quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Entrevista com Vandré

Vandré, a mente afiada e boas histórias guardadas

Assisti um tanto angustiado e ansioso a entrevista que o Geneton Moares fez com o Geraldo Vandré para a GloboNews. Não sei se o Vandré vetou alguns temas a priori ou se o Geneton estava nervoso por estar fazendo a primeira entrevista com o autor de Pra não dizer que não falei das flores e Disparada após quase 40 anos de silêncio misterioso, mas foi uma entrevista travada, e me deu a impressão que o Geneton não dialogou de fato com o entrevistado. Em algumas respostas, Vandré claramente abria caminhos para o entrevistador seguir, mas ele não percebia, tão focado que estava em sua prancheta, com o roteiro de perguntas. De novo, o problema de sair da redação com a história pronta. Isso tira a sensibilidade do repórter para o inesperado, o imponderável.

É verdade que o Vandré, além de ser difícil nas cordialidades do face a face, foi evasivo sobre vários assuntos que não lhe interessavam. Sobre outros temas, porém, indicou que falaria bem, mas não foi estimulado a fazer isso pelo repórter, que não percebeu as deixas. De fato, a entrevista é uma arte complicada, sobretudo quando se fala com pessoas geniais e muito inteligentes, como é o caso do Vandré.

De qualquer modo, certos trejeitos, maneirismos, a ênfase incomum em certos trechos da frase, características de Vandré, me lembraram muito de Manduka, seu parceiro em 1972, no Chile de Allende, quando fizeram juntos Pátria amada idolatrada salve salve, um diálogo entre um homem e uma mulher ou entre a pátria e o exilado. Foi emocionante ver Vandré recitando trecho da letra de memória. Bastante afiada, por sinal.

Manduka conviveu com Glauber no Chile, onde o primeiro foi ator do segundo no filme inacabado Estrela da manhã

Manduka, com menos de 20 anos, começando sua carreira de músico no Chile, vivendo aquela efervescência toda. Convivendo diariamente com Vandré e Glauber Rocha, com os músicos dos Los Jaivas, dos filhos de Violeta Parra, introduzindo guitarras na música andina, um pouco como os Novos Baianos fizeram com a MPB. Dando ares de Bossa Nova a canções tradicionais do altiplano andino, como Naranjita. E depois o caminho que ele seguiu, gravando discos improváveis e raros em Cuba, com Pablo Milanés, no México, um de seus mais lindos discos, na França, com Naná Vasconcelos e no Brasil.

Manduka sempre conviveu com essas figuras e ele próprio era um gênio, por seu lado. Agora, depois de morto, cresce o movimento na internet atrás de seus discos. O disco do Chile, com Vandré e Los Jaivas, e a bela cantora Soledad Bravo, é um dos mais populares nessas redes. Mas quando se ouve cronologicamente o trabalho, percebe-se a trajetória do artista.

A contracapa do disco de Manduka, gravado no Chile em 1972, com Vandré como parceiro

E é essa trajetória de Manduka que me permite transferir, meio freudianamente, para Vandré e todos aqueles que conviveram no mesmo ciclo a mesma intensidade dos momentos que se foram. Por isso, a entrevista feita pelo Geneton me deixou emocionado por um lado e frustrado, por outro. A prancheta impediu que ele vislumbrasse ali a possibilidade de uma trajetória, ficando preso a questões pontuais de seu roteiro jornalístico. Faltou olhar para o entrevistado, olho no olho, e embarcar na viagem que, no fim, ficou no porto.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Inflação de botequim

Capela: preços inflacionados pelo sucesso

Tá legal, eu aceito o argumento, mas não meu velho pé-sujo tanto assim. Olha que a rapaziada está sentido a falta de um chope barato num botequim. É isso mesmo, amigos, os preços dos botequins estouraram numa espiral inflacionária que nenhum fundamento econômico pode explicar. Nada justifica uma conta de mais de R$ 100 após uma hora e meia no Capela ou no Lamas. Sobretudo quando ainda se encontram pés-sujos sensacionais como o Bar da Adelina, onde um PF e duas latinhas de cerveja saem por cerca de por R$ 15, depois de duas horas de conversa jogada fora, ouvindo um sambinha ao vivo.

Em parte, acho que essa alta maluca veio da valorização, digamos, social do botequim na cidade. Toda a onda que o Rio Botequim detonou, ao mostrar que o botequim não era apenas o lugar do alcoólatra e do vagabundo, mas igualmente uma insituição cultural representativa da boemia carioca, levou para o boteco hordas de consumidores que não eram aqueles velhos boêmios de outrora, tipo Jaguar e a turma do Pasquim, ou a malandragem de Vila Isabel e a turma do samba. De repente, os bares se viram invadidos por clientes "classe A", que exigem banheiro limpo e serviço à paulista. Tudo impecável.

Passados 20 anos desse processo, veio a conta. Qualquer boteco um pouco mais arrumadinho cobra os olhos da cara, nega a saideira e tem maitre para discutir com os clientes. Pendurar? Nem pensar. Outro dia, num encontro de jornalistas no Joaquina, mais de 15 coleguinhas, a conta deu uns R$ 800, e ainda assim os caras negaram uma rodada de cortesia de saideira. Taí um pé-limpo que, apesar do bom chope, evito. No Odorico, também num encontro de colegas de jornal, foi uma luta para pagar com cheque a conta. Cheque especial, vejam bem. Risquei do caderninho. Prefiro beber meu chope na Adega da Velha, onde o cardápio tem duas opções: cara e barata. E, numa emergência, dá pra gritar:

— Pendura essa, Chico!

