sábado, 30 de maio de 2009

Reflexões sobre o bairro


Rua de Botafogo, na minha vizinhança. A última casa à direita deu lugar a um espigão há um ano e meio

Amigos, volta e meia discorro aqui no Pendura sobre a importância do comércio de rua. Insisto no papel integrador que essas casas comerciais — de botequins a salões de beleza, de açougues a jornaleiros, do aviário à casa de artigos de candomblé, do barbeiro da esquina ao secos & molhados do seu Antonio — desempenham em seus bairros, servido de ponto de encontro, de troca de informações, de sociabilidade e de socialização da vizinhança na cultura específica da rua, do bairro. É essa cultura que dá a cada bairro da cidade a sua singularidade e ao morador as chaves para ser e estar ali.

Os botecos inclusive têm ainda uma função de clube social, onde os vizinhos se encontram para jogar conversa fora e debater filosoficamente questões da maior importância, em contendas que só têm comparação no simpósio descrito por Platão, no seu banquete. Debates sobre o amor, a honra, o respeito, a política, o futebol, a mulher e por aí vai. Sempre calorosos, às vezes exaltados.

Para mim esse fenômeno urbano é tão óbvio, que me exaspera ver que as autoridades, encasteladas em seus distantes núcleos de poder, não se dão conta ou simplesmente não querem ver esse aspecto de extrema riqueza e importância para a vida social dos bairros. Executam seus planos de urbanização sem conversar com os moradores que serão afetados, partindo simplesmente de visões preconceituosas e estereotipadas, mas sobretudo autoritárias, normalmente a partir do ponto de vista de uma classe média assustada com a cidade, ponto de vista esse que ganha incrível ressonância na mídia.


O bloco do Barbas, que brinda os foliões encalorados com um banho de carro-pipa: um verdadeiro êxtase

A isso se soma uma indústria imobiliária feroz, que em seu afâ de vender o máximo possível de unidades residenciais (sim, porque não dá para chamar de apartamento ou casa os espaços que oferecem) inventam condomínios supostamente autosuficientes, que oferecem tudo: bar, piscina, sauna, videolocadora etc. e ajudam a esvaziar as calçadas da vizinhança onde se instalam. Os moradores desses lugares, igualmente convencidos de seu status de "modernos", evitam o comércio de rua, preferindo os shoppings, os hipermercados, os centro comerciais. A Barra da Tijuca é um exemplo dessa lógica e é, por isso, que em boa extensão do bairro não se vê viv'alma nas calçadas. É talvez o único bairro do Rio que exige que seus moradores possuam carro.

Como já disse aqui, vivo num pedaço de Botafogo que muito se assemelha aos melhores bairros da subúrbio carioca. Com suas casas, sobrados e prédios de, no máximo, três ou quatro andares, essa área é cercada do mais vasto e variado comércio de rua. De bicicletário a reparador de fogões, das velhas padarias a chaveiro. Ali estão velhos ofícios, como sapateiro, alfaite, jornaleiro, apontador de jogo do bicho, mecânicos etc. À tarde, os cachorros das casas latem e a criançada grita, correndo atrás de bola, andando de bicicleta ou soltando pipa na praça. A velha guarda fica nos botequins, observando a rua. São os olhos informais da rua, observando as gerações crescerem, o movimento diário da vida no bairro. Foi por isso que o Chico, da Adega da Velha, percebeu logo que havia algo estranho e anormal na conversa de Marianinha com o estranho, como relatei aqui, alguns posts abaixo.


O Belmiro, boteco de esquina de Botafogo

Sucede, que a vida na cidade é incontrolável e todas esses elementos — o tradicional e o novo — estão em contante confronto e mutação. Em algumas áreas da cidade eles se impõem de forma tão acachapante, que a região muda completamente, num processo de gentrificação, ou aburguesamento, como aconteceu com o Leblon nos anos 60, que, de bairro classe média baixa, se tornou uma das referências da elite carioca. Ou, para trazer a coisa mais para perto, como parece estar acontecendo com Santa Teresa hoje em dia.

