sábado, 31 de outubro de 2009

A alma imponderável das coisas



Vivo no equivalente ao vigésimo andar. Do alto da torre vejo o mundo abaixo com olhos de monarca. Mas a casa é absolutamente devassada pela cidade. Primeiro há o vento, que a atravessa impetuosamente, sem pedir licença. Às vezes, chega no susto, no de-repente, com raios, trovões e presságios. Às vezes, abre o campo do céu num azul profundo. Até pus uns sinos estrategicamente nos cantos norte e leste, por onde sua corrente passa, para me alertar da chegada súbita do Sudoeste que, sem aviso e em segundos revira toda minha vida de cabeça pra baixo. Mistura papéis, esconde fotografias e perde o parco dinheiro que esqueci sobre a mesa.



Antes do vento, chega a luz, nos primeiros raios da manhã e tudo se esclarece num deslumbramento matinal com gosto e cheiro de café fresco. Se a noite foi boa, se prolonga pelo dia. Do contrário, esvanece. A cidade então começa a chegar pela janela, com seu pregão diário. Nos dias de calma, fins de semanas, são pagodes, churrasquinhos na calçada, cachorros latindo e gritos de futebol. Nos dias de trabalho são sirenes, buzinas, carros e motocicletas passando e as crianças do ginásio ao lado gritando em coro no esplendor histriônico da pré-adolescência:

— Viado! Viado!

— Piranha! Piranha!



Mas a casa é protegida por todos os deuses, sincronismos, patuás e salamaleques. Gosto de pensar nas festas e amigos que chegaram e se acomodaram ao longo dos anos, mas sobretudo nas namoradas, amores que ficaram. Do aparelho de som extraio os sentimentos para a atmosfera que se apresente. Sem falar nos sortilégios para boas companhias. Bola de Nieve, por exemplo, nos jantares com rum ou um tinto rascante se torna irresistível. Principalmente, se na seqüência vier Chet Baker ou Cartola. A alma das ninfas se esparrama pelo futom e todo um universo se abre, enchendo o quarto de mariposas. Quantas histórias começaram naqueles boleros cubanos, tristes histórias de amores fadados ao infortúnio — “no puedo ser feliz, no te puedo olvidar...” —, quantos corações roubados para sempre... Me lembro de Bebel, arrebatada pelo Bola e por mim, que imitava o monsieur Julian para ela. Carla só gostava de rock’n’roll, uma linda mulher, careca e forte.



Em outros momentos, são os livros, os milhares de livros que se apossaram da casa, empilhados, embaralhados... Certas almas embarcam nas narrativas e tecem elas próprias enredos de Sherazade: tudo entra num loop de mil e uma noites. Deborita me encantou quando soltou os cabelos e espalhou seus cronópios pela sala e o quarto. Uma alma de funduras e vôos no infinito. Atravessamos o Planalto em chamas, encontramos Pedro Páramo, Fermina Daza, José Arcadio Buendía, o cigano Melquíades e a menina má, insuportavelmente maravilhosa. Mas nada se compara ao enredo real de sua vida e dos incêndios que atravessou.



, por sua vez, era um fulgor andando pela casa; gostava de se balançar na rede, quase nua, exceto pelo livro que estivesse vestindo. Gostava dos Versos do Capitão, de Neruda, e o Drummond pornográfico. Antonia tinha a alma trágica. Abraçava-se a Vallejo, recitando Os arautos negros com uma dor comovente. Érica gostava mesmo era de inventar coisas na cozinha. Dada a bruxarias e sortilégios, ali era seu domínio. Divergíamos em discussões filosóficas sobre o momento certo de pôr os tomates no picadinho — se na hora do refogado ou mais no fim, quando a carne começava a cozinhar. era a tempestade em copo d’água encarnada em ossos e sangue de tigresa. Um perigo delicioso e felino. Escapei por um triz.