Pendurar é vender a crédito. E crédito, o próprio nome diz, é acreditar. Acreditar em alguém, não no cliente, mas no freguês, aquele assíduo, de confiança. É uma relação de confiança que só pode existir num comércio de proximidade. Proximidade física e simbólica. É preciso estar afetivamente perto. Comerciante e cliente. É preciso conhecer o esforço do Chico, saber que ele tem, além do filho que trabalha lá, mulher e filha. Saber os problemas do dia-a-dia do negócio. Os fiscais que não dão trégua, o cliente que está devendo há mais de três meses e por aí vai.

Bar do Serafim: o que acontecerá com ele?

Será sinal dos tempos? O Juca se foi e o Bar do Serafim é agora uma incógnita. A Adega Pérola ainda está lá após a morte do dono, mas até quando? E os que sobraram estão metendo a mão, sem justificativa. Jobi, dos meus queridos Narciso e Manuel, sempre cobrou caro; o Bracarense também. Mas hoje, quando passo perto, o bolso dói e eu dobro a esquina, para não me sentir tentado. Pois ninguém, de boa cepa, bebe um ou dois chopes apenas, não é mesmo?

Segundo os economistas, trata-se da velha lei da oferta e demanda. Com tanta publicidade e marketing, a procura saltou e até patricinha hoje freqüenta botequim ou pseudobotequim. O preço tem que subir. Pois essa clientela nova é inclusive uma clientela com dinheiro no banco. Mas acho também que esse movimento está começando a chegar perto da saturação. Tenho visto o salão do Lamas, por exemplo, vazio e não creio que seja apenas culpa da lei seca ou da proibição de fumar em local fechado. Um bife simples, isto é, sem acompanhamento, cujo tamanho hoje é um terço do que era nos bons tempos, está em promoção: R$ 44. O preço oficial é R$ 10 mais caro. O Capela também tem andado às moscas.


Aproveito para acrescentar uma foto do Bar da Adelina

Enquanto isso, proliferam pequenas vans vendendo sopa de ervilha e churrasquinhos de gato. A rapaziada se alimenta nesses "podrões", como dizem os paulistas, e depois vão para o bar da moda, beber uma cervejinha. Estratégias de sobrevivência nesses tempos de carestia boêmia.

domingo, 12 de setembro de 2010

A magia de Hermeto


O Hermeto Pascoal é chamado de bruxo. A sua figura albina, com longos cabelo e barba brancos ajuda o imaginário da gente a confirmar o título. Mas é obviamente por sua música que ele é chamado dessa forma desde os anos 70. E a grande mágica de Hermeto, na minha opinião, não é a intricada progressão harmônica de suas músicas, mas a construção aparentemente simples de suas melodias. As músicas de Hermeto, quase todas, são cantaroláveis ou assoviáveis. Temas lindos, como Música das nuvens e do chão, ou o famoso Bebê, só para citar dois deles, ficam nos nossos corações por dias, depois de escutá-los. Mas digo aparentemente, porque mesmo em sua simplicidade sonora, essas melodias são complexas, contorcendo-se em sutis variações, sem matar a idéia central do tema.

Alie-se a isso a maestria harmônica do bruxo e temos aí o segredo de sua magia. Por isso, ainda hoje não consigo me comover com as performances de Tom Zé, sua batida de panelas no palco (coisa que o Hermeto fazia já nos anos 60). Sei que muitos não concordarão, mas como não entendo nada desse assunto, me aventuro sem medo pelo mar bravio. A impressão que tenho é que Tom Zé se esforça demais para soar original. É, talvez, a maldição das vanguardas, que estão sempre condenadas a inventar o novo, a anunciar o futuro, que já fica velho no momento mesmo de seu anúncio.

Em termos musicais, Tom Zé perde longe para Hermeto, em minha opinião. Em termos perfomáticos, perde para outros, como Walter Franco, cantando Cabeça, num dos últimos festivais; ou ainda para Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé, estes últimos também grandiosos em termos musicais, com um estilo consistente e vanguardista.

Bem, talvez esteja sendo injusto e meus amigos músicos possam me corrigir. Afinal, só vejo Tom Zé em performances aqui e ali na TV, num Programa do Jô, ou coisa que o valha. Não compro seus discos e nem vou a seus shows. Mas do pouco que vejo na TV não sinto tesão para mergulhar em seu universo musical. Talvez, não esteja simplesmente a altura dele.

No século XVI, quando estudava música e fantasiava me tornar um artista nesse ramo, compartilhava com meus colegas o desdém pela simplicidade e a emoção. Achava que as intricadas fórmulas matemáticas do estudo harmônico me dariam a chave para fazer uma verdadeira arte. Uma arte superior à chorumela brega da música comercial, uma música só para quem tivesse condição de “entender”. Alguém que, ao ouvir minha música, dissesse: “Veja, aqui ele inverteu o acorde e colocou a nona no baixo”, ou coisa que o valha. E quanto mais mergulhei nesse mundo racional e lógico, mais fui perdendo a espontaneidade que tinha, e a sonoridade foi se esvaindo de mim, até que não sobrou nada, exceto partituras, manuais de harmonia jazzística e cadernos de solfejo. A música acabara. Vazio de sons, fui cuidar da minha vida.

Creio que esse racionalismo excessivo, que se perde do emocional, é um perigo. Quando se está nessa febre, gostamos ou deixamos de gostar de um tema musical à medida que compreendemos sua linguagem matemática, sua racionalidade. A mensagem do autor. Ao mesmo tempo tendemos a desprezar coisas simples, harmonias simples, repetitivas, pouco variadas, populares e exageradamente sonoras.

Penso que uma das grandes virtudes do Tropicalismo, sobretudo em Caetano Veloso, é a exaltação de músicas simples, bregas, melodiosas, melodramáticas. E mestres como Tom Jobim, para citar outro grande, caminham num equilíbrio entre os planos racional e emocional. Por isso, o bater de panelas no palco de Tom Zé é muito diferente daquele que faz o Hermeto.
Falando em Hermeto, estou organizando uma série de gravações caseiras de meu pai, o músico Gaudencio Thiago de Mello, feitas entre 1967 e 1972. Ele recebia os amigos em sua casa em Nova York e tudo acabava em música, que o velho registrava num gravador de fita rolo. Recentemente, sugeri a ele que passasse esse material todo para digital, num estúdio, equalizando, masterizando e o escambau.