O jovem de classe média fica inebriado com o aspecto bucólico e proletário do bairro e se muda para lá. Sua convivência ali, no entanto, não é de fácil assimilação, pois ele é visto como alguém de fora. No entanto, ele vai convencendo outros de seu grupo social a se mudaram para lá e acaba formando uma comunidade dentro da comunidade. Aí começa uma demanda por serviços e produtos que antes não existia, determinado shampoo para a namorada, tipo de comida mais macrobiótica etc. Daqui a pouco, surge um restaurante de comida natural e uma botique de produtos para a pele. Aí um incorporador imobiliário vê a chance de subir um espigão voltado para o perfil desse novo consumidor e coisa e tal. Aos poucos o bairro bucólico e proletário vira um arremedo do que era. e, quando se vê, a morfologia social do bairro mudou para sempre.


A rua Arnaldo Quintela, vista da minha janela

As gerações vão se sucedendo e novos valores vão surgindo. As coisas mudam inevitavelvemente. Mas também é concreta a resistência a essas transformações que ocorre aqui e ali. De minha parte, eu, que desisti de ter carro desde quando tive idade para tê-lo, prefiro uma calçada cheia de gente e movimentada, onde possa caminhar, do que um lugar vazio, espremido entre condomínios estratosféricos e autopistas de grande velocidade.

4 comentários:

Unknown disse...

O inimigo do comércio de bairro aqui em Londres são os grandes supermercados (principalmente TESCO). Quem mais sofre é a população mais pobres que não tem carro par air até estes grande complexos. Eu felizmente moro num bairro (Finsbury Park) que tem um comércio local bastante vivo. Sobre a importância dos botequims parafraseio as palavras do Dr Samuel Johnson: Nada criado pelo homen produz tanta felicidade como um bom botequim.

Anônimo disse...

Disse tudo! Absolutamente tudo, Paulão. Triste constatação, mas o Rio também está se apaulistando. Neste sentido, por óbvio. Putabraço!

Camaleoa disse...

Quando estive aí foi essa sensação que tive. Puxa vida, falavam tão mal do Rio de Janeiro, mas o que eu vi foi isso. Uma cidade grande com jeito de cidade pequena, a cara particular de cada bairro, o som do silêncio (isso é uma das coisas mais lindas que eu tenho redescoberto), o som tranquilo dos automóveis e os edifícios com algum controle, ainda com uma boa vista do horizonte e um bom espaço entre eles.
Aqui passo os dias ouvindo vários caminhões de cimento subindo a rua porque estão levantando mais dois megas edifícios (desses "modernos") na minha rua, durmo ouvindo bandas ensaiarem num estúdio sem acústica apropriada e sem falar na sujeira. Até isso, achei o Rio mais limpo do que São Paulo.
Você não escreveu sobre as diferenças entre as cidades, mas como o Bruno disse que o Rio tá se apaulistando, resolvi dar meu pitaco.
Acho as diferenças ótimas, mas tanto o governo quanto a sociedade não sabem cuidar do lugar onde moram, muito menos reconhecer ou retribuir tudo de bom que cada lugar te proporciona.
E chega que já escrevi muito.
Um beijo.

ipaco disse...

Orlando, essa sua descrição do mercadinho do bairro acendeu em mim uma vontade de conhecer Finsbury Park (tem parque mesmo ou é só no nome?). Quem sabe ano que vem. Uma das coisas que lembro de Paris eram as feiras, que tirando o idioma, eram muito parecidas com as nossas feiras cariocas. A barganha, a barraca do peixe, das flores, das frutas... Me senti em casa. Grande abraço.

Bruno, eu não sei qual o modelo de cidade que os gestores municipais têm na cabeça. O subprefeito da zona sul da atual prefeitura carioca é um cara novo, com mentalidade de condomínio, autosuficiente que vê essa descrição que fiz, a vida na calçada, como sinônimo de bagunça e balbúrdia. E ataca, proíbe, dá choque de ordem... e o tipo de ordenamento que eles têm na cabeça não é o da vida nas ruas. Em Botafogo, toda semana tem um prédio novo subindo e o perfil do bairro vai mesmo se apaulistando. Infelizmente. Abração, mano véio.

Cris, hoje, por exemplo, é domingo e, enquanto escrevo essas palavras, ouço a rua. Alguns cachorros latindo, aviões que passam para o Santos Dumont de vez em quando, um burburinho no Sabor da Morena, um dos botecos de esquina. Tem o trânsito, mas hoje bem leve que acaba abafado pela gritaria da molecada que bate uma bola na pracinha e o dia está lindo, ensolarado, mas sem calor excessivo. Beijo.