sábado, 16 de maio de 2009
O Botequim e o bairro
Meu querido amigo Chico Rufino, responsável pela Adega da Velha
Na pesquisa de campo de minha dissertação sobre um botequim de proximidade em Botafogo, trabalho que me valeu o título de mestre em antropologia, freqüentei diariamente, por dever de ofício e por lazer, durante mais de três anos a Adega da Velha, do meu querido amigo Chico Rufino, cearense de Cariré. A ideia central da pesquisa era mostrar dois aspectos desse boteco nordestino, dono do melhor baião-de-dois do Rio: sua relação interna com os fregueses assíduos (os diálogos, o sistema do pendura, a relação com os garçons etc), e sua relação com a rua e o bairro, no caso Botafogo, para mim, incomparavelmente o melhor bairro da cidade.
Chico Júnior, o herdeiro, já tomando conta do balcão da Adeguinha
Pois bem, um dia estou em pé ao balcão, bebendo meu chopinho e conversando com o Chico, quando noto que meu interlocutor não está prestando atenção no nosso papo. Em vez disso, observa, com semblante preocupado, a esquina do outro lado da rua. Imediatamente dirijo meu olhar para tentar descobrir o que chamou a atenção de meu amigo. Aparentemente, não vejo nada de extraordinário. Um pequeno aglomerado de pessoas no ponto de ônibus, clientes comendo na casa de sucos da esquina, os transeuntes indo e vindo... tudo normal. Volto-me então para o Chico e pergunto:
— O que foi?
— É a Marianinha. Está conversando com sujeito esquisito lá na esquina — diz ele.
Olho novamente para a cena e, aí sim, reparo num sujeito, com jaqueta militar, de 20 e poucos anos, conversando com uma menina de uns 13 ou 14 anos, vestida com uniforme escolar clássico. Em seguida, Chico se volta para uma das manicures, que fumava seu cigarro na calçada em frente ao salão do outro lado da rua, e, apontando para a esquina, pergunta quem era o sujeito. A mulher dá de ombros, mas passa também a acompanhar de longe a conversa do estranho com a menina.
Passa-se mais um tempinho, o cara vai embora e a menina vem, enfim, em nossa direção. Quando a garota passa em frente à Adeguinha, o Chico grita, com a autoridade de um pai:
— Marianinha, vem cá!
— Que foi, seu Chico? — pergunta ela, entrando na Adega.
— Quem era aquele cara que você tava falando?
— Ninguém. Ele só queria saber onde era a rua Dona Mariana.
— Marianinha! Você não pode ficar falando com estranho na rua, menina! Vou contar pro seu pai!
E por aí segue o paternal Chico, falando sobre os perigos da rua e como a cidade anda violenta. A manicure também atravessa a rua e faz coro.
Depois que Marianinha vai embora, o Chico me explica que ela é filha de um freguês que mora na rua e que, de vez em quando, pede à menina que venha ao bar comprar cigarros, refrigerante e coisa e tal, além de se reunir ele próprio com amigos para um chopinho aos sábados à tarde, depois da feira.
A calçada do bairro, vista de dentro da Adeguinha: integração com a vizinhança
Essa história real é um exemplo da importância do botequim — e de todo comércio de rua — para a saúde da rua e do bairro. Bairros que têm comércio de rua, que têm calçadas onde os moradores se esbarram e trocam idéias, e até mesmo diferenças e conflitos, são mais saudáveis, mais seguros e mais aconchegantes do que aqueles complexos moderninhos, amontoados de moradias apertadas, em bairros onde se necessita pegar o carro para comprar pão ou o jornal, onde as calçadas são mortas pela inexistência de comércio, movimento... vida.
Chico preparando uma de suas especialidades, feita só sob encomenda: a galinha cabidela
No entanto, a mídia vende a idéia da "modernidade", da "elegância", do "conforto", do "exclusivo" e o escambau para valorizar empreendimentos imobiliários de baixíssima qualidade e caríssimos, que vão, aos poucos matando a rua, transformando o bairro e a cidade. Outro dia fiquei chocado a ver que mais um prédio antigo, tradicional, de três andares, na esquina da Arnaldo Quintela com Assis Bueno, extamente onde o Bloco do Barbas se concentra no carnaval, virou poeira. Já estão escavando o lugar para erguer mais um espigão, com cinco andares de garagem e pilotis, afastando os novos moradores da rua. Na certa, quando estiver pronto o "palácio do futuro", os recém-chegados vão reclamar com a prefeitura o barulho do bloco e pedir um choque de ordem na velha vizinhança.
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10 comentários:
Que beleza, compadre! Em julho estarei de férias e certamente vou passar uns dias por aí. Quero conhecer o Chico Rufino, você me leva no buteco?
Já está marcado, mano véio. Podemos juntar a turma da Tijuca e combinar com o Chico uma galinha cabidela, que tal?
acho ótimo e quero ir também, conhecer o chico e o bruno, que tá prometido há anos!!! bjs
Por mim, tá marcado também! Quando estiver mais perto, combinamos melhor por telefone. Putabraço!
Então, fechou. Faremos uma "galinhada" memorável.
Paulo, confesso que fiquei tocado com esse texto seu, a narração de um fato tão pitoresco como o da menina Marianinha a partir do balcão de um bar. Não pelo fato em si, mas pela luz que você lançou sobre a importância do comércio de rua na vida de uma comunidade. Sou um entusiasta disso, tanto que sempre procurei viajar pras cidades que quis conhecer em dias da semana, justamente pra poder acompanhar a rotina das pessoas quando o comércio de rua está funcionando. Não dá pra conhecer de verdade o lugar e as pessoas que ali vivem se as portas das lojas e bares estão baixadas. Fico muito feliz de saber que tem mais gente com essa sensibilidade, e que foi e vai bem mais fundo que eu no assunto, como é o seu caso.
Boa praça esse Chico, heim?
Cada dia aprendo mais visitando esse blog.
Abração e obrigado.
Marcelo fico feliz que você pense assim. Uma vez fiz uma matéria no Globo falando sobre isso e a reação foi parecida. Muita gente escreveu para o jornal dizendo que percebia a importância da vida nas calçadas. Eu devo essa sensibilidade ao meu orientador na dissertação, o prof. Marco Antonio da Silva Mello, que escreveu, com outros pesquisadores, um livro sensacional chamado "Quando a rua vira casa", que traz essa discussão à luz da intervenção no bairro do Catumbi, no Rio. Infelizmente, está fora de catálogo. De qualquer modo, essas reflexões sobre a cidade (uns posts abaixo discuti o problema do barulho) me interessam muito e é bom saber que a você também. Abração.
Thiago, é verdade, o Chico é uma figura. Também gosto muito do seu blog. Abração.
Ah, não! Protesto! Essa galinhada tá fora de época e eu não vou poder participar. Assim não dá!
Venha! Venha!
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