sábado, 27 de outubro de 2012

A verdadeira ameaça ao botequim


A turma da cozinha no saudoso Penafiel do Saara

Para mim, um dos sinais mais contundentes de decadência social é o sujeito beber sozinho no botequim, esse clube social informal, cuja única entrada que se cobra é que se participe das conversas, de preferência bebendo. Quando o ser humano chega ao ponto em sua vida em que, estando num pé-sujo, não consegue mais interagir com ninguém, é porque algum tipo de perturbação mental ou da alma o aflige. Nesses casos, ir do botequim para o sanatório é um pulo. E não é a toa que o pé-sujo é também o reduto de todo o desajustado social. Como diz minha amiga Soraya Simões, com o coração genuinamente aflito, o que seria dos loucos se não houvesse o botequim?

O botequim do Rio de Janeiro teve em seu nascimento como instituição urbana o mérito de servir de refúgio para a classe operária e a população pobre em geral. Daí a fama de lugar de loucos, bêbados, ociosos, vagabundos, malandros, bandidos e que tais. Creio que a circunstância histórica de servir de cenário e espaço para esse tipo de encontro, essa ocorrência urbana, espécie de sobrevivência do simpósio de Platão na modernidade, tornou o botequim relativamente imune às mais conspícuas ou, ao contrário, sutis ameaças à sua existência. A cidade precisa do botequim. E não por seu cardápio popular e criativo, menos ainda por seu cenário típico ou sua arquitetura histórica. Mas exatamente por funcionar como um clube social, onde quase qualquer um pode chegar e participar da conversa.

Meu mano véio Jason no Bar da Adelina, um clube de vizinhança em Botafogo

Digo quase qualquer um porque o botequim ainda é um lugar essencialmente masculino, independentemente da presença cada vez mais frequente da mulher. Não se trata de uma questão de frequência, mas sim de ambiência. O ethos, para dar um pouco de formalismo acadêmico a essa conversa fiada, é essencialmente masculino. Ou seja, a conversa é de homens, e isso aparece nos temas, no linguajar e, sobretudo, na adoração ou na crítica à mulher. O que os homens falam da mulher no botequim daria uma enciclopédia ilustrada da perplexidade que resume o nosso vasto e contraditório sentimento em relação a essas sherazades, ninfas, afrodites, harpias, bruxas, deusas, enfim, citando Geraldinho Carneiro, essas alucinações do espírito.

É verdade que nos botequins familiares, como o Bar da dona Adelina, ali em Botafogo, é perfeitamente normal uma mulher do grupo chegar sozinha para beber sua cervejinha sem qualquer problema. Mas ali ela está em casa e certamente não ficará sozinha por muito tempo. Todos a conhecem, inclusive aqueles que por ventura entrarem ao acaso no estabelecimento. Pois estará óbvio, por meio de vários sinais, que ela pertence ao grupo e, portanto, não está sozinha, mesmo que esteja.

Minha querida Mila Chaseliov, que hoje bebe em outra freguesia, prepara uma tese sobre a presença feminina no bar

Em geral, as mulheres frequentam o botequim em grupo ou com seus homens. Ou então trabalham na casa, como garçonetes, filha ou mulher do dono, ou mesmo sendo a proprietária, como dona Adelina. Algumas são protegidas pelos garçons ou mesmo o dono, que não deixam a rapaziada falar palavrão em voz alta ou assediá-las. Nos pés-sujos mais populares, as que insistem em ir sozinhas beber sua dose no balcão, sofrem discriminação, cantadas grosseiras, são vistas como piranhas, e acabam ou sendo expulsas ou, incrivelmente, enfim, acolhidas de uma vez por todas, como doidas maravilhosas, que conquistaram, numa postura masculinamente destemida, seu lugar naquele mundo dos homens. Essas últimas são sensacionais, e também a exceção que confirma a regra.

Dizem que Antonio Ribeiro provocou uma revolução ao comprar o Belmonte quando colocou espelho no banheiro feminino. A casa atraiu o mulherio. E atrás, evidentemente, vieram os homens. Sucesso total. Mas, por outro lado, muitos sequer consideram o Belmonte pós-reforma um botequim. Qualquer mulher que frequenta botequim sabe o verdadeiro rali que é fazer xixi. E isso é o sinal físico da ambiência masculina. Em alguns bares, o dono tranca e controla como um velho patriarca a chave do banheiro feminino. Esta normalmente presa a um pau de tamanho avantajado, como um aviso de que é ele quem regula certas funções biológicas de suas clientes. E só isso já daria ótimos ensaios psicanalíticos e antropológicos sobre os significados simbólicos desse tipo objeto, uma espécie de totem e tabu do patriarcado boêmio. Com as chaves do banheiro, a dama pode também receber alguns nacos de papel higiênico, um privilégio.

