendo com Santa Teresa hoje em dia.

O jovem de classe média fica inebriado com o aspecto bucólico e proletário do bairro e se muda para lá. Sua convivência ali, no entanto, não é de fácil assimilação, pois ele é visto como alguém de fora. No entanto, ele vai convencendo outros de seu grupo social a se mudaram para lá e acaba formando uma comunidade dentro da comunidade. Aí começa uma demanda por serviços e produtos que antes não existia, determinado shampoo para a namorada, tipo de comida mais macrobiótica etc. Daqui a pouco, surge um restaurante de comida natural e uma botique de produtos para a pele. Aí um incorporador imobiliário vê a chance de subir um espigão voltado para o perfil desse novo consumidor e coisa e tal. Aos poucos o bairro bucólico e proletário vira um arremedo do que era. e, quando se vê, a morfologia social do bairro mudou para sempre.


A rua Arnaldo Quintela, vista da minha janela

As gerações vão se sucedendo e novos valores vão surgindo. As coisas mudam inevitavelvemente. Mas também é concreta a resistência a essas transformações que ocorre aqui e ali. De minha parte, eu, que desisti de ter carro desde quando tive idade para tê-lo, prefiro uma calçada cheia de gente e movimentada, onde possa caminhar, do que um lugar vazio, espremido entre condomínios estratosféricos e autopistas de grande velocidade.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Naná Vasconcelos


Naná Vasconcelos, na foto copiada do blog do Bruno

Amigos, o Bruno Ribeiro, amigo de blog, jornalismo e botequim, fez uma belíssima entrevista com o percussionista Naná Vasconcelos, certamente um dos maiores percussionistas do mundo. Abaixo a introdução feita pelo Bruno e o resto da entrevista segue aqui, em seu blog. Conheci Naná em 1978, quando morava em Nova York. Ele tocou com meu pai, Gaudencio Thiago de Mello, que é compositor e percussionista e vive lá desde meados dos anos 60, e com meu primo Manduka, com quem gravou um disco antológico em Paris, quando Manduka estava exilado. No disco, meu primo vai de violâo, congas e charango e Naná com seus variadíssimos instrumentos.

Tinha 18 anos nessa época e conheci umas figuras geniais com o falecido percussionista Dom Um Romão, o trompetista Claudio Roditi, entre outros. Na casa do velho, um apartamento pequeno em Manhattan, rolava jam sessions quase todas as noites. Naná e meu pai fizeram vários shows pequenos por Nova York, mas o mais legal mesmo foi uma apresentação que os dois fizeram, numa época de grana curta, numa escola de segundo grau (high school) no Harlen. A molecada ficou louca com aqueles ritmos todos.

Nas jams na casa do velho, tudo era gravado em fita rolo. Tem gravações históricas, como Gilberto Gil tocando, com o velho e Dom Um, o hoje clássico Oriente, em 1972. Tem também gravações com Hermeto, Flora Purim e Airton Moreira, o maestro Moacir Santos, entre outros. Dessas fitas, algumas coisas nós passamos para digital e hoje tenho em CD quase uma hora de Naná tocando berimbau.

Entrevista # 8 — Naná Vasconcelos
Por Bruno Ribeiro

Percussionista, compositor e produtor, Naná Vasconcelos é um dos artistas mais interessantes da música brasileira. Nascido em Recife, no dia 2 de agosto de 1944, Naná veio ao mundo respirando maracatus e cirandas. Começou a tocar bongô em cabaré. Na adolescência, envolveu-se com as músicas de Heitor Villa-Lobos e Jimi Hendrix. Dotado de uma curiosidade imensa, aprendeu a tocar praticamente todos os instrumentos de percussão. Mas foi mesmo o berimbau que o notabilizou como grande artista. Desde 1970, quando passou a atuar nos Estados Unidos e na França, tem desenvolvido um singular trabalho de vanguarda. Dentre seus discos mais conhecidos estão Áfricadeus e Amazonas. Na entrevista abaixo, Naná Vasconcelos fala sobre sua relação com o berimbau, a identidade da música brasileira e a sua infância em Recife.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Entrevista delirante


A foto com a qual Rogério Duarte criou a capa do disco Tropicália (o Torquato é o último à direita, sentado com as pernas cruzadas). Foto garimpada na internet

Amigos, o blog da editora Azougue, de São Paulo, comandada pelo escritor, editor e ensaísta Sergio Cohn, figura muito simpática e arguta, lançou em março a coleção Encontros sobre a Tropicália, que é boa maneira de entrar na cabeça das pessoas que faziam a cabeça de uma certa geração. O Sergio vem fazendo uma espécie de arquelogia das artes em geral: literatura, cinema, artes plásticas e música dos anos 60, 70 e 80, assim como de figuras importantes do pensamento original brasileiro como o geográfo Milton Santos e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Abaixo, como uma palinha do conteúdo da coleção, uma entrevista delirante de Rogério Duarte, autor das capas dos discos e cartazes da Tropicália e do Cinema Novo — como a do filme de Glauber Rocha Deus e o diabo na terra do sol —, com o poeta e escritor Torquato Neto. Para quem quiser saber mais sobre a editora Azougue, há um link na lista de notáveis abaixo.


