domingo, 28 de agosto de 2011

Na esquina da redação


Rodolfo Fernandes morreu durante o meu plantão. Quando um grande morre, a notícia chega sempre num sobressalto, murmurada para nós por arautos constrangidos, logo ao pisarmos na redação. Sabemos que teremos que nos mobilizar para, com um quinto da equipe convencional, preparar uma edição especial, homenageando o morto. Foi assim na morte do Papa e de grandes figuras. Só que neste caso, o morto era, além de grande, alguém próximo de nós. O que torna tudo mais difícil, pois qualquer palavra está sempre aquém ou além do tom adequado.

Estabelece-se um deadline, um horário de fechamento da edição especial, e começa o burburinho, cujo epicentro vem do Aquário, a sala envidraçada da diretoria, onde nadam os peixes grandes da redação. Mergulhamos naquilo que é a essência mesma da profissão: a mobilização compartilhada, coordenada e, por que não, solidária para levar ao leitor a notícia terrível. Plantonistas e outros que, convocados e por puro instinto jornalístico aparecem para ajudar, executam suas tarefas, como forma inclusive de amenizar a sensação de perda. Nessas horas, a objetividade é, além do instrumento de trabalho, também uma espécie de alívio, dando o que fazer à mente.

Rodolfo foi pego, na flor da idade, por uma doença terrível, que começou a se manifestar há uns dois anos. Ela foi lhe roubando, pouco a pouco, o corpo, imobilizando seus movimentos, sem a indulgência da alienação mental. Pelo contrário, a cada músculo que perdia sua função natural, Rodolfo parecia adquirir mais e mais lucidez. Quanto mais aprisionado no corpo, mais ágil parecia sua mente.

Ele passava por mim quase todos os dias, a caminho de sua sala, a poderosa e panóptica sala do diretor de redação, o Aquário do Aquário, o centro de poder. O cargo máximo da redação, ocupado por uma linhagem nobre de jornalistas, à qual Rodolfo acrescentou uma boa dose de elegância e suavidade, sobretudo na forma de respeito ao colega de profissão. Essa é uma das virtudes que sempre admirei nele.

Guardo, não sem emoção, suas últimas palavras dirigidas a mim num breve email, quando escrever se tornara uma tarefa hercúlea. Foi uma mensagem de boas-vindas, após quatro meses em que fiquei ausente, no exterior. No primeiro dia após minha volta, há dois meses, Rodolfo ficou contente ao topar comigo no meu velho posto de trabalho, uma mesa de esquina na redação, e escreveu: “Estava faltando algo na paisagem da Redação. Seja bem-vindo. Como foi lá?”

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A musa dos pés desnudos


Amigos, coloquei este conto no site Eu amo escrever. Se gostarem, votem nele.

A musa dos pés desnudos
Paulo Thiago de Mello

Passou por mim como um arrepio, mas a reconheci no imediato. O ranger interno dos ossos e um presságio em forma de calafrio me diziam: é ela. Os indícios na relva verde estavam lá, apontando para múltiplas direções, todas elas, a mesma. Tudo confirmava sua fugidia presença, mas foram as marcas dos pés descalços que assinaram seu nome na grama. Voltara sabe-se lá de que abismo. O jeito escorregadio, como se não quisesse estar ali. Era o riso de sempre, a mesma alvura de pele, a sina romântica de infortúnios e naufrágios. Musa de sonhos irrealizáveis, tinha o corpo transparente, desenhado por caminhos azuis de veias, cabelos claros ao vento. Esquálida, pálida, lânguida. O sexo guardado por frondosa floresta, escuro contraste com a pele de leite, guardião de segredos abissais. Mais ilusão do que carne. O coração gelado, silencioso, e a maldade pura das crianças. Mas a expressão da sua alma eram os pés. Ninguém nunca os vira calçados. Estavam sempre deixando indícios em formas de pegadas, construindo constantemente seus labirintos. Fez do andar descalço sua marca e, em cada passo, os vestígios de sua luta para manter a lucidez dos sentidos, o esforço para escapar aos desvarios que abriam fendas em seu peito.