Gosto de sentir a casa assim. Pelos objetos, os livros, os discos, os quadros, as peças recolhidas das viagens pelo mundo ou ganhas de visitantes que passaram por aqui. Essas coisas mágicas têm o poder de abrir universos paralelos e trazer para perto, através da memória das instâncias em que se deram, gente que já vai longe. E assim objetos viram pessoas que me abraçam pela casa.

domingo, 25 de outubro de 2009

Cincoenta



No último dia 17 amanheci já em outra vida. Os 50 chegaram com o peso da meia-idade, Idade Média, Medieval, Cinquentão e coisa e tal... a imagem pública social dessa fase da vida contrariada pela percepeção interna, quase uma desconfiança, de que continuo o mesmo. Um garoto descobrindo a vida. Um adolescente em muitos sentidos, sobretudo naqueles relacionados à idéia de amor. Me lembro que na festa dos 40 os amigos foram chegando ao Bar do Serafim até ocupar o bar inteiro. A presença feminina esmagadora me encheu de orgulho. Minhas Sherazades, minhas meninas cheias de vontades e manias, insuportavelmente maravilhosas. Aos 45, a comemoração foi no Cosmopolita, também ocupado inteiramente. Essa teve um tom de gurufim, tendo sido comemorada um dia depois da morte de meu mano véio Manduka. Foi uma catarse que contaminou a todos e descambou de Tanatos para Eros: todo mundo se deu bem. Agora, talvez mais sereno, recebi os abraços efusivos de várias gerações de amigos no Aconchego Carioca, mas terminei a noite embalado na cançãode ninar de uma ninfa, como convém nesses momentos. Amanheci novamente guardado na mesma vida. E o poema do Thiago de Mello, meu tio, meu mestre nas letras, se materializou mais uma vez, diferente, mas o mesmo, como um rio:


Ser capaz, como um rio
que leva sozinho
a canoa que se cansa,
de servir de caminho
para a esperança.
E de lavar do límpido
a mágoa da mancha,
como o rio que leva,
e lava.

Crescer para entregar
na distância calada
um poder de canção,
como o rio decifra
o segredo do chão.

Se tempo é de crescer,
reter o dom da força
sem deixar de seguir.
E até mesmo sumir
para, subterrâneo,
aprender a voltar
e cumprir, no seu curso,
o ofício de amar.

Como um rio, aceitar
essas súbitas ondas
feitas de águas impuras
que afloram a escondida
verdade nas funduras.

Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.

Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.

sábado, 10 de outubro de 2009

Rio Botequim 2010 e Bip Bip, uma reflexão


Reunião no Cosmopolita: Jaguar, seu Tuñas, Guilherme, eu e Paulo Mussoi

Sempre defendi a idéia de que o botequim carioca é muito mais do que serviço e gastronomia, funcionando, antes de tudo, como um espaço de sociabilidade, uma espécie de clube social da vizinhança, em que aspectos da cultura do bairro e da cidade são reiterados e vínculos de amizade e de identidade social são reforçados em conversas, jocosidades, disputas etc. Onde o pendura aparece como um importante regulador do ciclo de confiança entre fregueses e proprietários, muitas vezes mediado pelos garçons etc. Onde o botequim, como comércio de proximidade, atua como um importante elemento a estimular a vida na calçada e no bairro etc. Nas seis primeiras edições do Rio Botequim em que participei, essa noção, digamos, antropológica foi defendida numa luta constante para fazer com que o guia registrasse esse aspecto subjetivo, porém importante, porque diferencia o botequim carioca dos estabelecimentos comerciais que vendem bebida alcoólica no resto do país.


O garçom Ramos, do Villarino: alma de botequim

O boteco de São Paulo, por exemplo, em geral valoriza o serviço, o atendimento, a qualidade da comida, o ambiente, o banheiro limpo etc. Mas não é um lugar aonde se vai de sandália e sem camisa, bater papo, jogar porrinha, observar a vizinhança passando, a gostosa do bairro, a vizinha chata que reclama do barulho e da bagunça. Não é lugar onde se usa da verve jocosa para gozar os amigos, idealizar projetos, pequenos negócios e revoluções socialistas; criticar o governo, o patrão, a patroa e a sogra etc. Ou seja, o boteco paulistano de grife não valoriza a ambiência, a atmosfera, o ar cosmopolita da cidade. Ir ao boteco em São Paulo é um programa; é como ir ao cinema, ao teatro etc. É necessário se vestir adequadamente. Tem hora pra chegar e sair. No Rio, não é necessariamente assim, embora tenham proliferado nos últimos anos bares com essa característica paulistana, isto é, voltados para o serviço. Nos verdadeiros botequins cariocas, o que está em jogo é o cotidiano, é o botequim da esquina, que liga os fregueses à rua, ao bairro, à cidade. Um clube da esquina.


