terça-feira, 16 de agosto de 2011

O sonho da cidade ideal

Fiz essa foto, em fevereiro, na véspera de embarcar para Paris, onde fiquei quatro meses fazendo pós-doutorado...

... na volta, a paisagem mudou, com novas obras despontando a partir de minha janela.

Amigos, eis-me de volta ao Pendura, após mais de 50 dias sem internet em casa (vou poupá-los do calvário que foi esse processo). Desde que voltei do séjour na França, me concentrei no trabalho. Escrevi uma resenha para o Prosa & Verso, falando de um livro que conta a história dos operários da estrada de ferro Madeira Mamoré a partir do ponto de vista de um fotógrafo americano que registrou a megaobra. Vou republicar aqui em breve. Mais urgente, porém, foi o artigo que escrevi no caderno especial do Prosa sobre o impacto dos megaeventos esportivos — Copa do Mundo e Olimpíadas — no Rio de Janeiro, tanto fisicamente quanto simbolicamente.

Participaram do caderno vários especialistas e eu escrevi meu artigo na condição de antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (LeMetro/IFCS-UFRJ), embora o texto tenha um estílo mais jornalístico. Reproduzo o texto aqui, acrescentando fotos de Botafogo que tirei por causa de minha pesquisa sobre o bairro. Mas vale a pena ler as demais matérias do caderno que foi todo dedicado a esse tema tão relevante nos dias atuais. Vale mencionar ainda o artigo de Luiz Antonio Simas, publicado também no Globo, no último domingo. Bem, vamos ao texto:

Disputa pelo sonho do espaço ideal

Transformado em commodity, Rio vive processo de aburguesamento refletido em bomm imobiliário

Paulo Thiago de Mello

A realização de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro se insere em um contexto mais amplo, marcado pelo que cientistas sociais e urbanistas classificam como um fenômeno de commoditização das cidades. Trata-se da transformação das metrópoles em ativos, numa competição internacional por investimentos e turismo. Esse processo remonta ao fim dos anos 80, quando o capitalismo consolidou seu contorno neoliberal e se globalizou.

No caso do Rio, as Olimpíadas e a Copa do Mundo representam o ápice de um processo que abrange outroas mudanças importantes. Estas são implementadas por todas as esferas dos poderes públicos, numa parceria com segmentos privados. O resultado é a transformação radical da cidade, nem sempre da forma como previram os planejadores, muitos deles eufóricos com a retórica de recuperação do Rio, após anos de estagnação.

Além dos megaeventos esportivos, há projetos de revitalização de áreas da cidade, como o Centro e a zona portuária; instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criando um cinturão de segurança nas regiões de interesse; remoção de populações de baixa renda; revitalização de bairros por meio de renovação dos equipamentos públicos, entre outras iniciativas. Soma-se a issoa reforma da lei do inquilinato, a política federal de estímulo à construção civil e programas de casa própria, que acabaram por estimular um boom do setor imobiliário.

Uma das conseqüências mais dramáticas dessas iniciativas é a transformação da vida nos bairros, sobretudo por meio de um processo de substituição de populações, em que moradores mais antigos vão deixando áreas residenciais tradicionais, expulsos pelo aumento do custo de vida, especialmente os relacionados à moradia. Em seu lugar chegam novos residentes, com maior poder aquisitivo.

Essa espécie de aburguesamento, também chamada de gentrificação, não é um acontecimento exclusivo do Rio de Janeiro. Em várias metrópoles, como Nova York, grupos de classe média alta estão abandonando os subúrbios ricos e voltando para os centros urbanos, ocupados por uma população de renda mais modesta. Em Paris, os residentes de origem operária e imigrantes estão se transferindo para os chamados banlieues, substituídos pelos bobôs (bourgeois-bohèmes), um novo ator social, que na cidade pós-moderna commoditizada une o burguês ao boêmio.

Mobiliárias prometem modernizar os bairros

Diferentemente de Paris, onde essas mudanças não implicam a destruição do tecido urbanao construído, e conseqüentemente a paisagem arquitetônica da cidade, no Rio o fenômeno é companhado por uma onda de demolições, que transforma — ou transfigura — a identidade física e simbóliba dos bairros. Um exemplo que salta aos olhos é o de Botafogo. O processo de demolição de antigas vilas, casarões e prédios baixos, para dar lugar a condomínios — cujos panfletos publicitários prometem "modernizar" o bairro por meio de construções "exclusivas" e "seguras" — acaba por transformar a vida nas calçadas, o tipo de comércio e o uso dos espaços públicos compartilhados.

Só nos últimos cinco meses, na área delimitada entre as ruas da Passagem, Álvaro Ramos, Arnaldo Quintela e General Polidoro, pelo menos sete novos empreendimentos imobiliários, com o preço médio do metro quadrado em torno de R$ 9 mil, tomaram o lugar de antigas casas e vilas. O impacto ecológico no bairro é fácil de imaginar, sobretudo no trânsito e na infra-estrutura em geral.

Mas é no choque entre antigos e novos residentes, cada qual com seu sonho de cidade ideal, que a disputa pelo bairro — isto é, pelo direito à noção dominante de tradição e patrimônio — torna evidente o processo de transformação urbana em andamento. Ele está nos encontros na calçada, nos eventos públicos do bairro, e no convívio diário mediado pelo comércio, tradicional e novo, dos velhos botequins aos sofisticados bistrôs.

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