sábado, 11 de setembro de 2010

Todos juntos e misturados


Ao deitar os olhos sobre o Prosa & Verso de hoje, me deparei com uma resenha do meu querido Luiz Antonio Simas, a quem acompanho pelo blog Histórias Brasileiras, acessível na lista de links deste Pendura Essa, sobre o mais recente livro do grande Nei Lopes, Oiobomé, a utopia de uma nação (Ed. Agir, 224 pgs, R$ 44,90). Simas é apontado no rodapé da resenha como professor de história, mas isso diz pouco do que ele realmente é. Na verdade, embora sua fama como professor que domina o ofício e ensina com paixão seja algo bastante disseminada, sobretudo entre estudantes, meu amigo é antes de tudo um humanista de primeira estirpe e é isso que lhe confere autoridade para discorrer sobre qualquer coisa. Some-se a isso, seu estilo de crônica, suave e preciso. Ecos de suas aulas antológicas me chegam por variados interlocutores, como a sobrinha de uma ex-namorada. Acho que foi o Eduardo Goldenberg, do blog Buteco do Edu (aqui), que se referiu certa vez a Simas como mestre zen. E é verdade, mas um mestre zen brasileiro com nosso orientallismo miscigenado, que tem em Dorival Caymmi a versão mais completa.

Sobre o livro de Nei, Simas apresenta, sob o título Um épico da mestiçagem brasileira, o mais recente esforço hercúleo do escritor/compositor de chamar a atenção, de forma extremamente erudita, para os aspectos africanos de nossa cultura. O autor inventa uma nação, Oiobomé, construída por um ex-escravo e composta por africanos ameríndios. E Simas conclui, muito a seu jeito, afirmando que sai da leitura com duas convicções: a primeira é que a saga de Oiobomé daria um belo enredo de escola de samba, se as escolas de samba ainda estivessem interessadas em enredos grandiosos e culturais. A segunda convicção é, e eu diria mais importante, é a de Nei Lopes escreveu mais um livro fundamental “para que o Brasil se reconheça e reconheça seu povo”.

Nei Lopes é um intelectual que ainda não foi devidamente reconhecido pela academia, sobretudo pela área de história social. Ele me lembra o caso de Nunes Pereira, autor de Moronguetá, o decamerão indígena, um trabalho etnológico de recolhimento de lendas e mitos sexuais dos indígenas no médio Amazonas, sobretudo os maués. Nunes Pereira, tendo sido um dos melhores do ramo, nunca foi reconhecido como antropólogo.

Mas quero aproveitar a deixa do livro de Nei para dar um pitaco sobre um assunto que, em geral, evito, já que vem cercado de controvérsia enfurecida, o que dilui muito a possibilidade de um diálogo honesto e profícuo. Trata-se da questão das cotas raciais. E para começo de conversa coloco minha posição sobre esse tema: sou a favor de cotas sociais, não raciais. Acho que os caboclos ribeirinhos da Amazônia, os nordestinos pobres de pele morena clara, ou camponeses do sul do país, branquelos, também devem ter acesso à universidade, pois a grande barreira hoje é social, não racial. Agora, dito isto, não há como deixar de reconhecer que racismo e preconceito racial são pragas presentes na nossa sociedade hoje.

Para mim, o problema principal das cotas raciais é que elas instalam uma divisão por raça que segrega a nossa sociedade e isso, a meu ver, se deve à influência do movimento negro americano, que foi incorporada sem críticas por alguns dos grupos que compõem o movimento negro no Brasil. Sucede que os EUA são um país multiculturalista e o Brasil, um país sincrético, mestiço. Isso significa que lá existem muitos grupos étnicos ocupando seus lugares isolados na sociedade e a disputa política, econômica e social se dá na arena pública, que deve ser igualitária, embora nem sempre funcione assim. Aqui, há miscigenação, mestiçagem. Somos todos, na maioria, meio brancos, meio negros, meio índios, meio árabes meio judeus, e por aí vai, “todos juntos e misturados”, como dizia Jean Charles de Menezes, um mestiço brasileiro assassinado pela polícia britânica ao ser confundido com um fundamentalista islâmico. O problema no Brasil, penso eu, é a esfera pública, tremendamente desigual e corrupta, uma desigualdade mais social do que qualquer outra coisa e uma corrupção atávica às instituições. E acho que, sendo um país mestiço, o combate à desigualdade deve ser sobretudo pelo seu aspecto social e não étnico, privilegiando um grupo e discriminado outro.

Não concordo nem mesmo com o argumento, que ouvi de alguns, segundo o qual a cota racial pelo menos seria uma forma de reparar uma dívida histórica com os negros, que sofreram com a escravidão. Acho que seria tentar amenizar um erro com outro. Mas, sobretudo, a questão que mais me move é que ao adotar o raciocínio racial, dão-se as costas para a potencialidade que uma nação mestiça tem no mundo contemporâneo. Vamos mais uma vez imitar os americanos, jogar fora o somos e instaurar a divisão de raças e etnias com argumentos parecidos aos de Arthur de Gobineau, um dos pais das teorias racistas, que escreveu sobre sobre a pureza das raças e os defeitos “genéticos” da mestiçagem, dividindo, como os americanos, o mundo entre brancos (exclusivamente anglo-saxões e arianos) e negros (o resto). Um perigo.

O próprio Nei Lopes, que, pelo que sei, defende a política de cotas raciais, com sua pesquisa incansável sobre a cultura africana no Brasil dá argumentos para um discurso mestiço. Acho que a melhor forma de combater o racismo, a discriminação racial e valorizar aquilo que nos torna uma nação, é estimular trabalhos como os de Nei Lopes e Nunes Pereira. Com exceção da contribuição européia, há muito pouco material sobre influências culturais que foram apropriadas, ou como preferiria Oswald de Andrade, deglutidas pelos brasileiros e, incorporadas à nossa realidade. Gostei da resenha de Simas porque ele teve a sensibilidade de destacar essa importância do Nei.

Nenhum comentário: