O Canal Brasil passou recentemente dois documentários sobre Sebastião Salgado, todos dois muito interessantes. Admiro seu jeito zen e ao mesmo tempo comprometido com a melhoria da vida das pessoas, atitudes que fazem dele uma espécie de sábio. Ele me inspirou muito, tanto na fotografia — ofício que exerci no início de minha carreira na imprensa —, no jornalismo e, me dou conta agora, na antropologia. Inspiração que vem sobretudo pela forma de se aproximar de pessoas, bichos e coisas quando faz suas fotos e documentários fotográficos.
Não entendia porque meus colegas fotógrafos falavam horas —
alguns com muita inveja e desdém — sobre os equipamentos que ele usava e sua
técnica de fotografar, e não percebiam que sua fotografia começava antes, no
seu olhar subjetivo do mundo, na forma de se aproximar de seu “objeto” de
reportagem. Nada de foto roubada, nada de teleobjetivas, que colocam o
fotógrafo a uma distância segura, mas também ausente da cena. Salgado estava
sempre perto, conversava, aprendia o nome, convivia e essa aproximação se
refletia na luz das fotografias que fazia. Os dramas e as alegrias estavam lá
em todos os tons de cinza.
Para ele, não era mais o “instante decisivo” do
Cartier-Bresson, o olhar sensível que acompanha o desenrolar da cena e faz o
clique no momento exato. Salgado nunca estave interessado nesse instantâneo. Daí
seu temor profundo, quando fotografou o atentado contra Reagan, de ficar
conhecido por uma característica que não era essencialmente a sua. Sua
fotografia é o resultado da convivência, nem que seja a convivência consigo
mesmo, na solidão dos ermos do mundo, como se vê em seu último trabalho sobre o
planeta.
Estamos falando, portanto, de metodologia. E se fosse
esquematizar o olhar fotográfico documental entre Bresson e Salgado, diria que
o primeiro está mais perto do jornalismo e o segundo, da antropologia. Em
outros termos, o instantâneo de Bresson é a essência da reportagem, o momento
exato, o "instante decisivo", que conta, em resumo, uma história. Já a
convivência de Salgado com seu objeto é a essência da etnografia, do trabalho
de campo do antropólogo, isolado em civilizações esquecidas, aprendendo a
língua, anotando costumes, valores e ritos. Os dois são retratos da realidade,
mas tirados com “lentes” bem distintas e para fins igualmente distintos.
Num dos documentários, Salgado abre sua casa, seu estúdio e
sua pequena agência de fotografia. Entendemos seu uso do preto e branco e da
cor; a transição do filme para o digital, enfim, algumas questões técnicas que
teriam agradado muitíssimo os fotógrafos da minha época, que fetichizavam
máquinas, lentes, filmes e equipamentos. Mas, mesmo quando fala especificamente
sobre técnica, Salgado faz o tempo todo a ligação com esse olhar anterior, que
o forma como fotógrafo. O filme nos apresenta sua família, os filhos, a mulher e a
dinâmica de seu dia a dia em casa.
O outro documentário, em que ele é entrevistado pelo grande Eric
Nepomuceno, Salgado fala exclusivamente de si. E aí podemos entender melhor sua
fotografia. Sua origem em Aimorés, Minas Gerais; seus pais, seu amor
por Lélia. Eric, ao estilo psicanalítico, vai lançando palavras, como “medo”, “luz”
etc. e, numa associação com seu eu profundo, Salgado vai comentando. E, para
mim que perdi minha mãe recentemente, foi particularmente emocionante quando,
ao comentar o termo “saudade”, ele falou da presença da mãe em sua vida, por
meio da memória, e contou de um abraço que ela lhe deu, no seu primeiro retorno
à casa de sua infância.
Minha simpatia por ele só cresce e cada vez mais o vejo como
um sábio.