Acabo de receber cinco CDs: O primeiro é um ensaio de 1967 do grupo que estavam montando Carmen Costa (vocal), Moacir Santos (raríssimo tocando piano), o velho no violão, e Richard Kimball, no contrabaixo. O segundo é um solo de berimbau de Naná Vasconcelos. O terceiro, é o velho, Dom Um Romão e Gilberto Gil, em 1972, com Gil mostrando Oriente e outra canção. No mesmo ano, Hermeto Pascoal mostra várias de suas canções, inclusive Bebê, com Flora Purim e Airto Moreira. Mais recentemente, em 1988, tem uma jam session na sua casa, com Claudio Roditi (trompete e piano), Romero Lubambo (guitarra), Roberto Sion (sax e piano), Nilson Matta (baixo), Barry Olsen (trombone), Gaudencio (percussão), Helio Schiavo (bateria) e Susan Davis (piano e percussão). Estou querendo propor um programa de rádio sobre isso.

sábado, 11 de setembro de 2010

Todos juntos e misturados


Ao deitar os olhos sobre o Prosa & Verso de hoje, me deparei com uma resenha do meu querido Luiz Antonio Simas, a quem acompanho pelo blog Histórias Brasileiras, acessível na lista de links deste Pendura Essa, sobre o mais recente livro do grande Nei Lopes, Oiobomé, a utopia de uma nação (Ed. Agir, 224 pgs, R$ 44,90). Simas é apontado no rodapé da resenha como professor de história, mas isso diz pouco do que ele realmente é. Na verdade, embora sua fama como professor que domina o ofício e ensina com paixão seja algo bastante disseminada, sobretudo entre estudantes, meu amigo é antes de tudo um humanista de primeira estirpe e é isso que lhe confere autoridade para discorrer sobre qualquer coisa. Some-se a isso, seu estilo de crônica, suave e preciso. Ecos de suas aulas antológicas me chegam por variados interlocutores, como a sobrinha de uma ex-namorada. Acho que foi o Eduardo Goldenberg, do blog Buteco do Edu (aqui), que se referiu certa vez a Simas como mestre zen. E é verdade, mas um mestre zen brasileiro com nosso orientallismo miscigenado, que tem em Dorival Caymmi a versão mais completa.

Sobre o livro de Nei, Simas apresenta, sob o título Um épico da mestiçagem brasileira, o mais recente esforço hercúleo do escritor/compositor de chamar a atenção, de forma extremamente erudita, para os aspectos africanos de nossa cultura. O autor inventa uma nação, Oiobomé, construída por um ex-escravo e composta por africanos ameríndios. E Simas conclui, muito a seu jeito, afirmando que sai da leitura com duas convicções: a primeira é que a saga de Oiobomé daria um belo enredo de escola de samba, se as escolas de samba ainda estivessem interessadas em enredos grandiosos e culturais. A segunda convicção é, e eu diria mais importante, é a de Nei Lopes escreveu mais um livro fundamental “para que o Brasil se reconheça e reconheça seu povo”.

Nei Lopes é um intelectual que ainda não foi devidamente reconhecido pela academia, sobretudo pela área de história social. Ele me lembra o caso de Nunes Pereira, autor de Moronguetá, o decamerão indígena, um trabalho etnológico de recolhimento de lendas e mitos sexuais dos indígenas no médio Amazonas, sobretudo os maués. Nunes Pereira, tendo sido um dos melhores do ramo, nunca foi reconhecido como antropólogo.

Mas quero aproveitar a deixa do livro de Nei para dar um pitaco sobre um assunto que, em geral, evito, já que vem cercado de controvérsia enfurecida, o que dilui muito a possibilidade de um diálogo honesto e profícuo. Trata-se da questão das cotas raciais. E para começo de conversa coloco minha posição sobre esse tema: sou a favor de cotas sociais, não raciais. Acho que os caboclos ribeirinhos da Amazônia, os nordestinos pobres de pele morena clara, ou camponeses do sul do país, branquelos, também devem ter acesso à universidade, pois a grande barreira hoje é social, não racial. Agora, dito isto, não há como deixar de reconhecer que racismo e preconceito racial são pragas presentes na nossa sociedade hoje.

Para mim, o problema principal das cotas raciais é que elas instalam uma divisão por raça que segrega a nossa sociedade e isso, a meu ver, se deve à influência do movimento negro americano, que foi incorporada sem críticas por alguns dos grupos que compõem o movimento negro no Brasil. Sucede que os EUA são um país multiculturalista e o Brasil, um país sincrético, mestiço. Isso significa que lá existem muitos grupos étnicos ocupando seus lugares isolados na sociedade e a disputa política, econômica e social se dá na arena pública, que deve ser igualitária, embora nem sempre funcione assim. Aqui, há miscigenação, mestiçagem. Somos todos, na maioria, meio brancos, meio negros, meio índios, meio árabes meio judeus, e por aí vai, “todos juntos e misturados”, como dizia Jean Charles de Menezes, um mestiço brasileiro assassinado pela polícia britânica ao ser confundido com um fundamentalista islâmico. O problema no Brasil, penso eu, é a esfera pública, tremendamente desigual e corrupta, uma desigualdade mais social do que qualquer outra coisa e uma corrupção atávica às instituições. E acho que, sendo um país mestiço, o combate à desigualdade deve ser sobretudo pelo seu aspecto social e não étnico, privilegiando um grupo e discriminado outro.