Mas, voltando às ameaças ao botequim, percebo que o fato de ser um espaço menos desigual do que a sociedade que o contém, o pé-sujo se preserva. Por menos desigual quero dizer que as pessoas que na rua, no trabalho, na praia etc. são discriminadas pela aparência, pela posição social, pela cor etc. têm no botequim uma existência como pessoa reconhecida. Ali elas existem de fato. Embora o pé-sujo também tenha suas hierarquias, etiquetas e moralidades próprias e que são bastante complexas.

Pernil e ovo colorido, receitas de botequim

E falo dessa qualidade de clube social informal independentemente do merecido sucesso de botecos, como o Aconchego Carioca, o Bar da Frente, o Enchendo Linguiça, o Bracarense, entre outros, que souberam apostar na qualidade do serviço, mas sem descaracterizar a ambiência e o espírito de botequim. Com todo o sucesso, mais do que merecido, a Katita, por exemplo, continua a mesma dona de botequim que sempre foi e a maior virtude de seu bar não são os bolinhos de feijoada ou o camarão na moranga, mas o clube social que ela criou ali (um dos meus orgulhos é estar numa fotografia na parede do bar). Valéria e Mariana, as meninas do Bar da Frente, o Fernando do Enchendo Linguiça, e o Kadu Thomé, do Braca, também.

Acredito que o botequim sobreviverá enquanto for um espaço para a conversa fiada. E, nesse sentido, para mim a maior ameaça não está nos bares da moda que se travestem de botequim para vender uma falsa ideia de boemia, mas sim na revolução tecnológica que colocou, por exemplo, a TV de plasma, como bem salientou outro dia o Edu Goldenberg, não mais exclusivamente para que os convivas assistissem aos jogos de futebol, mas como uma onipresença em que já há casos em que se manda falar baixo para não atrapalhar a novela. Mas mais ainda, penso nos gadgets eletrônicos, como smartphones e iPads, que interferem na conversa e podem alimentar aquela figura solitária, que bebe sozinha e prefere dialogar com o mundo virtual.

Paiva, Ed e eu, no Jobi. História de botequim (foto de Nelson Vasconcelos)


PS: Na semana passada participei de dois eventos em que o botequim foi o tema central. O primeiro foi um debate com Edu Goldenberg e Carlos Lessa, no FIM do Livro no Porto, em que teoricamente iriamos discutir sobre o decreto de tombamento dos bares, mas acabamos falande de outras coisas também, mais o Lessa do que qualquer outro. E o segundo foi na Academia Brasileira de Letras, um pouco mais formal e sem debate, apenas palestra, com Sergio Cabral (pai), Hermínio Belo de Carvalho e, novamente, Carlos Lessa. O tema foi bar, boemia e intelectuais. Mas, para mim, a semana foi fechada com chave de ouro, com a homenagem que a turma do Villarino fez a este pobre e desvalido escriba, criando um prato com meu nome: bolo de carne à Paulo Thiago, que é o bolo recheado com paio ou linguiça calabresa, acompanhado de arroz, lentilhas e salada de tomate. Isso sim é imortalidade. Ainda mais num bar como o Villarino com toda a história que tem. Obrigado!

domingo, 21 de outubro de 2012

Adeus à Soneca

Soneca não era muito afeita a posar para fotografia. Buscando em meus arquivos vi que, em tantos anos de convivência tinha pouquíssimas fotos dela. Mas achei esta, mal feita por mim, mas que é tão a cara dela, acomodada confortavelmente no sofá, intensa, linda.


Ontem, foi um sábado de intensidades. Depois de 12 dias direto de trabalho sem folga, estava programado para falar sobre botequim no FIM (Fim de Semana do Livro no Porto), numa mesa com meu querido Edu Goldenberg e Carlos Lessa. O encontro tinha sua importância pessoal, pois seria a primeira vez em que eu e Edu conversaríamos pessoalmente, e logo numa espécie de mesa diante de uma plateia, sobre esse tema que nos é muito caro. Edu é um defensor dos botequins, muito mais radical do que eu, que me limito a analisar os fenômenos que consigo perceber. Ele não. Ele faz de seu blog (Buteco do Edu) uma trincheira em defesa de uma boemia e uma identidade carioca que se vê ameaçada por mudanças, esquecimentos, desrespeitos e que tais.


