sábado, 29 de dezembro de 2012

The situation table


Aos 79 anos, consumido por um câncer raro e sem tratamento, meu pai vai levando a vida como é possível. Ele vive em Nova Jersey, nos EUA, e fui visitá-lo em novembro. Foi dureza entrar em sua rotina, cheia de prescrições e limites. E mais duro ainda vê-lo abatido, tão distinto do que fora sempre em sua vida. Seu dia a dia é bastante restrito. Boa parte do tempo se esvai em frente à televisão. Notícias e futebol, basicamente. Ou então ouvindo música, passando de um CD a outro, variando enormemente os estilos. Ele nunca foi muito de ler ou escrever, sua existência se dá pela sonoridade; é a música que faz sentido em sua mente.

No sofá da sala, há um canto onde ele prefere sentar, próximo a uma mesinha com abajur e a base do telefone sem fio. Defronte ao sofá, há uma mesa de chão, que eu e minha irmã, num humor muito peculiar, mexendo com ele, chamamos de “the situation table”, numa referência mordaz à expressão “the situation room”, à qual os jornalistas da CNN recorrem em grandes coberturas jornalísticas, como eleições, e que, no meu tempo, se chamava algo como quartel general ou simplesmente, centro de operações. Nessa área, supostamente, estão todos os elementos que chegam pelos repórteres e outras fontes para serem transformados em informação e notícia.

A gozação tem a ver com a quantidade de badulaques e inutilidades que ele coloca ali, “caso precise”. Num inventário rápido, feito de memória, citaria: tesoura; tipos diferentes de fitas durex ou tape; óculos de leitura; alguns CDs de sua autoria; variadas edições de palavras cruzadas em português e inglês; remédios de toda sorte; copo com água misturada com tônica; copo com suco de laranja misturado com manga; fotografias de família; cartas e contas; calculadora, clips; cotonetes; luvas; carteira de dinheiro; óleo para massagear as pernas; vitaminas; etc. Em tiras de fita tape, coladas nos cantos da mesa, estão anotados os números de telefone considerados urgentes, e ele ainda é capaz de escrever no vidro de vitamina C, em letras caprichadas: “old”, para diferenciar a embalagem que está sendo usada da nova.

Cada um desses itens responde a um temor específico e funciona não apenas para que ele não precise se levantar o tempo todo para pegar as coisas que acha que precisará, mas como um inventário, que o permite perceber a escassez de determinado item e providenciar sua compra, como se sua existência dependesse disso. A mesa é um espelho da mente diante da ideia de morte iminente, em que nada mais importa, mas todos os detalhes são essenciais. Detalhes que geram uma sensação de conforto, muito mais imaginada do que real. Por isso, há uma séria crise quando um dos itens, que se somam as centenas, falta. Se algum elemento acaba ou desaparece, imediatamente toca um alarme mental e ele prepara a lista de compras. Quando estive lá, por exemplo, ele comprou quatro lanternas, para garantir que, no próximo furacão, quando faltar luz, ele não fique às escuras.

Às vezes, por necessidade própria de sanidade, eu chamava sua atenção para a inutilidade da maioria dos elementos sobre a mesa. Tentava desconstruir sua ordem, só para mostrar que novas ordens eram possíveis, e que a vida não precisa ir se amarrando tanto. Acho que fazia isso para buscar o velho pai, outrora tão autônomo, que se empedrara nessa personagem debilitada. Mas, diante de uma sentença tão terrível, faz sentido que ele busque, como um dom Quixote, um mundo onde tudo está no seu devido lugar, mesmo que intimamente, bem lá no fundo, ele saiba que tal mundo inexiste.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Humano, demasiadamente humano





O drama e sua potencialidade como estimulador de afeto humano é o que nos une. Nossa capacidade de perceber a dor do outro e nos sensibilizarmos por meio de um processo inconsciente de transferência, nos colocando no lugar do outro, imaginando seu sofrimento. Não se trata de sentir pena, do sentimento cristão de compaixão. O que está por trás desse movimento, a meu ver, é algo mais profundo, uma espécie de identificação, que se dá por meio da dor. É como se o sofrimento do outro nos empurrasse para um momento de abrupta constatação, mesmo que inconsciente, de que somos todos passíveis daquela dor, pois somos todos humanos.