Torquato em foto recuperada da internet

Entrevista delirante

[Rogério] Torquato, você acha que está cumprindo seu dever de brasileiro?

[Torquato] Yes.

[Rogério] Porque você respondeu em inglês?

[Torquato] Devido a minha formação (Joaquim Nabuco) de comunista.

[Rogério] Presentemente está atuando em alguma emissora?

[Torquato] Não.

[Rogério] Em inglês ou português?

[Torquato] Em português. Nós temos Bananas. Fale.

[Rogério] Assim não, isso é plágio de João de Barro e Alberto Ribeiro. Que tem a declarar?

[Torquato] Vinícius jamais escreveria isso. Vinícius é a minha miss Banana Real. Geraldo Vandré é um gênio.

[Rogério] Você diz um gênio sexual ou matemático?

[Torquato] Nunca dormi com ele.

[Rogério] Por que, você sofre de insônia?

[Torquato] Eu era viciado em psicotrópicos. Hoje em dia eu dou mais valor ao salcalóides...

[Rogério] Eu por minha parte dou mais valor aos aqualoucos.

[Torquato] O Golias é ótimo.

[Rogério]Ele já foi aqualouco?

[Torquato] Yes.

[Rogério]Você não acha que nós devemos tratar melhor os negros?

[Torquato] Yes.

[Rogério] Por exemplo, lá em casa estamos há 2 meses sem empregada. Nesse sentido Malcolm X ou Bertrand Russel foram muito compreensivos. Veja o caso de Sérgio Pôrto com aquela estória do crioulo doido, puro racismo, e racismo paulista, o que é mais grave sendo ele cocarioca, isto é, carioca, não acha nego?

[Torquato] Yes. Acho sim. Agora: o Bertrand Russel é mais branco do que Malcolm X. O que estarei querendo dizer com isso?

[Rogério] Talvez que a noite deste século seja escura e de uma escuridão tão impotente que mesmo no seu âmago mais profundo não são pardos todos os gatos.

[Torquato] Non sense. Auriverde pendão das minhas pernas que a brisa do funil beija e balança. Onde está funil leia-se mesmo Brasil. Nelson Rodrigues inventou a subliteratura e eu endosso..

[Rogério] Mas você não acha que depois de C. Veloso já devemos começar a cuidar mais seriamente da superliteratura?

[Torquato] Yes. Freud explica, não é mesmo?

[Rogério] Seria se fosse. Mas tanto Freud como Sartre como Lévi-Strauss não passam de romancistas da Burguesia. E Lukacs?

[Torquato] Foi o caso mais grave de Geraldo Vandré que já conheci. E com a desvantagem de ser tão polido como Leandro Konder. Só que de Romance ele não manjava bulufas. Mas, não exageremos porque Lukacs é um moço de muito futuro.

[Rogério] Além do mais Torquato todas as nossas tragédias ou melodramas individuais fazem parte de um projeto coletivo nosso. Nós fumamos maconha para ter um sucedâneo da fome dos operários e damos a bunda porque não entendemos bem a razão pela qual temos tantas bananas e os camponeses continuam tão desenxavidos.

domingo, 24 de maio de 2009

Personagens silenciosos


Garçom do Bar Loga, famosos pelo mau-humor: mito ou verdade?

Na minha perambulação por botecos, casas de pastos e restaurantes da cidade sempre me chamam a atenção os funcionários da casa, sobretudo garçons, balconistas e cozinheiros. Em muitos lugares, faço questão de ir à cozinha, quando a casa permite, trocar dois dedos de prosa com os responsáveis pelos sabores que saem das panelas fumegantes. Gosto de ouvir suas histórias. No geral, percebo, esses personagens maravilhosos, misteriosos, passam anônimos pela clientela, como se não existissem.

Como a cozinheira dona Antonia, do Restaurante 28, cuja morte recente foi citada alguns posts abaixo. Em seu funeral não havia parentes, apenas o pessoal do bar onde passou quase sua vida inteira. Uma existência em silêncio que já deve estar se apagando da memória dos assíduos do 28, que, com voracidade, devoravam suas receitas de panela, das quais destaco o cozido de tempero centenário.