Não concordo nem mesmo com o argumento, que ouvi de alguns, segundo o qual a cota racial pelo menos seria uma forma de reparar uma dívida histórica com os negros, que sofreram com a escravidão. Acho que seria tentar amenizar um erro com outro. Mas, sobretudo, a questão que mais me move é que ao adotar o raciocínio racial, dão-se as costas para a potencialidade que uma nação mestiça tem no mundo contemporâneo. Vamos mais uma vez imitar os americanos, jogar fora o somos e instaurar a divisão de raças e etnias com argumentos parecidos aos de Arthur de Gobineau, um dos pais das teorias racistas, que escreveu sobre sobre a pureza das raças e os defeitos “genéticos” da mestiçagem, dividindo, como os americanos, o mundo entre brancos (exclusivamente anglo-saxões e arianos) e negros (o resto). Um perigo.

O próprio Nei Lopes, que, pelo que sei, defende a política de cotas raciais, com sua pesquisa incansável sobre a cultura africana no Brasil dá argumentos para um discurso mestiço. Acho que a melhor forma de combater o racismo, a discriminação racial e valorizar aquilo que nos torna uma nação, é estimular trabalhos como os de Nei Lopes e Nunes Pereira. Com exceção da contribuição européia, há muito pouco material sobre influências culturais que foram apropriadas, ou como preferiria Oswald de Andrade, deglutidas pelos brasileiros e, incorporadas à nossa realidade. Gostei da resenha de Simas porque ele teve a sensibilidade de destacar essa importância do Nei.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Doença como metáfora


O Prosa & Verso, caderno literário do Globo, trouxe no sábado passado um excelente artigo do psiquiatra e psicanalista Orlando Coser. Ele tratou de um assunto que venho considerando também, já há algum tempo, por um viés, digamos, mais antropológico. Trata-se da invenção de doenças pelo mercado farmacêutico e a indústria médica. No artigo, Coser, com uma clareza espetacular, analisa a profusão de lançamentos de tranquilizantes, antidepressivos, estabilizadores, neuromoduladores, enfim psicotrópicos que, alardeados como anjos que trazem redenção, acabam por alterar a percepção de médicos, psiquiatras, pacientes, farmacêuticos, entre outros, sobre as enfermidades mentais. A coisa é tão forte, que se chega ao ponto de inventar novas doenças, ao criar nomenclaturas e novas descrições para sintomas.

Coser é muito preciso ao afirmar como medicamentos, inicialmente usados em casos severos de esquizofrenia, se tornaram cada vez mais acessíveis e disseminados. A introdução dos psicotrópicos trouxe, do ponto de vista antropológico, uma inversão importante na gênese dos estados mórbidos ou eufóricos: não é o sintoma que provoca alterações psicoquímicas no cérebro, e sim o inverso. Difundiu-se, de forma bastante lucrativa para as indústrias que produzem esses remédios, a idéia de que esses distúrbios são tratados e resolvidos mediante o consumo de pílulas guardadas em caixinhas com tarja preta, que milagrosamente vão equilibrar hormônios, deficiências ou excesso de agentes neuroquímicos e, assim, "curar" o paciente. A Associação Mundial de Psiquiatria, sob forte influência americana, inclusive mudou os nomes das enfermidades: em vez de neurose, psicose etc., agora temos transtorno bipolar ou transtorno disso e daquilo, cada qual associado a uma miríade de medicamentos miraculosos. Criou-se, assim, um mercado que substitui o velho mundo do pobre e ultrapassado alienista.

Como chama atenção em seu artigo, Coser afirma que "o principal efeito desta estratégia mercadológica é o menosprezo à clínica médica. Parte do saber, da ciência, da tradição médica, é substituída pelo convencimento através de ampla ação de marketing, destinada não só a profissionais de saúde como, a partir de comunicação direta, a leigos.” E assim se criam e se apagam doenças na nossa sociedade.

Uma história ilustra processo parecido. Estava conversando com uma amiga na França e, ao mencionar a expressão TPM, fui repreendido por ela:

— Não existe TPM — disse de forma tão categórica, que não me restou alternativa a não ser concordar com ela. — TPM é uma invenção dos americanos para vender remédios.

Bem, muitas amigas minhas aqui no Brasil discordam da francesa, sobretudo quando aparecem determinados sintomas desconfortáveis “naqueles dias”. Mas sendo um pouco indulgente com o raciocínio dela, é verdade que a expressão TPM é relativamente recente para explicar o fenômeno e, de fato, veio do marketing da indústria farmacêutica associando a medicamentos ou absorventes. “Incomodada ficava sua avó”, apregoa um antigo comercial de TV, nos ensinando como, nos tempos atuais, devemos nos referir ao mesmo fenômeno físico. Só que ao mudar a nomenclatura do fenômeno, mudamos também nossa percepção sobre ele e, muitas vezes sem perceber, incorporamos valores que nos empurram na direção de um consumo questionável. É assim que TPM vira uma doença a ser tratada.

TPM é, portanto, a metáfora de uma situação contemporânea, à qual estão associados valores sociais importantes, como a independência da mulher, que não precisa mais se incomodar, que pode trabalhar e ocupar seu novo lugar na sociedade etc e tal. Mas esse novo lugar da mulher está associado igualmente a um padrão de consumo. Ou seja, com a "liberdade", a "modernidade" etc. vem também o uso de produtos associados, pelo marketing, a essas noções. A liberdade, assim, vira mercado.

Coser acerta em cheio ao se referir a uma nova metáfora no mundo psi: “a categoria ‘transtornos comportamentais’, genérica o suficiente para não ter limites, porém específica o bastante para indicar um problema a ser resolvido.” Um problema a ser resolvido via medicamentos sofisticados, que insinuam que podem “curar” uma perturbação mental simplesmente ajustando os níveis de serotonina. Coser chama a atenção também para a disseminação do uso desses medicamentos, indicados inclusive por não especialistas e sem acompanhamento clínico.