Luc Boltanski escreveu sobre isso do ponto de vista filosófico, levando tal capacidade de empatia pela dor alheia para a instância de relações à distância. Ele fala da capacidade de mobilização que este fenômeno da empatia pode gerar, ampliado pelos meios de comunicação. O título de seu livro, em tradução livre, é algo como Sofrimento à distância.

Eu penso e me interesso mais pelo mesmo processo, mas num viés mais próximo, face a face. Esse foi inclusive um dos motores que me levaram a pesquisar o bairro, o botequim, a convivência urbana nas cidades. A capacidade de nos mobilizarmos pelo outro, por meio de empatias e solidariedades. Algo que a princípio pareceria impossível ou improvável na metrópole, na cidade com sua multidão assustadora de desconhecidos.

Sempre me intrigou essa nossa capacidade de reconhecimento do outro como igualmente humano, já que ele é capaz de sofrer como nós.Insisto, trata-se mais de identificação do que mera compaixão. Esta pode até surgir e se estabelecer como mediadora da relação, mas antes dela há uma identificação primitiva, que a torna possível.

E assim se sucedeu outro dia. O primeiro dia após o apocalipse maia. Com a Terra, pelo menos aparentemente, ainda intacta, girando na sua rotina em torno do sol, decidi sair de casa a esmo, aproveitando a minha folga para perambular pelo bairro. Depois de uma boa hora de andança, passada por sebo para folhear livros e comprar mais alguns, me sentei à mesinha de um bar uma calçada nova de Botafogo, gentrificada.

Trata-se de um admirável mundo novo homogêneo, que tanto encanta os burgueses por sua pureza étnica e social. Todos iguais, classe média, sem pobreza, sem mendigos, sem pivetes, sem miséria. Gosto do lugar menos pela frequência do que pelo chope de excelente qualidade. E louvo o esforço do dono em remar contra a (o)pressão do monopólio da AmBev e vender sua própria marca, entre outras, muitas outras.

Foi então que reparei que a garçonete, uma jovem simpática e bonita que sempre me atende quando apareço por lá, estava nesse dia com ares de que as premonições maias haviam de fato se concretizado; pelo menos em nível pessoal. Seu ar era de uma tristeza profunda e urgente, que se localizava sobretudo nos olhos. Estava, ademais, desatenta, distante e um tanto fria. Para quem já fora atendido por ela tantas vezes, era óbvio que ela não estava bem.

Aquilo provocou em mim uma angústia de dupla mão. De um lado a impotência por não ter a capacidade de poder “curar” minha amiga de sua dor. De outro, pelos meus próprios fantasmas, prontos para se identificar, farejando o ar da melancolia e do infortúnio. Imediatamente pus de lado a distância protocolar de nossos papéis sociais e perguntei, num tom quase de amizade, o que havia com ela. Sua resposta se deu em forma de lágrimas copiosas. Minha mão estendida sem querer derrubou a barreira que segurava o dique. Sem conseguir contê-lo, o choro por fim aflorou.

Constrangida, hesitou entre o profissionalismo e o choro. Sorriu amarelo e tratou de enxugar, inutilmente eu diria, o rosto. Balbuciou algo como: “não estou bem” e pediu desculpas pela quebra de protocolo. Disse a ela que ficasse tranquila e segurei sua mão para reforçar o que dizia. Disse as coisas inúteis que dizemos nessas horas, como “seja o que for, vai passar” e outras besteiras. Percebi um certo alívio em seu rosto, quando ela percebeu que eu, por meu lado, também me emocionara. Meus olhos marejaram encorajados pelas lágrimas dela.