Chiquinho, de garçom do Bracarense a dono de bar no Leblon

Diferentemente do pessoal da cozinha, os garçons têm mais contato com os fregueses — como bem lembra o Jaguar, alguns assíduos passam mais tempo com o garçom do que com a mulher. E quando há empatia, forma-se uma camaradagem, uma espécie singular de amizade, que é entremeada pelo negócio, mas o afeto também está presente. Me lembro, por exemplo, do Paiva negociando a meu favor um pendura no Jobi, com o Narciso. Tarefa hercúlea, diga-se de passagem. Ou ainda o saudoso Lima, do Aurora, que me alertava:

— Não peça o peixe hoje, não. Vá de carne. É melhor... — e piscava.

Senão, apenas o bom papo, a jocosidade e os assuntos do dia. O Vieira, do Lamas; o Cícero, do Capela; o Bengala, do Vermelhinho; e por aí vai... Uma vez, papo de boteco, cheguei a elaborar uma teoria de que todo bom garçom ou era chamado pelo apelido, como Chiquinho e coisa e tal, ou pelo sobrenome, como Soares, Gouveia e por aí vai.


O Cícero, do Capela, venceu o concurdo de melhor garçom do Rio, do Correio da Lapa

Tem ainda aqueles garçons que formam uma espécie de simbiose com o dono do bar, não sei bem por que processo psicológico, e acabam se tornando mais donos do que o dono. Jamas se aliam ao cliente. Tem garçom que rouba nas bolachas ou na dose de uísque e trazem contas indecifráveis. Como em qualquer profissão, tem os bons e os maus profissionais. E muitos deles se reúnem na madrugada, após o trabalho, no Aterro para a famosa pelada dos garçons.

O Bar Lagoa é famoso pelo mau-humor dos garçons. Eu sei que muita gente vai discordar, mas nunca vivi ali um atendimento que possa classificar como decididamente mais mau-humorado, ou grosseiro, do que em qualquer outro boteco. Aliás, seu Alfredo Gouveia, que foi confeiteiro em Portugal — e é o responsável pelas sobremesas do Lagoa, inclusive o delicioso apfelstrudel e os pastéis de nata —, é um dos garçons mais atenciosos que já conhecei.

Há ainda o caso dos garçons que herdam o bar ou se tornam, por esforço e mérito próprio, donos do bar. É o caso do Chico Rufino, da Adega da Velha, e do Cícero, que saiu do Bracarense para abrir com a ex-cozinheira da casa o Chico & Alaíde.


Paiva pendurou as chuteiras no Jobi, mas ainda joga a pelada da madrugada que reúne os garçons no Aterro

Os profissionais mais atigos dos bares do Rio estão começando a desaparecer também. Alguns se apsontam vão para o sítio curtir os últimos anos de vida, como o Lima, que a essa hora está fumando seu charutinho na varanda da casa, vendo os netos brincar no quintal. Outros, como dona Antonia, simplesmente passando para o outro lado, após uma vida inteira dedicada ao ofício, cuja ética e segredos de profissão vão se transformando à medida que as novas gerações assumem os postos.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O chope do Bar Luiz


Mais amargoso, o chope Sol ganhou o meu respeito

Sábado passado resolvi ir ao samba da Ouvidor, que ocorre sábado sim, sábado não na tradicional rua do Centro do Rio, cujo epicentro é a aconchegante livraria Folha Seca, do meu querido amigo Rodrigo Ferrari, especializada em livros e CDs sobre o Rio de Janeiro. O samba agora não é mais anunciado dado o grande número de pessoas que lotam o lugar. Mas mesmo cheio, é um programa que vale muitíssimo a pena, nem que seja para acompanhar dos botequins que cercam o lugar, em especial o Antigamente e o Casual.

Mas neste sábado em especial, como queria almoçar, decidi esticar até a rua da Carioca e experimentar o chope do Bar Luiz, depois que a casa trocou de bandeira, substituindo a AmBev pela Femsa, ou melhor, trocando o chope da Brahma pelo da Sol. Para que se tenha ideia da importância do fenômeno, basta dizer que o Bar Luiz nasceu em 1887 (chamava-se nesse início de começo Zum Schlauch, e ficava na rua da Assembléia), um ano antes da fundação da Cervejaria Brahma. Portanto, 100 anos depois de trabalhar exclusivamente com produto Brahma, a casa decidiu fazer essa mudança radical. Dizem, mas a turma do bar desmente, que o negócio envolveu coisa de mais de um milhão de reais.


Salsichões bock com salada de batata, o melhor acompanhamente para o chope

Pois bem, devo confessar que fui ali com uma certa predisposição para condenar a mudança, evocando do fundo da mamória o sabor cremoso do velho chope da casa centenária em inúmeras e memoráveis situações. Afinal, freqüento o Bar Luiz desde a época em que era barato comer por lá.