Antes que me joguem pedra, esclareço: não sou contra o uso de medicamentos. E acho inclusive que, em alguns casos, eles são mais do que necessários. Apenas chamo a atenção para como o marketing dessas indústrias tenta incutir nas nossas pobres almas certos valores. Muitas coisas são terapêuticas em determinados níveis. Ter um cachorro ou gato de estimação tem lá sua função terapêutica; seguir um culto; fazer ioga. Sou de um tempo em que a psicanálise e outras psicoterapias funcionavam muito precisamente para desatar nós que nenhum medicamento sozinho milagrosamente jamais o fará, independentemente dos comerciais na TV.

domingo, 5 de setembro de 2010

Mas o que faz o bom jornalismo, afinal?

Suzana Blass, do Sindicato dos Jornalistas do Rio, e Fernando Gabeira, no ato contra o fim do JB. Gabeira me disse: "O Rio precisa de mais vozes."

A reportagem sobre o fim do Jornal do Brasil na sua versão impressa, publicada no Globo na semana passada e reproduzida no post abaixo, me fez nergulhar num agudo exercício de reflexão sobre esse ofício, que vem se transformando à mesma proporção dialética que mudam a mídia e o jornalismo contemporâneo. O fato de orientar os estagiários da redação do Globo que chegam à editoria de economia também me dá elementos de observação sobre a nova geração de jornalistas e os ritos de interação no ambiente de trabalho, objeto da minha tese de doutorado em antropologia.

Não cabe aqui uma avaliação saudosista, que afirma que os rumos da profissão pioraram. Apenas verifico que o jornalismo que se faz hoje é outro, com características próprias muito distintas daquelas dos anos 80, quando me formei, ou, para analisar em termos de períodos, dos anos 50 ao início dos anos 90, quando o computador entrou na redação e se aposentaram a lauda jornalística e as máquinas de escrever. Mas há concretamente uma sensação de piora, inclusive entre as novas gerações que sequer viveram o auge do jornalismo heróico. Essa sensação vem, penso eu, de coisas concretas, como a baixa remuneração, o aumento da rotatividade de emprego no setor, isto é, da precarização do ofício, que inclusive deixou de ser reconhecido como tal pelo Supremo Tribunal Federal, que lhe negou a obrigatoriedade do diploma.

Ao mesmo tempo, as empresas de comunicação também vivem um processo incontrolável de transformação, sem saber bem para onde vai o negócio da comunicação. Elas não conseguem acompanhar a rápida evolução que novas tecnologias trazem ao setor, criando novas formas de fazer e viver o jornalismo. As empresas investem pesado em novas tecnologias, que, seis meses depois, já estão obsoletas, de modo que a sensação nas redações é de que se está sempre atrasado em relação à realidade. Enquanto isso, permanece o caráter ambíguo das empresas jornalísticas, como corporações que buscam o lucro de seus acionistas, mas que são igualmente instituições fundamentais para o exercício da democracia nas sociedades capitalistas. Esse caminhar entre o papel de empresa e o papel cívico impõe dilemas constantes.

Durante minha tese, tive acesso a pesquisas sociológicas sobre a profissão de jornalista interessantes. Uma delas, um artigo escrito pela antropóloga Alzira Alves de Abreu, enfocava as representações sociais de gerações distintas de jornalistas. Alzira entrevistou inúmeros jornalistas de redação e concluiu que a visão do ofício entre a geração mais velha, que ela chama de "boêmios" e "heróicos", é muito distinta da geração mais nova, que ela chama de "profissionais". Enquanto os primeiros viam a profissão com um olhar cívico, acreditando que seu trabalho era importante para, entre outras coisas, consolidar a democracia; os mais novos tinham uma preocupação mais profissional, acreditando que o papel do ofício é informar, e ponto final. Enquanto os primeiros faziam do bar uma extensão da redação, os segundo se preocupavam mais em avançar na hierarquia interna dos cargos e salários, daí a classificação que ela faz entre boêmios e profissionais, embora haja exceções dos dois lados, evidentemente.

A boemia e, sobretudo, os botequins tinham de fato um papel importantíssimo para o desempenho do ofício, quando comecei. Isso podia ser medido inclusive pelo alto número de profissionais com problemas de alcoolismo. Os botecos e restaurantes que fechavam mais tarde eram uma espécie de válvula de escape, após a dura jornada na redação. Era ali que se comentava, não sem brigas e polêmicas, as edições que iriam para a rua no dia seguinte. Era ali que se desabafava os percalços do ofício e das empresas, reclamando da aspereza dos chefes, da baixa remuneração, entre outros assuntos recorrentes. Nos bares, os coleguinhas de diferentes jornais e assessores de imprensa se encontravam e a impressão que se tinha era que o trabalho seguia ali. E de fato seguia.

Quantas discussões intermináveis no Capela, no Cervantes, no Vermelinho, no Fiorentina, Luna's Bar, Alvaro's, Degrau, Jobi, Jangadeiros e por aí vai... No Lamas, lá pelas duas da manhã, entrava o vendedor com a edição do Dia, que acabara de rodar. Depois chegavam o Globo e o JB. A partir daí verificava-se quem havia furado quem, discutiam-se abordagens, enfoques etc.

O timing do ofício também era outro. O pessoal do fechamento (editores, redatores, secretários, entre outros) terminava seu trabalho na madrugada. Era preciso fazer o acompanhamento gráfico, verificar se as fotos e as legendas batiam corretamente, por exemplo. Quando tudo estava certo, dava-se o sinal verde para as oficinas rodarem o jornal. E quando algo extraordinário acontecia nesse momento, o grito traficional, que virou jargão: "Parem as máquinas!".

