Aos 79 anos, consumido por um câncer raro e sem tratamento, meu pai vai levando a vida como é possível. Ele vive em Nova Jersey, nos EUA, e fui visitá-lo em novembro. Foi dureza entrar em sua rotina, cheia de prescrições e limites. E mais duro ainda vê-lo abatido, tão distinto do que fora sempre em sua vida. Seu dia a dia é bastante restrito. Boa parte do tempo se esvai em frente à televisão. Notícias e futebol, basicamente. Ou então ouvindo música, passando de um CD a outro, variando enormemente os estilos. Ele nunca foi muito de ler ou escrever, sua existência se dá pela sonoridade; é a música que faz sentido em sua mente.
No sofá da sala, há um canto onde
ele prefere sentar, próximo a uma mesinha com abajur e a base do telefone sem
fio. Defronte ao sofá, há uma mesa de chão, que eu e minha irmã, num humor muito
peculiar, mexendo com ele, chamamos de “the situation table”, numa referência
mordaz à expressão “the situation room”, à qual os jornalistas da CNN recorrem
em grandes coberturas jornalísticas, como eleições, e que, no meu tempo, se
chamava algo como quartel general ou simplesmente, centro de operações. Nessa
área, supostamente, estão todos os elementos que chegam pelos repórteres e
outras fontes para serem transformados em informação e notícia.
A gozação tem a ver com a
quantidade de badulaques e inutilidades que ele coloca ali, “caso precise”. Num
inventário rápido, feito de memória, citaria: tesoura; tipos diferentes de
fitas durex ou tape; óculos de leitura; alguns CDs de sua autoria; variadas
edições de palavras cruzadas em português e inglês; remédios de toda sorte;
copo com água misturada com tônica; copo com suco de laranja misturado com
manga; fotografias de família; cartas e contas; calculadora, clips; cotonetes;
luvas; carteira de dinheiro; óleo para massagear as pernas; vitaminas; etc. Em
tiras de fita tape, coladas nos cantos da mesa, estão anotados os números de
telefone considerados urgentes, e ele ainda é capaz de escrever no vidro de vitamina
C, em letras caprichadas: “old”, para diferenciar a embalagem que está sendo
usada da nova.
Cada um desses itens responde a
um temor específico e funciona não apenas para que ele não precise se levantar
o tempo todo para pegar as coisas que acha que precisará, mas como um
inventário, que o permite perceber a escassez de determinado item e
providenciar sua compra, como se sua existência dependesse disso. A mesa é um
espelho da mente diante da ideia de morte iminente, em que nada mais importa,
mas todos os detalhes são essenciais. Detalhes que geram uma sensação de
conforto, muito mais imaginada do que real. Por isso, há uma séria crise quando
um dos itens, que se somam as centenas, falta. Se algum elemento acaba ou
desaparece, imediatamente toca um alarme mental e ele prepara a lista de
compras. Quando estive lá, por exemplo, ele comprou quatro lanternas, para
garantir que, no próximo furacão, quando faltar luz, ele não fique às escuras.
Às vezes, por necessidade própria
de sanidade, eu chamava sua atenção para a inutilidade da maioria dos elementos
sobre a mesa. Tentava desconstruir sua ordem, só para mostrar que novas ordens
eram possíveis, e que a vida não precisa ir se amarrando tanto. Acho que fazia
isso para buscar o velho pai, outrora tão autônomo, que se empedrara nessa
personagem debilitada. Mas, diante de uma sentença tão terrível, faz sentido
que ele busque, como um dom Quixote, um mundo onde tudo está no seu devido
lugar, mesmo que intimamente, bem lá no fundo, ele saiba que tal mundo inexiste.
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