Mal entrei e já fui guiado por um dos garçons até uma das mesas no centro do velho salão art déco. Admiro a elegância da casa e o piso desgastado, que tanta confusão provocou quando tentaram reformá-lo. Estava faminto e acabei pedindo um par de salsichões bock com a famosa salada de batata da casa, que não é feita com maionese, mas um creme cuja receita ninguém revela. Ela foi introduzida no cardápio na década de 30 pela mulher do dono do bar. E para acompanhar uma caldeireita na pressão.


Gosto muito da elegância do Bar Luiz, um remanescente da belle époque do Rio

O chope chegou e não sem uma boa dose de emoção dei o primeiro gole, inaugurando o sábado e dando prosseguimento à minha investigação. Fiquei surpreso. A bebida estava ótima. Ótima não, sensacional. Sim, meus amigos, melhor do que antes, segundo minha modestíssima opinião. Não tinha a mesma consistência cremosa do chope da Brahma, mas trazia um amargor mais acentuado, atestando a presença generosa de lúpulo na fórmula. Desceu redondo e eu fui obrigado a admitir que o Bar Luiz acertou na troca.


O samba da Ouvidor, abençoado pelo manto sagrado rubro-negro

Depois, com o estômago forrado e o paladar estimulado para continuar na cerveja, me mandei para a Ouvidor, a tempo de dar um abraço no Rodrigo e admirar a rapaziada levando sambas de primeiríssima, com o menino Pratinha, um fenômeno no violâo de 7 cordas. A turma ainda me deu um presente inesperado ao desfraldar, como suporte cívico-espiritual da roda de samba, o manto sagrado rubro-negro. Assim, começou meu fim de semana.

sábado, 16 de maio de 2009

O Botequim e o bairro


Meu querido amigo Chico Rufino, responsável pela Adega da Velha

Na pesquisa de campo de minha dissertação sobre um botequim de proximidade em Botafogo, trabalho que me valeu o título de mestre em antropologia, freqüentei diariamente, por dever de ofício e por lazer, durante mais de três anos a Adega da Velha, do meu querido amigo Chico Rufino, cearense de Cariré. A ideia central da pesquisa era mostrar dois aspectos desse boteco nordestino, dono do melhor baião-de-dois do Rio: sua relação interna com os fregueses assíduos (os diálogos, o sistema do pendura, a relação com os garçons etc), e sua relação com a rua e o bairro, no caso Botafogo, para mim, incomparavelmente o melhor bairro da cidade.


Chico Júnior, o herdeiro, já tomando conta do balcão da Adeguinha

Pois bem, um dia estou em pé ao balcão, bebendo meu chopinho e conversando com o Chico, quando noto que meu interlocutor não está prestando atenção no nosso papo. Em vez disso, observa, com semblante preocupado, a esquina do outro lado da rua. Imediatamente dirijo meu olhar para tentar descobrir o que chamou a atenção de meu amigo. Aparentemente, não vejo nada de extraordinário. Um pequeno aglomerado de pessoas no ponto de ônibus, clientes comendo na casa de sucos da esquina, os transeuntes indo e vindo... tudo normal. Volto-me então para o Chico e pergunto:

— O que foi?

— É a Marianinha. Está conversando com sujeito esquisito lá na esquina — diz ele.

Olho novamente para a cena e, aí sim, reparo num sujeito, com jaqueta militar, de 20 e poucos anos, conversando com uma menina de uns 13 ou 14 anos, vestida com uniforme escolar clássico. Em seguida, Chico se volta para uma das manicures, que fumava seu cigarro na calçada em frente ao salão do outro lado da rua, e, apontando para a esquina, pergunta quem era o sujeito. A mulher dá de ombros, mas passa também a acompanhar de longe a conversa do estranho com a menina.

Passa-se mais um tempinho, o cara vai embora e a menina vem, enfim, em nossa direção. Quando a garota passa em frente à Adeguinha, o Chico grita, com a autoridade de um pai:

Marianinha, vem cá!

— Que foi, seu Chico? — pergunta ela, entrando na Adega.

— Quem era aquele cara que você tava falando?

— Ninguém. Ele só queria saber onde era a rua Dona Mariana.

Marianinha! Você não pode ficar falando com estranho na rua, menina! Vou contar pro seu pai!

E por aí segue o paternal Chico, falando sobre os perigos da rua e como a cidade anda violenta. A manicure também atravessa a rua e faz coro.

Depois que Marianinha vai embora, o Chico me explica que ela é filha de um freguês que mora na rua e que, de vez em quando, pede à menina que venha ao bar comprar cigarros, refrigerante e coisa e tal, além de se reunir ele próprio com amigos para um chopinho aos sábados à tarde, depois da feira.