Essa relação com a gráfica, a parte de oficina, fabril mesmo, fordista, com suas imensas rotativas, dava um tom industrial ao ofício, que hoje em dia mal se percebe, já que tudo é feito eletronicamente, digitalmente. Era a gráfica que ditava o ritmo do trabalho na redação, estabelecendo os deadlines de fechamento, para que o jornal rodasse a tempo hábil de ser distribuído em todo o país. O nível de tensão crescia proporcionalmente à medida que se aproximavam os prazos de fechamento. Atrasar era impensável.

Daí a invenção do texto jornalístico com o lide e a chamada pirâmide invertida. A informação mais importante era colocada logo no início do texto, de preferência no primeiro parágrafo, e se escrevia em ordem decrescente de importância. Desse modo, se o prazo apertasse e a matéria estivesse estourando o tamanho projetado pelo diagramador para a página, o redator sabia que podia cortar o texto pelo pé, pois, teoricamente, os fatos menos relevantes estavam narrados ali.

Era uma época em que as reportagens eram redigidas em laudas, batidas em máquinas de escrever Hemington, com cópia carbomo. Verificar a grafia de um nome ou a data de um evento histórico exigia trabalho na sala de pesquisa. As consultas a manuais, enciclopédias, dicionários e vocabulários ortográficos eram penosas, pois obrigavam a interromper o trabalho de redação. Era uma época também que havia uma exigência de qualidade muito cruel. Um erro de português podia significar a demissão do autor, como tantas vezes ocorreu. Por isso, todos se esmeravam em apurar bem e escrever corretamente, apesar dos prazos exíguos. Não havia recursos como Google ou Wikipedia num terminal de computador de última geração. Hoje, por exemplo, faço a pauta de assuntos internacionais de economia no Globo com outros dois colegas redatores, compartilhando um arquivo comum no Google Docs, o que nos permite atualizar a pauta simultaneamente.

Assim, o bar deixou de ter esse papel tão visceralmente ligado à redação. Entrevisto jovens que chegam ao Globo e nenhum deles freqüenta o botequim "profissionalmente". Suas fontes estão em outros lugares e as polêmicas e debates sobre as edições são preferencialmente feitas mediante redes sociais como o Facebook e o Twitter. Em vez da discussão acalorada, entre tulipas e pilhas de bolachas de chope, emoticons e outros recursos gráficos para expressar o assombro ou o encantamento de um ofício que mudou radicalmente. Além do que, eles chegam à redação em idade muito inferior aos de minha geração. A média hoje dos estagiários é de 19-20 anos, enquanto que, nos anos, 80, era de 25 anos ou mais.

Se antes a edição ficava velha e embrulhava o peixe no dia seguinte, hoje a notícia envelhece a cada clicada na internet. Isso, evidentemente, transformou a forma de se fzer jornalismo e a qualidade final da notícia. Há uma profusão interminável de informações despejadas sobre o leitor/internauta. Desse modo, é preciso atualizar constantemente, praticamente em tempo real, os sites de informaçõess, as versões online dos jornais impressos etc. Junto ao texto, há hiperlinks para vídeos, áudios, fotos, infográficos etc., mas o tipo de apuração também se apressou, voltando-se para notas sociais sobre celebridades e temas mais sensacionalistas, capazes de atrair e prender a atenção dos leitores navegantes. E os jornais impressos em vez de se especializarem em reportagens, com medo do furo imposto pela concorrência, tentam correr atrás da informação mais quente possível, mesmo sabendo que será sempre uma edição gelada em comparação à versão online e digital.

Penso que seria o momento ideal para que os jornais impressos voltassem a fazer boas reportagens. Reportagens que, de tão raras hoje em dia, são sempre acrescidas de um adjetivo: reportagem especial, reportagem investigativa e por aí vai. Reportagem é reportagem, e ponto final. Uma boa apuração e um bom texto são suficientes para levar ao leitor uma boa história. E isso ainda é o que define, na essência, o jornalismo de ontem e de hoje.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A morte do Jornal do Brasil impresso

Amigos, reproduzo aqui a matéria sobre o fim do JB impresso, publicada ontem no Globo.





O adeus ao Jornal do Brasil: Após 119 anos, um dos diários mais importantes do país deixa de existir na sua versão em papel

Paulo Thiago de Mello

A partir desta quarta-feira, o Jornal do Brasil, fundado em 1891, deixa de circular na sua versão impressa. Aos leitores, restará apenas a opção da edição digital, via internet, mediante uma assinatura mensal de R$ 9,90.

Para a empresa que administra a publicação há nove anos, trata-se de um passo rumo ao futuro, mas para muitos profissionais de imprensa a iniciativa significa uma espécie de morte de um dos mais importantes jornais do país.

Fundado num 9 de abril, o JB marcou seu lugar na história dos grandes jornais como um precursor de inovações, como o uso de agências de notícias e o envio de correspondentes ao exterior.

Lançado menos de dois anos após a Proclamação da República, o JB foi identificado inicialmente como um jornal monarquista e, desde então, manteve uma intricada relação dialética com a vida republicana brasileira.

— Eu resumo a história do JB em dois períodos. Um século de glória e duas décadas de agonia — afirma Alberto Dines, do Observatório da Imprensa e ex-diretor de redação do JB, onde trabalhou de 1962 a 1973. — Era um jornal liberal no sentido de ser antimilitarista e, portanto, contrário à República, que nasceu pelas mãos de um golpe militar.

Fundado pelo jornalista Rodolfo Dantas, o Jornal do Brasil passou a ser comandado, na década de 20, pelo conde Ernesto Pereira Carneiro, que fez a transição de um diário popular para um jornal mais moderado e moderno. O JB teve entre seus profissionais nomes como os de Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Barbosa Lima Sobrinho, João Saldanha, Carlos Castello Branco, Otto Lara Resende e Ziraldo, entre tantos outros. Em 1954, após a morte do conde Pereira Carneiro, sua viúva, a condessa Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro, passou a dirigir o jornal. Anos mais tarde, passou o bastão ao genro Manuel Francisco do Nascimento Brito, eternizado como o "doutor Brito".