Ocorre que, ao levantar, fui pego pela notícia triste da morte de uma amiga querida. Mais uma vítima do câncer (é impressionante a quantidade de pessoas com câncer e mais ainda a quantidade de pessoas que estão morrendo da doença, é uma verdadeira epidemia). Sonia Prestes, minha amada Soneca, de quem andava afastado nos últimos anos e, por isso, sequer soube que ela estava doente. Foi um susto triste, um sopro de melancolia a notícia. Ela foi cremada ontem, mais ou menos na hora em que eu estava falando no Morro da Conceição.

Conheci a Soneca quando tinha uns 8 ou 9 anos. Mãe de um colega de turma, o Beto Ninô, na escola pública Manoel Cícero, ali, uma daquelas construções gêmeas (a outra escola, se não me engano, é a Julio de Castilho), em frente à Praça Santos Dumont. Depois a vida seguiu, morei no exterior, voltei, e o Beto se casou com uma prima minha, o que acabou me reaproximando de Soneca. Ela fizera uma revolução em sua vida, tornando-se uma psicanalista de percepção arguta e sensível, principalmente nas relações entre pais e crianças. Ela era acima de tudo uma entusiasmada defensora do poder da análise na transformação da vida das pessoas para melhor, no sentido de deixar desabrochar potencialidades e disponibilidades para a vida.

Me lembro que eu devia ter uns 20 e poucos anos, nós costumávamos andar pelo calçadão da praia, quilômetros e quilômetros de conversas estratosféricas. Um dia perguntei sobre a importância da análise em sua vida e ela me disse que seu único arrependimento era ter começado muito tarde, pois ela queria ter podido sentir mais cedo a libertação que sentia naquele momento da vida dela (ela se aproximava dos 50 anos). Impressionado com suas palavras, eu logo tratei de fazer análise. E. de fato, fiz algumas revoluções internas que hoje me permitem ser quem eu sou. Soneca, generosamente, me deu isso de presente.

Apaixonada por dança de salão, Soneca era amiga de todos os bambas, como Carlinhos de Jesus, Jaiminho e outros. Bem antes disso se tornar moda. Frequentava os salões e gafieiras e fazia, às vezes, suas próprias festas no velho apartamento de Ipanema. Aparentada ao velho Prestes, tinha uma mente de esquerda, mas muito avançada para a pequenez das picuinhas partidárias e de diretórios. Ela era sobretudo uma libertária. Denunciava na hora as velhas tentativas de domínio e manipulação que certas personalidades apresentam. Foi de uma dissidência de um grupo de psicanalistas e depois seguiu um caminho próprio na terapia, incorporando à coisa freudiana elementos que seus pacientes traziam.

Sua atenção principal eram as crianças, pelo que me lembro. A forma como se criam os pequenos, com o dia a dia se sobrepondo a certas violências silenciosas, maus tratos imperceptíveis a olhos comuns, que depois se desenvolvem em carências, neuroses e tais.

Bem, não sou psicanalista para fazer uma avaliação séria, mas o que vejo na Soneca que me parecia raro era a atenção e a torcida que ela tinha não só por seus clientes e amigos, mas por qualquer pessoa que cruzasse com ela. Ela realmente torcia pelas pessoas. Quando ela percebia algo que a animava em relação a alguém, falava disso com entusiasmo contagiante. E raro. Só fui ver um entusiasmo igual na Flavinha Bali, que fala das pessoas próximas, pacientes ou não, com emoção genuína, igualmente contagiante.

Era impressionante, às vezes bastava uma conversa casual, à praia, à rua. E ela vinha cheia de alegria por aquela pessoa, dizendo algo como: “que caráter admirável”.  Soneca era assim: entusiasmada com o ser humano e sua capacidade infinita de superar traumas, se desvencilhar de amarras emocionais, de se reinventar, desde que estimuladas pela coisa certa, no momento certo. Podia ser a análise, a religião, um cachorro de estimação. Tudo para Soneca tinha o poder de ser terapêutico. Talvez seja por isso que, mesmo distante dela nesses últimos anos, eu sentisse sua presença pairando sobre mim, e, ontem, ao saber de sua morte, não tenha conseguido reprimir uma sensação de desamparo.

sábado, 13 de outubro de 2012

Samba minimalista


Caiu em minhas mãos um CD excelente. Minimalista bem de acordo com os tempos atuais, reúne a cantora paulista Juliana Amaral a poucos e bons músicos. Batizado de SM, XLS (samba mínimo, extra luxo super), o disco tem como proposta a música no esplendor do básico. A voz, excelente, de Juliana, acompanhada por um instrumento básico (a maioria das vezes um violão de sete cordas, bem executado por Gian Corrêa) e uma percussão sutil para realçar alguma ideia musical da poesia das letras, ou como acompanhamento rítmico (também muito bem executado por Samba Sam). Ouvindo o pandeiro, me lembrei do que me disse certa vez minha amiga Joana Saraiva: o pandeiro pode muito bem substituir uma bateria em algumas circunstâncias. E isso se comprova no disco de Juliana.

