Fui ontem à exposição/instalação Concerto de pálpebras que Enrica Bernardelli está fazendo na Fundação Eva Klabin e ainda estou impactado. Conheço Enrica desde suas experimentações com cinema, no fim dos anos 70, e venho desde então acompanhando sua trajetória, feliz e às vezes perturbado por conviver com sua inteligência e sensibilidade. Enrica é uma artista de uma estirpe nobre, que não se vê com facilidade por aí, nesses tempos de total diluição de tudo e uma certa padronização tangida pela mídia, que, de um modo geral, vem cada vez mais transformando arte em entretenimento. Em compensação, as exceções acabam tendo um impacto furioso.
Concerto de pálpebras teve esse efeito em mim, ontem,
circulando em torno dos dois ambientes criados por Enrica, com suas estátuas
vivas, imóveis e imobilizadas em redomas de filó, cegas por máscaras sem olhos.
Enrica disse: “É como uma cena congelada de um filme”. Os dois ambientes são
distintos e se complementam. Para mim, que sou excessivamente simplista e
reducionista, é como se fossem metáforas do racional e concreto em oposição ao
emocional e onírico. O primeiro é como uma sala, com sua neutralidade formal, e
o segundo, um quarto, refúgio de intimidade. O primeiro é o palco, o segundo os
bastidores. Há uma sensualidade simultaneamente sutil e impactante. E essa
energia sensual circula pelos dois ambientes.
Na primeira sala, uma jovem, com flores nos olhos, senta-se
sozinha num grande sofá, enquanto dois homens adultos, com máscaras que parecem
lobos gigantes (a filhinha de meu primo viu uns ratos enormes e se recusou a
entrar) estão à mesa. Um deles lê o jornal. Aquela jovem ali, na solidão do
grande sofá, me fez pensar na concretude da vida. Nas notícias de jornal, cujos
enredos reiteram mitos e fábulas cheias de exemplos morais para o nosso dia a
dia, e que um dos homens, sem olhos, lê. Vi naquele ambiente os faits divers, a
realidade moldada para caber nas manchetes. Mas, ao mesmo tempo, é um mundo
incontornável, inescapável, que atravessa o nosso caminho, e nos obriga a pôr
os pés no chão. E é preciso vivê-lo, do contrário ficaremos tão imóveis e cegos
como aquelas estátuas de carne e osso, presos na morbidez do instante congelado.
O segundo ambiente é a alcova. São duas jovens e um homem.
Este, que também usa a máscara do animal feroz, me parece um personagem libertino,
vestido de robe e calçando pantufas. Está em pé, altivo, mestre do quarto. Ao
seu lado, uma das jovens está sentada numa poltrona, mas ao contrário da menina
do primeiro ambiente, essa está languidamente largada, os joelhos quase se
tocando, mas os pés separados, num gesto que me parece de entrega e prostração. Ela
veste um vestido de papel amassado e tem o rosto insinuado sob um véu negro que
cai de uma armação triangular. Seus braços se estendem ao longo dos braços da
poltrona, numa espécie de simbiose entre o móvel e a menina, para terminar com a
mão esquerda com a palma virada para cima e a direita, para baixo. Uma coisa
meio oriental, como se fosse um canal de energia vital. Em frente a esses dois,
está a terceira menina, deitada num sofá pequeno, o vestido amarrotado. Ela
dorme em posição fetal e seu braço pende do sofá, e de sua mão se estende uma
serpentina, que se espalha pelo chão do quarto, em direção ao centro. Me
pareceu muito simétrico essa mão estendida em direção às mãos da outra
personagem. As duas meninas não usam máscaras cegas, mas permanecem com os
olhos fechados todo o tempo.
Para mim, esse é o lado onírico, fantasioso. Ali
tudo é possível. Não se trata do prazer, que a menina do primeiro ambiente
insinua, mas do êxtase, que, no fim, é inalcançável. Um mundo de compulsões e a
fantasia de completude. A instalação tem um som de pássaros que reforçam essa idéia de
sonho. E o fato de estar num dos salões da casa de Eva Klabin, em meio aos
móveis, cristaleiras e cômodas de madeira escura, reforça o impacto da obra de
Enrica, como se essa cena de cinema congelada pudesse ocorrer em qualquer lugar
a qualquer hora e não necessariamente num museu ou salão neutro para exposição de
arte.
No segundo andar da casa, num dos quartos, há a segunda
instalação, Três quartos de memória, do artista português Daniel Blaufuks. Uma viagem tranqüila por
imagens antigas, ao som do mar e ondas, roncos e suspiros, entre outros sons.
Há mesmo uma completude entre essa instalação e a de Enrica. A de Daniel é
marcadamente sobre o tempo e a memória. Ela tem um ritmo calmo, ao passo que
Enrica é um mar revolto. As duas instalações estão dentro do Projeto Respiração.
Enfim, essa é a viagem que fiz. Não conversei com Enrica sobre isso e nem li o texto que o
curador, Marcio Dosctors, escreveu. Seja como for, minha sugestão é que todos
façam o seu mergulho nessas duas instalações e viajem também.
2 comentários:
Muito legal, deu mais vontade ainda de ver, obrigada!!!
Beijos!
É uma viagem... Bjs.
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