Entre as décadas de 50 e 80, viveu seu auge. A reforma gráfica de 1959, a cargo de Amílcar de Castro, introduziu novidades como diagramação vertical e eliminação de fios entre as colunas, que acabaram influenciando jornais dentro e fora do Brasil. No plano editorial, as mudanças foram realizadas pela equipe de Odylo Costa Filho, na qual estavam jovens jornalistas como Wilson Figueiredo, Carlos Lemos, Jânio de Freitas, entre outros. Os textos ficaram mais leves e foram criados suplementos, até então inexistentes na imprensa brasileira.

— Nos anos 60 e 70 ele revolucionou a imprensa brasileira, era o modelo a ser seguido, tanto gráfica como editorialmente — diz Orivaldo Perin, que entrou no JB como estagiário, onde trabalhou "três encarnações". — Sua importância estava mais no conteúdo que na tiragem. A venda média do jornal, mesmo nos áureos tempos, ficava entre os 100 mil e os 150 mil exemplares/dia, mas tudo o que publicava, repercutia.

— O JB também foi muito importante para O Globo. A concorrência entre os dois obrigou cada um a entrar na seara do outro, com bom jornalismo e conteúdo. Foi um dos momentos mais bonitos da história do jornalismo brasileiro. Quem ganhou foi o leitor — afirma Dines.

A família Nascimento Brito dirigiu o jornal por décadas e, após sucessivas crises, arrendou a marca para a Companhia Brasileira de Multimídia, do empresário Nelson Tanure, em 2001.

Nos anos do regime militar, o jornal teve um papel decisivo. Entrou para a história a primeira página de 14 de dezembro de 1968, no dia seguinte à decretação do Ato Institucional número 5 (AI-5) em que, no canto esquerdo, dizia: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Mínima 5 graus no Palácio Laranjeiras. Máxima 37 graus em Brasília". No entanto, já em crise, na década de 80, o jornal foi acusado de flertar com o malufismo.

A partir dos anos 90, o jornal teve altos e baixos na linha editoral e, em persistente crise financeira, foi entregue a Tanure, que adotou a versão berliner e transferiu a sede da Avenida Brasil 500 - onde estava desde 1973 - para o casarão da Avenida Paulo de Frontin. Nas últimas semanas, o prédio do Rio Comprido tem pendurada uma faixa de "aluga-se". Com uma dívida estimada em R$ 100 milhões, o jornal impresso ainda empregava cerca de 60 profissionais.
Em 2008, o JB - e a Gazeta Mercantil, que também desapareceu pelas mãos de Tanure — deixou de ser filiado ao IVC, o Instituto Verificador de Circulação (IVC) e, por isso, não há números precisos da sua tiragem recente.

— Ele (o JB) não morreu de repente. Veio morrendo aos poucos. Quando o jornal fez um século, já estava mal — afirma Alberto Dines, lembrando que o jornal cometeu erros políticos e econômicos.

Flávio Pinheiro, ex-editor-executivo do JB, emenda:

— O JB que morre hoje (ontem) nas bancas já estava inteiramente desfigurado. Irreconhecível na sua fisionomia e na sua alma — diz Pinheiro.

O colunista Ancelmo Gois, também ex-JB, concorda:

— O JB acabou faz tempo. Era um cadáver insepulto. Digo isso com tristeza. É difícil dizer quando exatamente o jornal acabou, mas, certamente, não foi agora. Em que pese o esforço quase heroico dos coleguinhas que estavam lá, o jornal já tinha perdido a alma.

— Não lamento agora o fim do JB. Já lamentei anos atrás. Não identificava no jornal que circulou até agora, e do qual me mantive assinante, o JB dos bons tempos — diz Artur Xexéo, que iniciou a carreira no JB.


Um passado que entrou para a história

Paulo Thiago de Mello (com colaboração de Bruno Rosa)

RIO - Impulsionado pelos bons ventos do pós-Guerra, o Brasil entrava nos anos 50 apostando na prosperidade. Nesse clima de euforia, os poetas concretos abalaram as estruturas da literatura, decretando o fim do poema, ao mesmo tempo em que soavam os primeiros acordes dissonantes da Bossa Nova. Nas telas, filmes do Cinema Novo. Nos anos 50, com Juscelino Kubitschek na Presidência, o Jornal do Brasil lançou o Suplemento Dominical (1956), criado pelo poeta Reynaldo Jardim e que se transformaria no embrião do futuro Caderno B, quatro anos depois. Além de Jardim, nomes como Ferreira Gullar, Mário Faustino, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Mário Pedrosa tiveram forte influência no Suplemento Dominical. Em 1959, fazia a sua reforma gráfica.

— O JB já chamava a atenção e prestígio intelectual, com o seu Suplemento Dominical, que trouxe uma nova noção estética concretista, misturando artes plásticas, literatura, ciência. No aspecto gráfico, Amílcar de Castro eliminou os fios, implantando a diagramação vertical e valorizando os espaços brancos das páginas — lembra Wilson Figueiredo, colunista do jornal.

No suplemento cultural, liberdade de estilos

De fato, mais uma vez o JB lançava moda. O Caderno B foi o primeiro suplemento exclusivamente voltado para assuntos culturais, de entretenimento e variedades, pondo o Rio numa caixa de ressonância nacional. Mas a inovação do Caderno B não se restringia à forma gráfica. Os repórteres e colaboradores do suplemento tinham liberdade estilística em suas narrativas, dispensando os padrões de objetividade do texto jornalístico. Um dos nomes de destaque era Wilson Coutinho, crítico de arte. Além disso, o caderno aceitava colaboração de escritores, artistas e intelectuais.