Em outra vida, me perdera com ela. Caminhei ao seu lado, buscando desvendar, ofuscado por um fascínio irracional, a alma desfraldada, o espírito indomável, a meninice que se apegara à pele, o sorriso travesso enquanto ateava fogo ao mundo, em suas revoluções, revoltas e conjurações. Mergulhei em seu universo pela densidade de sua floresta, nunca inteiramente aberta para mim. Era preciso sempre tomar-lhe de assalto o reduto, o ventre plano, o púbis tarantular e fincar ali a minha bandeira. Só assim, quando o corpo já não lhe pertencia mais, me entregava seu tesouro isenta da própria volúpia. Forcei-me adentro de sua persona, de seus humores, de seus músculos e deixei em suas funduras os fios poucos de sanidade que me constituíam. Enlouqueci feliz no esquecimento daqueles dias, que se alternavam entre os mais felizes e os mais ferozes da minha vida. Fui picado mil vezes por seu ferrão oculto, ingeri seu veneno mais letal, mas sobrevivi ao mergulho, salvo por meu apego à terra, ao chão firme, à luz quente do sol.

No caminho de volta reencontrei cacos preciosos do que fora antes de ter enquadrado seus olhos no foco impossível. Reconstituí-me protegendo os pedaços que me sobraram. Era agora feito de restos, num mundo sem quimeras ou fantasias. Apenas a densidade crua das coisas e dos seres; a percepção, resignada e plácida, do ciclo da vida. Foi preciso tempo para ver o encantamento dessa outra alegria possível, que, sem fogos de artifícios ou canto de sereias, ardia plena na intensidade do real.

E agora, ela me assombrava novamente, materializando-se ao meu lado. Os pés sempre desnudos e, nos olhos, a velha história, o mesmo engano. Mas, na distância, aprendera. Sabia inclusive de todos os novos vocábulos que pronunciei desde o nosso último abraço. Estudara atentamente meus percalços e vinha preparada para me reconquistar; sua trama, por não ser trama, era das mais poderosas. Mas as cicatrizes ainda me doíam fundo e me mantive enraizado. Amarrei-me, como Ulisses, ao real. Permiti que ela chovesse, derramando-se sobre mim, e esperei que estiasse, no sono calmo e escuro de seus abismos, único lugar onde seu espírito aquietava-se. Mas, enquanto dormia, saí vasculhando o mundo ao meu redor, para depois voltar e afogá-la sob uma montanha de calçados, sapatos e sandálias. Estava curado e podia agora deixar meus próprios passos na relva.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O sonho da cidade ideal

Fiz essa foto, em fevereiro, na véspera de embarcar para Paris, onde fiquei quatro meses fazendo pós-doutorado...

... na volta, a paisagem mudou, com novas obras despontando a partir de minha janela.

Amigos, eis-me de volta ao Pendura, após mais de 50 dias sem internet em casa (vou poupá-los do calvário que foi esse processo). Desde que voltei do séjour na França, me concentrei no trabalho. Escrevi uma resenha para o Prosa & Verso, falando de um livro que conta a história dos operários da estrada de ferro Madeira Mamoré a partir do ponto de vista de um fotógrafo americano que registrou a megaobra. Vou republicar aqui em breve. Mais urgente, porém, foi o artigo que escrevi no caderno especial do Prosa sobre o impacto dos megaeventos esportivos — Copa do Mundo e Olimpíadas — no Rio de Janeiro, tanto fisicamente quanto simbolicamente.