Decolores, em Nikiti: alma de botequim

Por isso, o botequim carioca era contraditoriamente tido pela elite da cidade e as instituições formais — como o Estado, a Polícia, a Igreja, a Medicina etc. — como um lugar de vagabundo, puta e malandro. Lugar de doença (o alcoolismo) e perdição, um antro que desviava o homem reto de seu caminho entre o lar e o trabalho. Onde o marido deixava parte do parco salário para desespero da família. E ainda chegava em casa dando esporro na mulher. Por outro lado, era cantando e louvado pela boemia, pelos artistas, músicos e poetas, pelos operários que encontravam nesse espaço um lugar onde a hierarquia social era mais igualitária, onde tinham sua voz e obtinham o respeito difícil de encontrar no resto da cidade. Era e ainda é também um retrato cultural da cidade, revelando o desenvolvimento urbano, as transformações históricas, a urbanização, a industrialização etc.


A cozinha do Cervantes: alma de botequim

O lançamento do Rio Botequim, no fim da década de 90, ajudou, pela repercussão que teve na imprensa, a chamar a atenção para esse lado de identidade cultural da cidade. Mas, se por um lado, o carioca mais desavisado começou a bater no peito orgulhoso de seus botequins, as visões negativas sobre o pé-sujo não desapareceram, sobretudo por parte das autoridades municipais, com suas leis draconianas de posturas, impedindo, por exemplo, mesinhas nas calçadas, coisa comum em qualquer cidade cosmopolita do mundo. O aumento da freqüência também teve conseqüências de ordem econômica e social. Os preços subiram, donos de alguns botequins, deslumbrados com o maior reconhecimento, antes tímido, empreenderam modificações, reformas, investiram em redes e priorizaram o serviço, desconfigurando exatamente aquele aspecto de clube social.


Aconchego Carioca: alma de botequim

De olho no sucesso econômico desse fenômeno, rapidamente restaurantes e bares sofisticados passaram a se autodenominar “botecos” e adjetivos semelhantes, evocando informalidade, simplicidade e uma gastronomia singular. Os jornais criaram colunas de especialistas (é verdade que Jaguar e outros já escreviam sobre isso desde sempre), criaram-se concursos, eleições, valorizando garçons, pratos, bebidas, baratonas e toda sorte de eventos etc. Houve uma “profissionalização” em torno desse segmento botequim. Parte dessa revolução foi positiva, pois melhorou muita coisa que podia ser melhorada sem implicar numa descaracterização, incentivou a criatividade dos donos de botequins, como Katia e Rosa, do Aconchego Carioca, Alaíde, ex-Bracarense, Fernando, do Enchendo Lingüíça, Paulette, do Petit Paulette, e tantos outros. Inventando pratos, reforçando a ambiência etc.


Bar do Jóia: alma de botequim (foto de Custódio Coimbra)

Mas também teve seu lado negativo, com a proliferação de falsos botecos, uma certa banalização e mesmo fetichização do botequim, tanto por aqueles que o querem transformar em botecos paulistanos, limpinhos e cheirosos, como aqueles que desejam mantê-los parados no tempo, alheios às mudanças estruturais da cidade. Enfim, dos anos 90 pra cá, o botequim carioca viveu uma verdadeira revolução como instituição cultural da cidade, com seus efeitos colaterais e coisa e tal. Virou assunto em cada esquina e, como no futebol, tem um especialista em cada cidadão, de modo que cada um tem sua visão e diagnóstico sobre esse processo. Aqui, apenas exponho minha percepção em relação a esse fenômeno.


Adega Pérola: alma de botequim

A sétima edição do Rio Botequim, já a cargo de meu amigo Guilherme Sturdart, foi uma edição especial, voltada exclusivamente para gastronomia, uma especialidade do Guilherme, que é um estudioso do tema, tendo catalogado em anos de pesquisa pessoal mais de mil bares, classificando-os, entre outras coisas, por suas singularidades culinárias. Dificilmente haverá um bar na cidade e arredores que ele não conheça. Tirando o desenho gráfico do guia, que recortou as fotos de tal modo que não permite ao leitor que se tenha uma idéia dos bares sobre os quais se fala, o projeto foi bastante interessante, selecionando bares por especialidades da cozinha, fornecendo as receitas de cada um e coisa e tal.


Pavão Azul: alma de botequim

Agora, a editora Casa da Palavra, de minha amiga Martha Ribas, prepara a oitava edição do Rio Botequim, ou o Rio Botequim 2010. Dessa vez, não há a chancela: “especial gastronomia”. Ou seja, o guia vai tratar de bares por suas virtudes além da cozinha, inclusive ambiente, bebida, arquitetura, higiene etc. Nesse processo, fui convidado para participar de uma espécie de conselho de especialistas, que, entre outros, contou com figuras como Jaguar, Moacyr Luz, Marcelo Lins e Paulo Mussoi, para ranquear entre os 200 bares selecionados para o guia os 50 que receberão estrelas (de um a três). O evento, realizado no Cosmopolita, dos irmãos Tuñas, casa inaugurada em 1926 e onde Oswaldo Aranha inventou o filé que leva seu nome, foi marcado por uma bem-humorada e simultaneamente tensa discussão sobre a lista de bares que receberão ou não estrelas no próximo guia.