Pensei nas coisas que me entristeciam, na solidão da vida, na morte que ronda meu pai na forma de um tumor, nos amores fracassados que tive e sei lá mais o quê. Me dei conta então que minha tristeza era tudo o que podia oferecer a ela em solidariedade ao seu sofrimento. Era a dor que nos amarrava em nossa humanidade. Humanidade que compartilhamos daquela forma.

Em seguida, ela desapareceu. Outro garçom passou a me atender e fiquei preocupado, sem saber se perguntava por ela e chamava a atenção dos colegas para o que se passava com ela. Mas, uma boa meia-hora depois ela voltou. Me disse que pediu ao gerente uns minutos para espairecer e foi dar uma caminhada. Ela se sentia melhor. Eu também. Estávamos os dois nos sentindo mais humanos.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Valsa pra ela





Ver-te
À luz minguante
Canto de olho
Rabo de saia
Oblíquo ângulo
Do querer-te.

Dizer-te
À meia voz
Que te quero
E ouvir-te, muda,
Distante léguas
Ao meu lado.

Arder-te
Ao calor do desejo
Lava que queima
A escorrer só
Noite adentro
Insone sonho.

Perder-te
A seco golpe
E sofrer-te pleno
Em muitos goles
Do momento
Enfim.

Viver-te
Por fim inteiro
Após descer
Das estrelas
A passos firmes
No possível.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

April in NYC




Quando abril chegar
E o sol mudar o arco de sua curva
Talvez não sejas mais
Do que memória e falta.
Dependerá do sonho de vida
Que costuras agora no tecido do dia
Para cobrires tua existência.

Quando abril chegar
Talvez seja tarde demais
E o tempo cumpra os presságios
Que murmuras hoje.
Dependerá da vida que sonhas
A vontade de mudar o arco da curva
Que o sol desenha no espaço.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A lógica do som




Hoje, meu pai colocou um CD do Paulinho da Viola, que por coincidência está tocando esta semana no Carnegie Hall em Nova York, e a voz suave se insinuou pelo apartamento, enquanto lá fora Newark afundava no cinza e no frio. Fiquei pensando nesse universo musical que ronda a vida de certas pessoas como meu pai, como o Paulinho da Viola. A mecânica dos dias, as relações afetivas, a percepção do mundo, enfim tudo o que possa fazer sentido, a cognição mais básica, o afeto provém da música. É um raciocínio musical, em progressão harmônica, em evolução melódica e, sobretudo, rítmica. Figuras como ele são trespassadas por sons e existem em harmonia com eles.

Meu pai gosta de ver TV (esportes e notícias, nessa ordem), mas muitas vezes tira o som do aparelho e coloca uns CDs e se deixa levar pela música diante das imagens mudas. Aquilo me incomodava logo que cheguei aqui, mas percebi que é disso que ele é feito. O que para mim parece caos, para ele está em harmonia porque é a música e não a imagem que comanda a ligação com a realidade. Ele viaja. Eu olho e me preocupo. Penso que ele está triste ou alheio. E ele está a pleno vapor na sua coisa sonora. Na sua musica. De repente, ele se vira e diz algo que só poderia ser dito por alguém lúcido. Me lembra a expressão de Glauber Rocha dizendo para a câmera, numa entrevista, “vocês pensam que sou louco, mas eu sei o que estou fazendo”. Hoje, no café da manhã, ele me disse, num tom de quem descobriu um segredo luminoso, que ontem dormira ouvindo umas sinfonias. E foi assim que adormeceu bem e teve um sono mais confortável do que os dos dias anteriores.

Vê-lo tocar o piano, mesmo que brevemente, nos últimos dias, me encheu de alegria. O portentoso Steinway & Sons ressoou vigorosamente pela casa, a harmonia seguindo uma lógica precisa, dando coerência cromática à linha do baixo, como ele sempre gostou. E o mundo todo também faz sentido. Tudo se encaixa. Não há dissonância, exceto aquelas que dão prazer ao ouvido.