— A reforma de 59 foi a mais duradoura da imprensa brasileira. Inspirada em padrões estéticos criativos, como o concretismo, antecipou tendências. Uma revolução no design, que inspirou os jornais sem fios — afirma Alberto Dines, do Observatório da Imprensa e ex-diretor de redação do JB.

A diagramação ousada do JB tinha no Caderno B um de seus espaços privilegiados. Várias capas do suplemento entraram para a história do jornalismo brasileiro por seu arrojo. O destaque dado a fotos, ilustrações e infográficos, além da valorização de espaços em branco na página, realçava as reportagens.

Em entrevista ao Jornal da ABI, o jornalista Carlos Lemos, então na editoria de Esportes, lembra que foi o primeiro a retirar os fios da diagramação, ideia de Amílcar de Castro, mas que ainda não havia sido implementada:

"O Amílcar defendia tirar os fios que separavam as colunas do jornal. Foi a brecha que eu tive para imprimir minha mudança. Fui à oficina, pedi para aumentar a medida entre as colunas e tirar os fios, responsabilizando-me por qualquer problema que acontecesse."

A importância do JB não se restringiu ao Rio de Janeiro. Apesar da transferência da capital federal para Brasília, o Rio continuava dando o tom na vida cultural e política do país e o jornal era um veículo que formava opinião, sendo lido religiosamente pelas classes política e artística e a intelectualidade.

Perda de credibilidade foi o golpe de misericórdia

Flavio Pinheiro, ex-editor-executivo, lembra que o JB promoveu outras inovações na imprensa brasileira:

— Criou a primeira revista dominical, uma revista de programação de fim de semana, o caderno Idéias, o espaço para humor — enumera. O espaço dado à charge de Chico Caruso era um desses exemplos.

Mas, quando a capital fluminense entrou em processo de degradação, o JB, com problemas financeiros, acompanhou e também começou a perder prestígio, lembra Pinheiro:

— Quando, anos atrás, morreu o grande jornal, morreu mais um pouco a altivez republicana e a presunção cosmopolita do Rio.

— A importância do JB foi imensa. Contando só os anos do jornal que vivi ou conheci, de meados dos anos 50 e aos anos 90, acho que todo jornal no Brasil queria de certa maneira ser o JB. Mas isso passou há muito tempo. Ele é um jornal que se limitou a sobreviver nas últimas décadas. Cada vez que ele fazia um esforço para melhorar, ficava mais parecido com os outros jornais, porque sua fórmula original estava esquecida — afirma Marcos Sá Corrêa, ex-editor-chefe do Jornal do Brasil.

Para alguns profissionais, no entanto, a crise acabou por afetar o principal patrimônio do JB: a sua credibilidade.

— Antes da venda da empresa, mesmo com todos os problemas de gestão, o jornal tinha credibilidade, que sempre foi seu ativo mais precioso. Os novos donos não conseguiram ou não quiseram entender isso. A venda foi um golpe forte na credibilidade da marca, e depois dela a morte do jornal nas bancas tornou-se uma questão de tempo — diz Orivaldo Perin, ex-chefe de redação do jornal. — É uma morte ruim para todos, principalmente para os leitores. Em vez de fazer história, o JB vira história.


Livro e filme registram a história do JB

Paulo Thiago de Mello e Lucila de Beaurepaire

RIO - Certo dia, um graduado executivo do Jornal do Brasil telefonou para a redação de um iate em Angra dos Reis para dizer que o corpo de Ulisses Guimarães havia sido encontrado e que o JB deveria noticiar no segundo clichê da edição de domingo. O então secretário Roberto Pimentel Ferreira se negou a publicar a versão sem comprovação e foi aplaudido no dia seguinte. Mesma sorte não teve uma repórter "foca" da agência JB, que acatou o "furo" e perdeu o emprego. Essa é uma das histórias que Alfredo Herkenhoff, ex-secretário de redação, conta no livro Jornal do Brasil - Memória de um secretário - Pautas e fontes (edição do autor, 336 págs, R$ 70), lançado nesta terça-feira.

Herkenhoff reuniu relatos de colegas e casos que ele próprio testemunhou nos 20 anos que passou no jornal, em duas fases distintas. A ex-editora do Caderno B Regina Zappa e o fotógrafo Rogério Reis, também um ex-JB, uniram-se ao diretor Sergio Sbragia para fazer um documentário sobre o jornal, batizado de Av. Brasil, 500, em referência à sede que abrigou a redação por três décadas.

— Chamamos ex-funcionários do JB para um encontro na sede destruída. A convocação por e-mail logo formou uma rede, ganhando contornos de um movimento — explica Regina. — No dia da gravação, apareceram mais de cem pessoas.

Herkenhoff coleciona há décadas histórias do JB:

— O livro é uma imitação do jornal, desde sua capa, com o famoso "L" dos classificados.

Regina, por sua vez, lembra da filmagem com emoção:

— Foi emocionante. Um sábado nublado, frio, o que contribuiu para um certo clima de melancolia. Algumas pessoas choraram ao subir as escadas no escuro — diz ela. — Mas não foi apenas tristeza. As pessoas lembraram histórias engraçadas.

Ana Arruda Callado, uma das primeiras mulheres na redação do JB, lembra das discussões intermináveis sobre o jornal, após o fechamento, em algum bar ou restaurante.

— Era um jornal que não poderia existir nos tempos de hoje — diz Ana.

A fotografia do JB também fez escola, arrebatando sucessivos prêmios. Nomes como Alberto Ferreira, que imortalizou uma bicicleta de Pelé; os inúmeros cliques de Evandro Teixeira e o célebre Erno Schneider, que traduziu como ninguém a indecisão do presidente Jânio Quadros, em 1961, com os pés enviesados e arrebatou o Esso em 1962.