A calçada do bairro, vista de dentro da Adeguinha: integração com a vizinhança

Essa história real é um exemplo da importância do botequim — e de todo comércio de rua — para a saúde da rua e do bairro. Bairros que têm comércio de rua, que têm calçadas onde os moradores se esbarram e trocam idéias, e até mesmo diferenças e conflitos, são mais saudáveis, mais seguros e mais aconchegantes do que aqueles complexos moderninhos, amontoados de moradias apertadas, em bairros onde se necessita pegar o carro para comprar pão ou o jornal, onde as calçadas são mortas pela inexistência de comércio, movimento... vida.


Chico preparando uma de suas especialidades, feita só sob encomenda: a galinha cabidela

No entanto, a mídia vende a idéia da "modernidade", da "elegância", do "conforto", do "exclusivo" e o escambau para valorizar empreendimentos imobiliários de baixíssima qualidade e caríssimos, que vão, aos poucos matando a rua, transformando o bairro e a cidade. Outro dia fiquei chocado a ver que mais um prédio antigo, tradicional, de três andares, na esquina da Arnaldo Quintela com Assis Bueno, extamente onde o Bloco do Barbas se concentra no carnaval, virou poeira. Já estão escavando o lugar para erguer mais um espigão, com cinco andares de garagem e pilotis, afastando os novos moradores da rua. Na certa, quando estiver pronto o "palácio do futuro", os recém-chegados vão reclamar com a prefeitura o barulho do bloco e pedir um choque de ordem na velha vizinhança.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Homenagem aos pretos velhos

Amigos, hoje, logo mais, a partir das 15h, quem estiver pelo Centro do Rio, aproveite e dê uma passada na Igreja de São Benedito, na Uruguaiana. Rosa e Kátia, as meninas do Aconchego Carioca, estarão oferecendo bolinhos de feijoada, um dos melhores quitutes da casa, em homenagem aos pretos véios, de quem a Katia tirou a inspiração para criar a guloseima, que tanto elogio e notoriedade trouxe ao Aconchego. Elas ficaram de convidar ainda o querido Kadu Thomé, que além de Bracarense, é responsável pelo bar Será o Benedito, na Lapa, onde amanhã, por sinal, terá show de Moacyr Luz.


Mariana, Rosa e Kátia: homenagem aos pretos velhos na Igreja de São Benedito

Os bolinhos de feijão são uma das comidas preferidas dos pretos véios, que dão conselhos preciosos enquanto amassam a massa de feijão. Os da Kátia são saborosíssimos, como recheio de couve. Ela realmente conseguiu o milagre de reduzir a feijoada a um petisco.


A casa do Kadu, Será o Benedito, cujo nome é uma sincronicidade com a homenagem de hoje

Já o querido Guilherme Studart está preparando uma caravana por bares da cidade que oferecem codorna. A maioria na brasa, mas sempre com segredos que variam do tempero à forma como o prato é feito. Me lembrei de uma que comi no interior da França, numa cidade medieval, que a codorna vinha recheada de foie gras e empanada. Foi uma experiência inesquecível.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Aconchego entre amigos


A variedade de cervejas do Aconchego Carioca não tem parâmetro no Rio

Alguns posts abaixo mencionei uma pousada de um casal amigo na Ilha Grande, leiam aqui. Ele e ela gente da terra, com habilidade na pesca e aquele ritmo de caminhada de quem atravessa a ilha inteira sem suar ou se despentear. Descobri a pousada ao acaso, na primeira vez que fui à ilha levado por Marta, ex-companheira, grande amiga. A pousada, que não anunciava em jornal e nem era listada naqueles sites sobre a ilha, estava vazia. Ficamos ali dias maravilhosos, eu e Marta e os dois. Não sei se foi isso, mas desde esse primeiro momento, pois depois voltei inúmeras vezes à Pousada Cantão do Leão, reparei que na cabeça de nossos anfitriões, nós éramos hóspedes, não clientes. Ou seja, nossa relação era marcada por uma certa intimidade, coisa de abrir a geladeira e pegar uma gelada, em vez de perguntar o que teremos para o almoço.


As meninas da casa: Rosa, Mariana e Valéria e um dos meninos que ajudam no atendimento

Seu Alécio, a quem chamo carinhosamente de Leão, é dono de um humor irascível, conhecido em toda ilha por seu temperamento troante, e sua Meri tem um humor muito peculiar, além de andar em trajes sumaríssimos. Já vi muito "cliente" dizer que não voltaria nunca mais, indignado por alguma patada, um palavrão ou coisa que o valha. Mas, pelo que pude observar nesses casos, eram todos pessoas chatas, muito chatas. Hoje, a pousada vai de vento em popa e é referência para turistas europeus e argentinos, que acessam aqueles sites de dicas de viagem de aventura, pois não deixa de ser uma aventura hospedar-se ali.


