quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A vida como ela é


Você chega; me levanto, cortês e ansioso. O panamá na mão. Um abraço trêmulo e nos sentamos. Você diz: "Que calor!"; peço uma cerveja. Os olhos se cruzam, envergonhados, meio sem jeito. Trocamos frases cotidianas. De chegada. Assuntos alheios, mundanos. Mas os olhos dizem mais. Perscrutam minuciosamente. Sem deixar escapar nada. Mas são as palavras que vão abrindo as portas, criando trilhas; e somos eloquentes. A cada frase, a conversa adensa e nos aproximamos mais. Apesar da configuração difícil, quase impossibilidade, por outros laços em que nos atamos. Mas também descartamos a indiferença. E somos honestos em reconhecer, sem dizer, o desejo. A cerveja chega. Você diz ao garçom: "Obrigada!" Nos soltamos mais, aliviados pela situação cada vez mais definida em suas imprecisões. Há um campo de possibilidades, vasto, apesar dos laços alheios. "Vou ao banheiro", você diz, após o enésimo copo. Espero sua volta, como o tigre espreita a gazela na floresta. Quando chega, gesto felino, pego-a pela mão com firmeza; você para. Me levanto, ansioso. Pouco cortês, mas incisivo, ignoro as etiquetas, inclino para o beijo, enquanto puxo seu rosto. Vejo um pânico fugidio em seus olhos, mas, por fim, você aceita a investida e se entrega. O tempo para, enquanto sinto esse primeiro ato de amor, apesar da culpa. A obscenidade está fora de nós; não no beijo. "Sou puta?", você sussurra constrangida. Aperto seu corpo contra mim, como quem diz que não. "Te amo!", digo, como se isso fosse suficiente. Não é. Nos sentamos novamente e brindamos a vida como ela é.  Me levanto e digo: "Minha vez!" E parto para o banheiro, exíguo, infecto, onde entro pisando em nuvens.

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