Participaram do caderno vários especialistas e eu escrevi meu artigo na condição de antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (LeMetro/IFCS-UFRJ), embora o texto tenha um estílo mais jornalístico. Reproduzo o texto aqui, acrescentando fotos de Botafogo que tirei por causa de minha pesquisa sobre o bairro. Mas vale a pena ler as demais matérias do caderno que foi todo dedicado a esse tema tão relevante nos dias atuais. Vale mencionar ainda o artigo de Luiz Antonio Simas, publicado também no Globo, no último domingo. Bem, vamos ao texto:

Disputa pelo sonho do espaço ideal

Transformado em commodity, Rio vive processo de aburguesamento refletido em bomm imobiliário

Paulo Thiago de Mello

A realização de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro se insere em um contexto mais amplo, marcado pelo que cientistas sociais e urbanistas classificam como um fenômeno de commoditização das cidades. Trata-se da transformação das metrópoles em ativos, numa competição internacional por investimentos e turismo. Esse processo remonta ao fim dos anos 80, quando o capitalismo consolidou seu contorno neoliberal e se globalizou.

No caso do Rio, as Olimpíadas e a Copa do Mundo representam o ápice de um processo que abrange outroas mudanças importantes. Estas são implementadas por todas as esferas dos poderes públicos, numa parceria com segmentos privados. O resultado é a transformação radical da cidade, nem sempre da forma como previram os planejadores, muitos deles eufóricos com a retórica de recuperação do Rio, após anos de estagnação.

Além dos megaeventos esportivos, há projetos de revitalização de áreas da cidade, como o Centro e a zona portuária; instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criando um cinturão de segurança nas regiões de interesse; remoção de populações de baixa renda; revitalização de bairros por meio de renovação dos equipamentos públicos, entre outras iniciativas. Soma-se a issoa reforma da lei do inquilinato, a política federal de estímulo à construção civil e programas de casa própria, que acabaram por estimular um boom do setor imobiliário.

Uma das conseqüências mais dramáticas dessas iniciativas é a transformação da vida nos bairros, sobretudo por meio de um processo de substituição de populações, em que moradores mais antigos vão deixando áreas residenciais tradicionais, expulsos pelo aumento do custo de vida, especialmente os relacionados à moradia. Em seu lugar chegam novos residentes, com maior poder aquisitivo.

Essa espécie de aburguesamento, também chamada de gentrificação, não é um acontecimento exclusivo do Rio de Janeiro. Em várias metrópoles, como Nova York, grupos de classe média alta estão abandonando os subúrbios ricos e voltando para os centros urbanos, ocupados por uma população de renda mais modesta. Em Paris, os residentes de origem operária e imigrantes estão se transferindo para os chamados banlieues, substituídos pelos bobôs (bourgeois-bohèmes), um novo ator social, que na cidade pós-moderna commoditizada une o burguês ao boêmio.

Mobiliárias prometem modernizar os bairros

Diferentemente de Paris, onde essas mudanças não implicam a destruição do tecido urbanao construído, e conseqüentemente a paisagem arquitetônica da cidade, no Rio o fenômeno é companhado por uma onda de demolições, que transforma — ou transfigura — a identidade física e simbóliba dos bairros. Um exemplo que salta aos olhos é o de Botafogo. O processo de demolição de antigas vilas, casarões e prédios baixos, para dar lugar a condomínios — cujos panfletos publicitários prometem "modernizar" o bairro por meio de construções "exclusivas" e "seguras" — acaba por transformar a vida nas calçadas, o tipo de comércio e o uso dos espaços públicos compartilhados.

Só nos últimos cinco meses, na área delimitada entre as ruas da Passagem, Álvaro Ramos, Arnaldo Quintela e General Polidoro, pelo menos sete novos empreendimentos imobiliários, com o preço médio do metro quadrado em torno de R$ 9 mil, tomaram o lugar de antigas casas e vilas. O impacto ecológico no bairro é fácil de imaginar, sobretudo no trânsito e na infra-estrutura em geral.

Mas é no choque entre antigos e novos residentes, cada qual com seu sonho de cidade ideal, que a disputa pelo bairro — isto é, pelo direito à noção dominante de tradição e patrimônio — torna evidente o processo de transformação urbana em andamento. Ele está nos encontros na calçada, nos eventos públicos do bairro, e no convívio diário mediado pelo comércio, tradicional e novo, dos velhos botequins aos sofisticados bistrôs.