Kadu Thomé, do Bracarense e amigo da casa, com Kátia e Rosa, responsáveis por tudo

Mas escrevo todo esse preâmbulo para dizer que o Aconchego Carioca me lembra a Pousada do Leão nesse aspecto peculiar de intimidade. Não é um bar simplesmente, é a casa de minhas amigas queridas Rosa e Katia. Isso quer dizer o seguinte: as leis do mercado e do serviço não se aplicam totalmente. Ali é preciso pedir licença para entrar e tratar as pessoas que estão ali com o mesmo respeito que se trataria alguém que visitássemos na intimidade do lar. As regras de etiqueta são outras, mais sutis e mais complexas, e quem se comporta mal logo descobre o poder de fogo dessas duas mulheres maravilhosas.


Juliana e João Paulo, amigos que levei pela primeira vez ao Aconchego

Como no caso do Leão, uma vez aconchegado no peculiar carinho dessas duas, o cair de uma tarde boêmia no pequeno salão e varanda da casa, na Praça da Bandeira, se transforma num prazer inigualável.

Além desse aspecto mais sutil e subjetivo, e em relação ao qual certamente nem todos concordarão, há duas razões objetivas que tornam o Aconchego Carioca um bar quase divino. A variedade de cervejas de várias famílias, como larger, ale, stout, entre outras, inclusive toda a linha Colorado e Bamberg, de Ribeirão Preto, e importadas da Europa.

E a cozinha nem se fala. A essa altura quem é do Rio já, pelo menos, ouviu falar do camarão na moranga, do econdidinho de camarão e dos bolinhos de feijoada. Mas isso é só a ponta do iceberg, da cozinha do Aconchego saem pratos tradicionais saborosíssimos, com a deliciosa rabada. Não é a toa que por ali perambulam chefs e entendidos do assunto, como Flavia Quaresma, a quem já vi por lá, e meu querido amigo Guilherme Studart, profundo conhecedor de comida de botequim.


Clientes esticam horas e horas na saideira

E aqui vai uma novidade em primeiríssima mão (concorrência, tremei!): a partir do próximo sábado, a casa vai lançar novos petiscos, cujos preços variam de R$ 12,50 a R$ 20. Eis alguns deles: bolinho de abóbora com carne seca; bolinho de batata baroa com carne; bolinho de arroz ao curry; bolinho de grão de bico com camarão; bolinho de grão de bico com bacalhau; bolinho de feijão branco com rabada e agrião; pastel de angu com requeijão e ervas; jiló do Claude (uma receita oferecida pelo chef Claude Troisgros à Katia e à Rosa em reconhecimento da sensibilidade gastronômica do Aconchego Carioca, em que o jiló é recheado com mel, entre outras coisas). Há mais, muito mais, como a moranguinha de camarão, um petisco patafísico.

Aconchego, conversa fiada, cerveja gelada de boa qualidade e comida dos deuses... o que mais se pode querer? Bem, há dois bares no Rio de Janeiro que têm minha foto na parede, o que para mim é motivo de orgulho deliciosamente besta (me permitam essa autoindulgência): um é o Bar do Serafim, num gesto carinhoso do saudoso Juca Ribeiro. O outro é aqui, nesse cantinho da zona Norte, no carinho dessas meninas maravilhosas. Lá está meu sorriso estampado na parede, espantando as moscas e servindo de companhia às duas carrancas da entrada, que afastam os maus clientes.


Minha primeira cerveja do dia no Aconchego: Colorado Cauim

Só falta agora fechar o ciclo, levando Kátia e Rosa para um fim de semana na Ilha Grande, na Pousada do Leão. Ou talvez não. De repente poderia estar iniciando, sem querer, uma revolução cósmica sem precedentes ao juntar essas feras...

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Adeus a dona Antonia

Encontrei hoje na redação meu querido amigo Custódio Coimbra, um dos melhores fotógrafos que conheço. Vinha de uma reportagem e passou pelo Restaurante 28 para atacar o delicioso cozido da casa centenária. Lá, ele soube da triste notícia: dona Antonia da Costa, a cozinheira, morrera no sábado passado. Imediatamente telefonei para o seu Amandio Salgado, o português dono da casa de pasto, para saber dos detalhes. Dona Antonia tinha 78 anos, dos quais 60 passados na cozinha do 28. No sábado ela passou mal, rodou por vários hospitais, transferências por que qualquer cidadão pobre desse país é obrigado a passar e que pioram a saúde do doente, e no fim faleceu.

No enterro, nenhum parente. Essa mulher quase anônima, batalhadora, talentosa na manejo de temperos e sabores e dona de uma memória gastronômica que remonta aos tempos da belle époque carioca não tinha ninguém, exceto os companheiros do bar onde trabalhava. Com ela a gente perde um pouco desses temperos. E falei sobre isso num post de fevereiro, que pode ser relido aqui. Era uma matéria sobre bares centenários, na qual o 28 era citado.