Quando Manduka estava gravando seu primeiro disco no Brasil, em 1979, tive o privilégio de acompanhar todo o processo. Vi algumas das canções nascendo, depois o Joca, guitarrista fenomenal, arranjando as bases e, em cima de seus arranjos, Celinha Vaz, colocando orquestrações. Tudo excelente, tudo sensacional. Mas intimamente preferia, por meu gosto, ouvir apenas o violão majestosamente tocado por Manduka e sua voz singular. Mas os tempos eram ainda aqueles em que a simplicidade era considerada um defeito. Naquele início dos anos 1980, fazia-se música para ouvidos profissionais, achando que os pobres mortais se encantariam mesmo sem entender as operações matemáticas das sofisticadas harmonias, com suas inversões e malabarismos timbrísticos. E sobre a base colocavam-se camadas de arranjos, de certa forma, apagando a essência da canção. E eu, que conhecia as músicas de Manduka tocadas pelo próprio em seu excelente violão, me sentia um tanto frustrado de perder essa essência.


O que Juliana faz neste CD é valorizar extremamente, como nenhuma orquestra poderia fazê-lo, a interpretação da cantora e o acompanhamento como suporte à voz, mas com suas próprias sutilezas e maestria. O estúdio gravou inclusive uns soluços, que transbordaram pela garganta da cantora, reforçando essa sensação visceral. E, voilà, o que era minimalista se torna grandioso.

Destacaria ainda a regravação de Acabou Chorare, do grande Moraes Moreira. Juliana coloca sua alma ali e, ao mesmo tempo, evoca o tom igualmente intimista da gravação original dos Novos Baianos. O disco traz ainda um recado paulista e, nesse sentido, é regionalista e um tanto mesmo provinciano, mas num bom sentido, com a competência e a qualidade que os paulistas normalmente empregam em suas produções. Incorpora composições de músicos de São Paulo ou que ali se abrigraram, como Itamar Assumpção e Tom Zé, além de vários compositores paulistas contemporâneos. Ela inclusive grava O mistério do samba, de Fred Zero Quatro e Marcelo Pianinho, que afirmam que o samba não é carioca nem baiano, mas sim pura invenção. Bem, isso é outro assunto e dá pano pra manga.

Mas fica a sugestão do belíssimo CD de Juliana, mais um disco bom para abrir o fim de semana. Voz e violão ou voz e clarinete ou voz e cavaquinho ou voz ou vibrafone... com uma percussão sutil e presente.

sábado, 6 de outubro de 2012

Gritos e sussurros

No post abaixo, sobre pelos pubianos, mencionei que da minha geração para cá até a forma de gemer mudou. Aqui e no Facebook várias amigas revelaram uma curiosidade sobre o que, afinal, eu quis dizer com essa afirmação tão improvável. Bem, tento aqui tratar disso, retomando do post anterior a ideia de “coletividade” que se impõe, quase que "durkheinianamente", sobre nossos costumes tupiniquins. As modas e as ondas não se restringem a roupas, circuitos boêmios e comportamento público. Elas intervêm também na intimidade, pois esta é cada vez mais compartilhada em redes sociais, sejam elas virtuais ou reais.

Como sempre, corro um grande risco ao generalizar as coisas, mas como estamos num blog cujo subtítulo aponta para “escritos sem compromisso”, olho a coisa como se estivesse à mesa de um botequim, refletindo sobre mitos fulgurantes da nossa cultura contemporãnea. Assim, comparativamente, retorno à minha geração, que, com toda a repressão política e sexual que se abatia sobre nós, ensaiou uma fracassada revolução sexual. Estou falando dos anos 1960-1970, quando a pornografia era perseguida e o rigor moralista católico se manifestava por meio dos olhos vigilantes de pais, professoras, padres, inspetores etc. Sexo era um tabu, inclusive e sobretudo enquanto discurso — e o anjo pornográfico Nelson Rodrigues captou muito bem essa energia que subjazia sussurrada sob o manto de normalidade.


