A janela embaçada pela diferença de temperatura. Na rua, um gelo, em casa, calor
Nova York é um lugar esquisito na minha vida. Depois de
morar lá nos anos 1970, no fim da adolescência, percebo que construí uma
intimidade e uma história em meio àquelas ruas e avenidas numeradas, que fazem
da cidade muito mais do que um ponto turístico ou mesmo um lugar de visita. Sempre
vivi a cidade, seu dia a dia, mesmo quando não mais morava lá e estava apenas
de passagem.
Aliás, me dou conta de que sempre viajei assim. Nunca fiz,
por exemplo, esses roteiros europeus, tipo: três dias numa capital, dois em
outra e, ao fim de 15 dias, visitou-se três, quatro cidades sem conhecer nenhuma. Não consigo sentir o lugar
em tão pouco tempo. Preciso entrar no cotidiano local e isso demanda um tempo mínimo
de entrega, de abertura à realidade que se descortina e também requer boa dose
de esquecimento da realidade de onde se vem. É um processo denso, que exige do
viajante saber o seu lugar no mundo, seja este o destino ou a origem, os
dois ou nenhum. Quando essas coisas não estão claras, o viajante vive no limbo, numa espécie de não-lugar. Está sempre de passagem, incapaz de fincar
raízes.
Tinha 17 anos quando me mudei, mala, cuia e greencard à mão,
para Nova York. A cidade vivia o frenesi do Saturday Night Fever, o verão do
filho de Sam, a chegada do humor britânico do Monty Python, o jazz leve de gente
como Grove Washington Jr, ou pesado, como o de Dexter Gordon, e o funk jazzístico dos Crusaders. Havia índices
cariocas de violência urbana e o meu cotidiano consistia estudar inglês na
Columbia University (tive a sorte ganhar uma bolsa integral) e conhecer a
cidade.
O Brasil que ficara para trás estava no auge da repressão
política, na transição do Médici para o Geisel. Na Maçã, aderi como
simpatizante à militância política, participando de um grupo de defesa de
prisioneiros políticos da América Latina, chamado Usla, ligado ao partido
trotkista. Organizávamos protestos em frente aos consulados das ditaduras
latino-americanas, como o Brasil e o Chile, cobrando a divulgação do paradeiro
de presos políticos desaparecidos. Também estudava música, influenciado por meu
pai, Gaudencio Thiago de Mello, compositor e multi-instrumentista, o que me permitiu conviver com músicos
incríveis e aprender com eles. Depois vi que meu negócio era escrever.
Cada vez que voltei a Nova York desde então, de certo modo
recuperei um pouco dessa vivência interrompida por minha volta prematura ao
Brasil, em 1979, e pude reviver a experiência da cidade. Na última vez que
estile lá, em setembro de 2002, vi as cicatrizes do 11 de Setembro, visitei endereços
onde morei nos anos 1970 e vi que, por exemplo, o prédio onde vivi na rua 22,
havia sido destruído por um incêndio. E, mesmo diante daquela ausência, onde
uma outra construção foi erguida, me lembrei da velha morada.
E, agora, preparo as malas para chegar à cidade devastada
pelo furacão Sandy, para me despedir do meu pai que está bem doente. Essa sim
parece ser mais que uma viagem dentro de uma viagem, uma jornada, cujos
sentidos e consequências só serão apreendidos em algum momento no depois. No
agora, é fazer as malas e encarar os percalços do vendaval.
7 comentários:
Não da pra saber o que está passando por sua cabeça neste momento, mas imagino que envolva um considerável turbilhão de emoções. Vá com Deus, viva o que tiver que ser vivido da melhor maneira possível e conte com o eterno apoio moral de todos nós que gostamos muito de você.
Estava entediada e resolvi passear por suas crônicas intimas, de Nova York à pentelhos, uma delicia... e ainda relembrando o saudoso Penafiel, que nunca entendi porque fechou!
beijos e boa viagem!
Andrea
e melhoras.
Xandó, mano véio. Obrigado pela força. Nos vemos na volta!
Andrea, que bom que você passeou por aqui! Beijo e obrigado pela força!
PT, você deve saber como é bom passear por sua história estando você (nesse post) à beira de um reencontro com uma parte de ti, teu pai, uma de tuas cidades. love u, my cher friend! mama gonna take my kodachrome away!
Maravilha, minha Ips! Você sabe como ninguém o que é essa viagem. Beijo.
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