domingo, 21 de outubro de 2012

Adeus à Soneca

Soneca não era muito afeita a posar para fotografia. Buscando em meus arquivos vi que, em tantos anos de convivência tinha pouquíssimas fotos dela. Mas achei esta, mal feita por mim, mas que é tão a cara dela, acomodada confortavelmente no sofá, intensa, linda.


Ontem, foi um sábado de intensidades. Depois de 12 dias direto de trabalho sem folga, estava programado para falar sobre botequim no FIM (Fim de Semana do Livro no Porto), numa mesa com meu querido Edu Goldenberg e Carlos Lessa. O encontro tinha sua importância pessoal, pois seria a primeira vez em que eu e Edu conversaríamos pessoalmente, e logo numa espécie de mesa diante de uma plateia, sobre esse tema que nos é muito caro. Edu é um defensor dos botequins, muito mais radical do que eu, que me limito a analisar os fenômenos que consigo perceber. Ele não. Ele faz de seu blog (Buteco do Edu) uma trincheira em defesa de uma boemia e uma identidade carioca que se vê ameaçada por mudanças, esquecimentos, desrespeitos e que tais.


Ocorre que, ao levantar, fui pego pela notícia triste da morte de uma amiga querida. Mais uma vítima do câncer (é impressionante a quantidade de pessoas com câncer e mais ainda a quantidade de pessoas que estão morrendo da doença, é uma verdadeira epidemia). Sonia Prestes, minha amada Soneca, de quem andava afastado nos últimos anos e, por isso, sequer soube que ela estava doente. Foi um susto triste, um sopro de melancolia a notícia. Ela foi cremada ontem, mais ou menos na hora em que eu estava falando no Morro da Conceição.

Conheci a Soneca quando tinha uns 8 ou 9 anos. Mãe de um colega de turma, o Beto Ninô, na escola pública Manoel Cícero, ali, uma daquelas construções gêmeas (a outra escola, se não me engano, é a Julio de Castilho), em frente à Praça Santos Dumont. Depois a vida seguiu, morei no exterior, voltei, e o Beto se casou com uma prima minha, o que acabou me reaproximando de Soneca. Ela fizera uma revolução em sua vida, tornando-se uma psicanalista de percepção arguta e sensível, principalmente nas relações entre pais e crianças. Ela era acima de tudo uma entusiasmada defensora do poder da análise na transformação da vida das pessoas para melhor, no sentido de deixar desabrochar potencialidades e disponibilidades para a vida.

Me lembro que eu devia ter uns 20 e poucos anos, nós costumávamos andar pelo calçadão da praia, quilômetros e quilômetros de conversas estratosféricas. Um dia perguntei sobre a importância da análise em sua vida e ela me disse que seu único arrependimento era ter começado muito tarde, pois ela queria ter podido sentir mais cedo a libertação que sentia naquele momento da vida dela (ela se aproximava dos 50 anos). Impressionado com suas palavras, eu logo tratei de fazer análise. E. de fato, fiz algumas revoluções internas que hoje me permitem ser quem eu sou. Soneca, generosamente, me deu isso de presente.

Apaixonada por dança de salão, Soneca era amiga de todos os bambas, como Carlinhos de Jesus, Jaiminho e outros. Bem antes disso se tornar moda. Frequentava os salões e gafieiras e fazia, às vezes, suas próprias festas no velho apartamento de Ipanema. Aparentada ao velho Prestes, tinha uma mente de esquerda, mas muito avançada para a pequenez das picuinhas partidárias e de diretórios. Ela era sobretudo uma libertária. Denunciava na hora as velhas tentativas de domínio e manipulação que certas personalidades apresentam. Foi de uma dissidência de um grupo de psicanalistas e depois seguiu um caminho próprio na terapia, incorporando à coisa freudiana elementos que seus pacientes traziam.

Sua atenção principal eram as crianças, pelo que me lembro. A forma como se criam os pequenos, com o dia a dia se sobrepondo a certas violências silenciosas, maus tratos imperceptíveis a olhos comuns, que depois se desenvolvem em carências, neuroses e tais.

Bem, não sou psicanalista para fazer uma avaliação séria, mas o que vejo na Soneca que me parecia raro era a atenção e a torcida que ela tinha não só por seus clientes e amigos, mas por qualquer pessoa que cruzasse com ela. Ela realmente torcia pelas pessoas. Quando ela percebia algo que a animava em relação a alguém, falava disso com entusiasmo contagiante. E raro. Só fui ver um entusiasmo igual na Flavinha Bali, que fala das pessoas próximas, pacientes ou não, com emoção genuína, igualmente contagiante.

Era impressionante, às vezes bastava uma conversa casual, à praia, à rua. E ela vinha cheia de alegria por aquela pessoa, dizendo algo como: “que caráter admirável”.  Soneca era assim: entusiasmada com o ser humano e sua capacidade infinita de superar traumas, se desvencilhar de amarras emocionais, de se reinventar, desde que estimuladas pela coisa certa, no momento certo. Podia ser a análise, a religião, um cachorro de estimação. Tudo para Soneca tinha o poder de ser terapêutico. Talvez seja por isso que, mesmo distante dela nesses últimos anos, eu sentisse sua presença pairando sobre mim, e, ontem, ao saber de sua morte, não tenha conseguido reprimir uma sensação de desamparo.

2 comentários:

ANNA disse...

Que lindo texto, sincero e delicado como os encontros da vida, que por mais que durem,quando valem a pena,são sempre breves.
Bjs,
Anna Kaum.

ipaco disse...

Obrigado, Anna! Bjs