Ao contrário de hoje, não se falava do assunto abertamente, exceto na intimidade do quarto, nas alcovas barrocas da literatura erótica, ou na pornografia descuidada, como os catecismos de Zéfiro, que se adquiriam em certas bancas de jornal, e serviam como catálogos de perversões mal ilustradas. À rua, a juventude chamada de “transviada” — que, com seus cabelos longos e aderência ao rock’n’roll, se extraviara do bom caminho —, era agredida verbalmente e, às vezes, fisicamente. Os meninos com cabelos compridos eram tachados de “viados”. As meninas, putas. Todos vistos como viciados, almas perdidas: “aonde o mundo vai parar, dona Rosinha?, indagavam, aflitas, as mães às suas comadres de igreja”.

Mas, a partir da revolução comportamental de 1968 (uma espécie de Primavera Árabe mundial da época; só que em vez de hijab, batas indianas; em vez de moderação e abstinência, sexo, drogas e rock’n’roll), a nova geração, não sem conflitos, ensaiou uma afirmação existencial própria, negando o moralismo hipócrita dos caretas. Começavam, embora mais no plano do desejo do que no da realização concreta, tentativas de enterrar aquele moralismo religioso, quase rural. Isso se refletia em todos os campos, na academia, nas artes e na filosofia, e no comportamento cultural (é nesse momento, por exemplo, que a Tropicália emerge como movimento de vanguarda).

É claro que o buraco é mais embaixo. O psiquismo das pessoas não muda da noite para o dia, convertido pela “revolução”. Mas ali começava um movimento dialético, alternando enfrentamento e aderência ao sistema, que acabou por, de fato, transformar o comportamento da sociedade, ainda que a caretice e o moralismo tenham sobrevivido relativamente bem e se apresentem hoje com roupagens mais adequadas aos novos tempos. Não é à toa que vejo gente da minha geração reclamar que os filhos são mais caretas que seus pais haviam sido. O conservadorismo continuou latente, e as contradições entre discurso libertário e ação repressiva explodiram nos limites, culturais e psicológicos, de cada um.


No plano do discurso, começou realmente um movimento importante, que ao longo do tempo acabou mudando a sociedade. Hoje, somos muito diferentes do que éramos então. Porém, a caretice e o moralismo conservador permanecem renascidos e revigorados por novas expressões e atitudes. Os jovens nas igrejas, por exemplo, têm cabelos compridos e tocam corinhos em ritmo de rock'n'roll. Como se vê, dos anos 1960 para cá, muita coisa se perdeu nesse processo, além dos pentelhos.

O tabu que remetia o sexo para a alcova se desfez à proporção que o assunto veio para a sala de jantar; à medida que saiu do fundo das bancas de jornal em esquinas obscuras para as livrarias mais nobres da cidade. O assunto virou talkshow em programas como Papo Calcinha, Saia Justa, entre outros; foi desinfetado por sexólogos pops (como a menina do Altas Horas) e médicos como Dr. Drauzio Varella; virou bestseller, numa literatura rápida, em que a narrativa dramática — como se via, por exemplo, em um Henry Miller ou numa Anaïs Nin — perdeu espaço para a descrição detalhada, ginecológica e, voltando à noção de pureza e impureza, asséptica.

Há alguns anos, médicos alertaram, preocupados, que havia uma procura muito grande de adolescentes saudáveis por cirurgias plásticas, para aumentar os peitos. Alguém conjecturou que elas estavam seguindo um modelo estético das atrizes pornôs americanas, que entopem os peitos com silicone a ponto de quase explodirem. E, quando trepam, eles balançam como melões soltos sob a pele, como se não fizessem parte do corpo. Os filmes pornôs, que nos anos 1970 fizeram experiências estéticas (clássicos como Garganta profunda e Atrás da porta verde, e o surpreendente musical Alice no país das maravilhas, por exemplo), tornaram-se uniformes e educativos. Mostram tudo explicitamnte, mas encaretaram. E estão acessíveis a qualquer um pela internet. Daí, talvez, venha essa estética pornô clean, que não se restringe ao corpo, mas às formas de trepar e... de gemer.

A sonoridade que escapa pela garganta durante um ato prazeroso e proibido — e que, portanto, nos aproxima o máximo possível da condição humana — é mais gutural, chorada, suspirada... ecoa num volume explosivo, por mais sussurrada que seja. Está sempre por um fio, entre os dentes, precária. Não pode ressoar da mesma forma que os gemidos industriais, assépticos, e, num certo sentido, banais, que emergem de grandes produções pornôs, mesmo que o cenário destas seja a nossa cama.