quarta-feira, 26 de março de 2014

Erickson Luna

Há coisa de uns cinco ou seis anos, estava em casa de bobeira, quando o telefone tocou. No outro lado da linha, o poeta Erickson Luna. Por sugestão de Soraya Simões, ele me ligava de um hospital do Recife, onde se recuperava de uma fratura. Estava sóbrio e falamos por uns cinco minutos, nesta que seria a nossa última conversa. Luna morreria alguns meses depois. Ele foi um poeta tão genial como radical. Desses artistas, como Manduka, que se entregam de corpo e alma à sua arte, sem concessões de qualquer espécie e que acabam morrendo abandonados, indigentes. Estar perto dessas pessoas é viver uma intensidade tal, que o cotidiano depois nos parece vazio de sentido. É uma experiência transcendental. E pessoas assim, me parece, hoje já não cabem no mundo compartimentado e digital que vivemos.

A primeira vez que vi Luna foi um susto. Estava com poetas, jornalistas e antropólogos, numa mesa misturados, num mercadinho no Centro velho de Recife. Braulio Brilhante, Chico Espinhara, Soraya, entre outros, pessoas que fazem a prosa voar, a conversa espiralar. Braulio e Espinhara tocando um movimento de poesia marginal da maior qualidade em Recife. Marginal no sentido da marginalidade mesmo, com todo o respeito ao CEP 20 mil (Espinhara morreu meses depois de Luna, consumido por versos e álcool). Naquele dia, esperávamos a chegada desse poeta genial, que queriam me apresentar. Era o bêbado que eu vira adormecido no chão, próximo à entrada do banheiro infecto do mercadinho.

De repente, como surgido da poeira, como uma entidade das ruas, aparece o mendigo-poeta. Era Luna, figura esquálida, com cavanhaque e cabelos desgrenhados. Uma fúria nos olhos, que ganhava vida em momentos de indignação. Muito parecido com Manduka nesse sentido. Luna sorriu para a mesa, mirou os olhos arrebatados de Soraya e recitou uns versos para ela, enquanto ouvíamos em silêncio. É difícil narrar isso sem soar piegas, mas, na intensidade do momento, foi uma chegada. Uma alma que faz falta ao mundo de hoje e que merece ser lembrada sempre

Deixo uns versos de seu último livro, Do moço e do bêbado:

Pra eu poder
e só
andar nas ruas
fez-se em volta uma cidade

Para se dar
mais colorido à noite
pôs-se acima um luminoso

E pra que eu
me sinta bem enfim
nesta cidade
há-se em mim um cidadão

Portanto livre
como o que é em noite
e que enche as ruas
perseguindo luzes
acordado
ainda que em sonhos
íntegro
ainda que meio-homem
plenamente meio
mariposa


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