sábado, 19 de julho de 2014

Análise


O Fernando Pessoa, na figura de si mesmo, tem um poema que sempre foi o meu preferido. Chama-se Análise e foi escrito em 1911. Ei-lo:

"Tão abstrata é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E, assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo"

O jogo de identidade e alteridade que o poeta estabelece entre esse "eu" e o "outro" no poema tem sobre mim um poder de encantamento. Essa curiosidade em relação ao humano que se faz na diferença, na diversidade de representar e viver o mundo, foi o que me levou para o jornalismo e, depois, para a antropologia. O outro de Pessoa se confunde com ele próprio a ponto dele ignorar-se a si mesmo neste emaranhar-se com o outro. Aqui, evidentemente, cabe a paixão. Essa energia poderosa que nos faz cair, como dizem os franceses, amorosos por alguém. Alguém de quem, às vezes, não sabemos nada. Essa coisa que nos faz sentir como se sonhássemos o que somos de fato.

Não entendo nada de psicologia, mas creio que a matriz desse sortilégio está nas relações primordiais e básicas que estabelecemos, ainda bebês, com nossos pais ou seja lá quem esteja ali, naquele momento crucial. Sempre li sobre complexo de Édipo, a luta do menino com o pai como um processo de transcendência para a vida adulta. As simbioses com a mãe e o pai e essa confusão toda. Depois, na minha formação como antropólogo, estudei os ritos de passagens, as diferentes culturas e as formas como o mundo é construído internamente na percepção. E como essa é infinita em suas possibilidades humanas.

Não importa qual seja a sociedade ou a cultura — ianomami, pigmeu ou o executivo de Wall Street —, em todas elas existem ritos para lidar com o nascimento, a morte e o casamento. E eu pude descobrir isso além da teoria, visceralmente, no lançamento das cinzas do meu pai no encontro das águas do Solimões com o Negro, onde nasce o Rio Amazonas, seguindo instruções dele. Foi, de fato, um evento, uma espécie de gurufim amazônico, com cantos, música, choro, poemas... dando formas diversas à saudade. Resignação ao vazio. Foi também um momento de reencontro com a Floresta, com amigos, e, sobretudo, de um renascimento.

Mas o efeito, em mim, lá na profundeza da alma, desse rito de passagem foi de transcender essa morte, deglutir a vida, incorporando em mim as coisas dele, mas, mais ainda, descobrindo em mim as minhas próprias coisas que estavam ali submersas na alma. Não fui mais o mesmo depois desse ritual. E se fica o vazio e a saudade, também nasceu um outro ser, engordado do outro, e também de si. Não li o poema acima na cerimônia de adeus, mas bem poderia tê-lo feito.

Quanto à máscara acima, ela é o objeto que simboliza um momento nosso juntos, no meio da revolução sandinista, em 1988. Pai e filho no mais próximo que conseguimos chegar.