O espelho do Restaurante 28 com o reflexo de seu Amândio (foto de Custódio Coimbra)

Na minha conversa de hoje com o seu Amândio perguntei se era dona Antonia a responsável pelo saboroso leitão da casa e ele me esclareceu rapidamente:

— Não! Os assados sou eu quem faz. São minha especialidade. Dona Antonia cuidava da comida de panela: cozido, polvo, mocotó.

Por isso, meus amigos, recomendo que corram urgentemente ao 28 e desfrutem desse paladar em vias de extinção. O bar do Jóia, citado na mesma matéria, já está com as portas fechadas, segundo uma nota, para reforma, mas eu, cá com meus botões, temo que ele não abra mais...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

E já que o assunto é o bar...

Os bares morrem numa quarta-feira

Paulo Mendes Campos


Um amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. As pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo. Ninguém se oporia à entrada ou à saída de ninguém. Não havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais ou menos.

leiam o resto dessa maravilhosa crônica no blog Só dói quando eu rio..., do querido Fernando Szegeri, clicando aqui ou no link, lá embaixo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Jornalismo e boemia


Os espelhos do Lamas, utensílio essencial para o flerte

O jornalismo vive hoje vários de níveis de crise, situação que promete mudar estruturalmente a forma como as notícias são apuradas, escritas e divulgadas. Estamos no meio de uma revolução no setor. No mês passado O Globo demitiu nove jornalistas, a maioria com muitos anos de casa, com quem fizeram acordos de antecipação da aposentadoria. Ontem foi a vez de O Dia e o Expresso porem na rua 15 profissionais. Lá fora, a coisa é ainda pior. Vários jornais centenarios estão fechando as portas, reduzindo o tamanho das publicações ou passando a sair exclusivamente online. Sem falar em falências, como a que se anuncia no Boston Globe, da mesma empresa que edita o New York Times. Além da queda de leitores e anúncios, a crise financeira global afeta o setor, no caso brasileiro, de duas formas: o aumento dos preços do papel, o insumo mais caro dos jornais, e o aumento do dólar.

No dia em que foram anunciados os cortes no Globo, depois do expediente, quase por reflexo condicionado, fui para o Lamas, o velho café centenário do Flamengo, onde há até pouco tempo, os jornalistas se reuniam, após os fechamentos de seus respectivos jornais, para um chopinho, jantar e trocar idéias, comentar as edições que estavam chegando à rua e saber das últimas das redações. A turma do Jornal do Brasil, do Dia, do Globo, assessores de imprensa, enfim, os coleguinhas, como se diz no meio, se encontravam em determinados bares após o expediente, entre eles o Lamas.


O amplo salão do Lamas anda vazio por esses dias, mesmo com o novo salão isolado para fumantes

Pois no dia em questão não havia uma única alma conhecida no amplo salão do Lamas, com exceção do Arthur Poerner, que bate ponto no bar, e os garçons quase tão centenários quanto o Lamas, como o Vieira, na minha opinião, um dos melhores garçons do Rio de Janeiro. Sentado ali, jantando sozinho, não pude deixar de me perguntar, aonde estariam os coleguinhas. Também lembrei dos tempos áureos, em que o Lamas, lotado, era palco de discussões acaloradas dos temas nacionais. Colegas misturando chope com uísque e outros destilados. Coleguinhas de assessoria tentando empurrar notinhas e coisa e tal, dicas, trocas de informação e coisa e tal. É verdade que, além do Lamas, havia e há outros bares que recebem os jornalistas, justamente aqueles que fecham mais tarde, dando tempo de o pessoal sair da redação e ainda jantar. O Cervantes, em Copa; o Vermelhinho (que reunia a turma de esquerda), na Cinelândia; e o Capela, na Lapa; também são exemplos, entre outros.

Sentado ali, sozinho, lembrei de um artigo que li (e usei na minha tese sobre as relações de trabalho nas redações de jornais) sobre as novas gerações de jornalistas. Foi uma pesquisa elaborada pela antropóloga Alzira Alves de Abreu. Ela pesquisou entre jornalistas da velha guarda e recém-chegados às redações de vários jornais importantes do Rio e São Paulo. Resumindo a coisa grosseiramente, Alzira percebeu que os mais antigos são da geração boêmia e heróica e os mais novos, da geração profissional.

Na redação do Globo eu já havia percebido bem os dois tipos. Aqueles jornalistas da velha guarda, que valorizam a apuração na rua, que acham que podem mudar o mundo e que o jornalismo tem esse dever, e que são, sobretudo, boêmios, pois no bar está parte de seu trabalho, apurando, pensando em pautas e estabelecendo contatos. De outro lado, as novas gerações, com texto impecável, uma visão profissional incrível (quase todos querem virar o diretor de redação) e que acham que a função do jornalismo é simplesmente informar com precisão e rapidez e não transformar a sociedade. É uma galera que, em geral, entrou nas redações muito nova, com menos de 25 anos, e não viveu a experiência da ditadura e os tempos difíceis dos anos 70 e 80 e já nasceram dominando as novas tecnologias, como informática, telemática e o escambau.