Alfredinho, do Bip Bip: alma de botequim

Dois dias depois, Joaquim Ferreira dos Santos, ao resenhar o encontro, publicou na coluna Gente Boa, do Globo, uma informação imprecisa: a de que o Bip Bip, por sugestão de um dos membros da comissão, não seria ranqueado com estrelas. A informação é imprecisa porque, embora a sugestão tenha sido de fato apresentada, não se bateu o martelo sobre a inclusão ou não do Bip entre os estrelados do guia. A decisão ficará a cargo do autor e da editora do projeto, Guilherme Sturdart e Martha Ribas. O que posso dizer é que, do mesmo modo que sugeriram a retirada do Bip, sua permanência foi por mim defendida com ardor. Afinal, não se vai a botequim apenas para comer. E o Bip, que já foi até capa do jornal francês Le Monde, é um bar que eu indicaria a qualquer pessoa interessada em conhecer a alma dos botequins cariocas, gringo ou da terra. Eu, que tenho o Alfredinho como um pai, a quem peço a benção quando encontro, sou obviamente suspeito em minha defesa. Mas não estou só nela.


Samba no Bip: alma de botequim

Vamos ver como sairá o guia. Talvez a idéia de botequim exclusivamente como serviço esteja se sobrepondo aos aspectos culturais mais amplos e intangíveis, difíceis mesmo de descrever num guia por sua subjetividade. Talvez isso seja visto, sobretudo aos olhos dos financiadores do projeto, como uma profissionalização do guia (o Joaquim usou a expressão, perigosíssima a meu ver, “Michelin dos bares”), mas prefiro pensar que após todos esses anos, com toda a experiência adquirida e tendo consciência do papel do Rio Botequim no estímulo a uma reflexão sobre esses estabelecimentos, respeite-se a noção de ambiência, que engloba essa característica de clube social da vizinhança. Para mim, essa noção é tão ou mais importante do que gastronomia, limpeza, arquitetura, história, bebida, garçom e ambiente (espaço), pois é ela que diferencia o botequim carioca dos bares de outros lugares.


Bip Bip: alma de botequim

sábado, 3 de outubro de 2009

Chope centenário


A rara chopeira torneada do Bar Brasil garante a cremosidade certa. Pena que a Brahma não a fabrique mais. Uma relíquia

As novas gerações de jornalistas não bebem e não têm alma boêmia. Não sei se é porque agora eles chegam às redações tão novinhos, inexperientes da vida. Mesmo o pessoal com quem trabalho atualmente no Globo, que não são tão novos assim, preferem sempre ir para casa não importa como tenha sido o dia na redação. Minha velha turma da boemia foi se espalhando para outras seções, outros jornais, outras cidades e agora sou quem quase nunca vai a um bar durante a semana. Mas a chegada de uma amiga, que está na sucursal de Brasília do jornal, procovou um reencontro nessa quinta-feira no centenário Bar Brasil (na verdade, 102 anos), até fechar, e saideira no Capela.


Tomando a saideira, antes de ir pro Capala fechar a noite

Gosto muito do Bar Brasil. Para mim não tem chope melhor na cidade e mesmo aqueles que não pensem assim, certamente colocarão o chope da casa entre os cinco melhores. A cozinha alemã tem suas virtudes também, mas é a atmosfera da Lapa do início do século passado, da malandragem de terno branco, dos compositores, poetas e sambistas. Sob o imenso pé-direito, muitas histórias, muitos dramas... e seu José Otero, com aquele sotaque português quase incompreensível de tão rápido, uma figura.


A geladeira de madeira, outra relíquia que está em pleno uso no Bar Brasil

Foi bom matar a saudade, de minha amiga, Flavinha, e do Bar Brasil. Na reportagem que fiz sobre os bares centenários, para a Revista do Globo, não coloquei o Bar Brasil porque ele já era consagrado, e eu queria lançar luz sobre alguns que são menos conhecidos do grande público, como o Restaurante 28 e o Bar do Jóia. Me arrependi. O Bar Brasil merece estar em qualquer lista de bares tradicionais. Acabei fazendo uns retratos com o celular.


A expulsadeira...