domingo, 3 de março de 2013

Chico, Vinícius e as mulheres


Sei que é uma estratégia velha e batida, muito usada no Brasil, desde antes de Gregório de Mattos. Mas essa tática de atacar certas figuras ou certos valores tem limite. Um limite que deve ser a própria insignificância do agressor. Responder a esse tipo de crítica é cair na armadilha, mas às vezes a coisa merece nem que seja uma reflexão. Já acompanhei boas polêmicas, envolvendo figuras divergentes, mas com graus de inteligência, cultura e raciocínio elevadíssimos, o que tornava o debate, por mais agressivo que fosse, como uma espécie de embate platônico. José Guilherme Merquior e Carlos Henrique Escobar, por exemplo. Isso sem falar em grandes nomes da rabugice nacional, como Paulo Francis, ou mais ainda, o genial Nelson Rodrigues, e suas frases imortais. Glauber Rocha e o próprio Caetano Veloso, para citar nomes inquestionáveis quanto as suas genialidades.

Quando penso na constelação de nomes citados acima, alguns mais à direita outros nem tanto, sinto um certo alívio em perceber que, nestes tempos de pulverização de valores, até essa estratégia anda abalada pela contemporaneidade. Quem são os grandes polemistas de hoje em dia? Uns tucanos contratados pela Veja? Assisti outro dia ao Manhattan Connection, um programa baba-ovo e subserviente à fantasia de prosperidade nova-iorquina, que interrompe e inverte a originalidade de latino-americanos talentosos que, desde os anos 1960, foram à Grande Maçã com projetos de revolucionar o Império. Figuras como Helio Oiticica, o próprio Glauber, Ruben Gerchman, o argentino Gato Barbieri e músicos brasileiros como Naná Vasconcelos, Claudio Roditi, Dom Salvador, Dom Um Romão e, com licença da puxada de brasa, meu pai, Gaudencio Thiago de Mello, entre outros. Mas enfim, o programa mostrava os comentaristas de sempre e, entre eles, um energúmeno chamado Diogo Mainardi, um desqualificado que fazia insinuações de que Chico Buarque não sabe escrever, não é um poeta e sei lá mais o quê.

Era mais uma vez, nitidamente, a velha estratégia: bate-se no ícone, na referência, para chamar a atenção sobre si. Mas, quando se volta para o idiota, o que se vê? Idiotice, é claro. E, infelizmente, cada vez mais esse conservadorismo com sotaque paulistano vai ocupando a mídia atual. A mesma elite de Alto Pinheiros e do Alto Leblon, com sua ojeriza a tudo que cheire a popular. Cada vez mais um discurso conservador, retrógado e elitista vai se disseminando por progamas, como uma série de idiotices femininas, para a "mulher moderna", como Saia Justa e outros tantos lixos, como se o telespectador fosse um mentecapto. Nos painéis do Globonews Painel raramente são convidados especialistas de várias correntes, sejam elas políticas, acadêmicas ou ideológicas. Outro dia, para discutir demarcação de terra indígena, William Waack convidou advogado, empresário, políticos, menos índio e antropólogo. Que liberdade de expressão é essa? Nas discussões sobre ciência política e geopolítica, estão sempre os mesmos embaixadores do Itamaraty, todos da época de Fernando Henrique Cardoso... enfiando a porrada, daquele jeito educado, no Amorim e no Patriota. Enfim, os exemplos abundam.


E tudo isso faz parte do momento. A mídia no Brasil tem uma posição ideológica nítida e utiliza seus canais para expressá-la. Democracia é assim, dizem. Então, vamos em frente. Mas, daí, o energúmeno do Manhattan Connection desancar o Chico para aparecer é um pouco demais.

De qualquer modo, a resposta veio no GNT, num documentário, que eu ainda não tinha visto, sobre o Chico e sua relação com as mulheres. Ele desmentiu o mito que se disseminou por aí, de que ele entendia a alma feminina como ninguém, pois só assim seria capaz de escrever as letras do ponto de vista feminino tão intimamente bem. Segundo o Chico o que o fez escrever tão bem sobre a mulher, e sobretudo, a partir do olhar feminino, foi seu desejo pela mulher. Sua curiosidade por um universo que, no fim das contas, ele não entende nada. E, é verdade, as razões femininas são tão misteriosas que nos aturde.

Nosso clube masculino é todo lógico. As regras são claras e as competências e disputas bem demarcadas. Nossa sensibilidade passa por outros  canais. Mas a atração pela mulher nos obriga a um jogo de alteridade que abre nossa percepção e sensibilidade num outro nível. E é isso que permitiu ao Chico escrever sobre a alma feminina com tanta propriedade, pelo menos para certa geração de mulheres. Talvez, algumas letras hoje não façam mais sentido. Mas a estrutura cognitiva que subjaz a isso certamente continua lá.

Tenho duas amigas que amam o Vinícius de Moraes. Uma desconhece as histórias do Vinícius mulherengo, a outra me emprestou um livrinho do Affonso Romano de Sant'Anna, chamado Tempo de delicadeza. Nele, Sant'Anna tem uma pequena crônica chamada Confraria dos machos, que é sensacional e explica muita coisa. Ele narra, e muito bem, a história de uma paixonite de Vinícius, já com 60 e tantos, por uma jovem de 17 anos. Uma paixão recíproca que acaba com os dois fugindo para Roma, com ajuda dos amigos de Vinicius, inclusive o Chico. Daí a ideia de confraria. Esse bando de meninos quarentões, sessentões, brincando de paixão. Uma coisa bem masculina e dionisíaca. Todos do clube, uns sátiros apaixonados por curvas e ancas femininas. Para perscrutar tão bem a alma feminina, como Chico e Vinicius fazem, só mesmo com tanto estranhamento.

2 comentários:

Juliana disse...

Vi ontem também, mas pela enésima vez (tenho todos os DVDs), o documentário do Chico. Na minha monografia de graduação, inclusive falando de desejo, abro com a citação da Camille Claudel "há sempre algo de ausente que me atormenta", que abre também o documentário.
Entrei na Estudantina com à flor da pele, Milton e Chico cantando.
Mas é claro que o Diogo Mainardi é que é bom. Energúmeno, certamente.

ipaco disse...

Muito bom o documentário. O Chico é uma figura. Assim como o Vinicius. Já o mentecapto faz lá o papel dele. Penda que deem tanto espaço a esse idiota.

bjs