Ponto de encontro de estudantes, jornalistas e boêmios, o Lamas vive hoje um outro momento, mas ainda é uma das melhores saideiras do Flamengo

Os jornais também mudaram. Tentam equilibrar a delicada posição ambígua de ser uma empresa que visa ao lucro de seus acionistas e ao domínio da concorrência, ao mesmo tempo que se pretendem instituição das sociedades democráticas, cumprindo o papel de pôr em questão as ações dos poderes. É óbvio que em vários momentos essas duas orientações se chocam inevitavalmente e, na hora do vamos ver, a primeira tende a se impor sobre a segunda.

De modo que, na minha opinião, a crise por que passa a imprensa não é só financeira. É muito mais estrutural. Como a relação é dialética, as transformações que afetam os jornais, mudam o perfil dos jornalistas, que se adaptam às novas identidades dos veículos. Dessa revolução não só muitos jornais vão fechar, inclusive alguns tradicionais, mas sobretudo a forma de fazer jornalismo passará a ser completamente diferente. Vamos ver no que vai dar.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Entre botequins e pubs


A Adega Pérola ainda mantém seus petiscos tradicionais

Sempre disse que cada cidade de alma cosmopolita faz de suas casas que vendem bebida alcoólica um momumento à boemia, cultura e identidade local. E isso apesar de todo o moralismo que se abate contra esses estabalecimentos oriundo de movimentos de temperança de raízes religiosas, que vêem o bar como o berço do ócio, do alcoolismo, da malandragem, da prostituição e de outros comportamentos desviantes; um lugar que, situado entre o lar e o trabalho, atrai o homem de seu caminho reto, desenhado para ele pelas instituições. Basta pensar nos nossos botequins, nos pubs londrinos, nas pulperías de Montevidéu, nas adegas e tascas de lisboa, nos bares fechados de Nova York e coisa e tal.

Pois bem, graças à magia cibernética do Facebook, reencontrei um grande amigo do século XIV, com quem havia perdido contato, desde que se mudara, com disposição definitiva, para Londres. Trata-se do Orlando Hill, amigo do início da juventude, da militância contra a ditadura, um híbrido de pai britânico e mãe cearense. Pois do Facebook para o Pendura Essa foi um pulo e vejam a mensagem que ele mandou essa semana:

Por causa de você virei leitor de blog. Uma coisa que o Rio e a Inglaterra têm em comun é a importância do bar na identidade cultural. Aí se chama botequim, aqui pub. Pelo que eu leio no seu blog o botequim continua bem de saúde. Aqui o Pub esta ameaçado de extinção. Cerca de 50 pubs fecham as portas toda semana para nunca mais abrirem.

Imagina se a mesma coisa acontecesse no Rio.

As causas deste genocídio cultural são várias a comecar pela introdução do "breathalyser" [o nosso bafômetro]. Nao se pode mais dirigir e beber. Que é uma coisa boa, mas diminuiu a clientela. Uma outra razão foi a mudança da etinia urbana. Houve um aumento da população muçulmana que não bebe. Depois veio a proibição do fumo em lugares fechados.

O enfraquecimento da clasee operária no Reino Unido acelerou essa tendência. Era costume de depois de um dia de trabalho na fábrica ou mina encontrar com os colegas no pub. Hoje o desempregado fica em casa bebendo cerveja em lata.

Mas o grande vilão são os supermercados que vendem cerveja e vinho a um preço predatório que os pubs nao conseguem competir.

Eu faço o que posso e vou a Pub e peço um ale no barril bem tirado.

Quando você tiver bebendo nos botequims cariocas, levante o copo e pense na luta dos boêmios britãnicos pela salvação do pub.

De fato, como aponta Orlando, são muitas as ameaças ao Pub, desde a desorganização social que a crise financeira está provocando no Reino Unido (e no mundo) até a concorrência desleal com os supermercados. Aqui, apesar de tudo, a maior ameaça aos botecos são os donos que vão falecendo sem encontrar sucessores dispostos a tocar o barco. As casas caem em mãos de novos proprietários que, quando não fecham, desfiguram o velho botequim.


A vitrine do Pérola, com suas tradicionais tapas

Por isso, fiquei feliz ontem ao receber um torpedo de meu querido amigo Fraguinha, que avisou: estamos comendo um rollmops e erguemos um brinde a você. Soube imediatamente que ele estava na Adega Pérola, cujo dono faleceu há alguns meses, deixando os fregueses apavorados sobre o que poderia acontecer. Pela mensagem do Fraguinha, os herdeiros vêm mantendo o padrão.