quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Inflação de botequim

Capela: preços inflacionados pelo sucesso

Tá legal, eu aceito o argumento, mas não meu velho pé-sujo tanto assim. Olha que a rapaziada está sentido a falta de um chope barato num botequim. É isso mesmo, amigos, os preços dos botequins estouraram numa espiral inflacionária que nenhum fundamento econômico pode explicar. Nada justifica uma conta de mais de R$ 100 após uma hora e meia no Capela ou no Lamas. Sobretudo quando ainda se encontram pés-sujos sensacionais como o Bar da Adelina, onde um PF e duas latinhas de cerveja saem por cerca de por R$ 15, depois de duas horas de conversa jogada fora, ouvindo um sambinha ao vivo.

Em parte, acho que essa alta maluca veio da valorização, digamos, social do botequim na cidade. Toda a onda que o Rio Botequim detonou, ao mostrar que o botequim não era apenas o lugar do alcoólatra e do vagabundo, mas igualmente uma insituição cultural representativa da boemia carioca, levou para o boteco hordas de consumidores que não eram aqueles velhos boêmios de outrora, tipo Jaguar e a turma do Pasquim, ou a malandragem de Vila Isabel e a turma do samba. De repente, os bares se viram invadidos por clientes "classe A", que exigem banheiro limpo e serviço à paulista. Tudo impecável.

Passados 20 anos desse processo, veio a conta. Qualquer boteco um pouco mais arrumadinho cobra os olhos da cara, nega a saideira e tem maitre para discutir com os clientes. Pendurar? Nem pensar. Outro dia, num encontro de jornalistas no Joaquina, mais de 15 coleguinhas, a conta deu uns R$ 800, e ainda assim os caras negaram uma rodada de cortesia de saideira. Taí um pé-limpo que, apesar do bom chope, evito. No Odorico, também num encontro de colegas de jornal, foi uma luta para pagar com cheque a conta. Cheque especial, vejam bem. Risquei do caderninho. Prefiro beber meu chope na Adega da Velha, onde o cardápio tem duas opções: cara e barata. E, numa emergência, dá pra gritar:

— Pendura essa, Chico!

Pendurar é vender a crédito. E crédito, o próprio nome diz, é acreditar. Acreditar em alguém, não no cliente, mas no freguês, aquele assíduo, de confiança. É uma relação de confiança que só pode existir num comércio de proximidade. Proximidade física e simbólica. É preciso estar afetivamente perto. Comerciante e cliente. É preciso conhecer o esforço do Chico, saber que ele tem, além do filho que trabalha lá, mulher e filha. Saber os problemas do dia-a-dia do negócio. Os fiscais que não dão trégua, o cliente que está devendo há mais de três meses e por aí vai.

Bar do Serafim: o que acontecerá com ele?

Será sinal dos tempos? O Juca se foi e o Bar do Serafim é agora uma incógnita. A Adega Pérola ainda está lá após a morte do dono, mas até quando? E os que sobraram estão metendo a mão, sem justificativa. Jobi, dos meus queridos Narciso e Manuel, sempre cobrou caro; o Bracarense também. Mas hoje, quando passo perto, o bolso dói e eu dobro a esquina, para não me sentir tentado. Pois ninguém, de boa cepa, bebe um ou dois chopes apenas, não é mesmo?

Segundo os economistas, trata-se da velha lei da oferta e demanda. Com tanta publicidade e marketing, a procura saltou e até patricinha hoje freqüenta botequim ou pseudobotequim. O preço tem que subir. Pois essa clientela nova é inclusive uma clientela com dinheiro no banco. Mas acho também que esse movimento está começando a chegar perto da saturação. Tenho visto o salão do Lamas, por exemplo, vazio e não creio que seja apenas culpa da lei seca ou da proibição de fumar em local fechado. Um bife simples, isto é, sem acompanhamento, cujo tamanho hoje é um terço do que era nos bons tempos, está em promoção: R$ 44. O preço oficial é R$ 10 mais caro. O Capela também tem andado às moscas.


Aproveito para acrescentar uma foto do Bar da Adelina

Enquanto isso, proliferam pequenas vans vendendo sopa de ervilha e churrasquinhos de gato. A rapaziada se alimenta nesses "podrões", como dizem os paulistas, e depois vão para o bar da moda, beber uma cervejinha. Estratégias de sobrevivência nesses tempos de carestia boêmia.

6 comentários:

Eduardo Goldenberg disse...

Fizeram as unhas do pé-sujo, não é, meu chapa? Passaram a cuidar mais do limão do mictório do que do limão da casa, não é? Passaram a achar bonito o pé-limpo, as franquias nojentas lideradas pelo compadre, não é, camarada? Passaram a dar palestras em restaurantes chiques sobre os butecos, não é? Passaram a idolatrar o ASTOR, a adular os lixos importados de São Paulo, não é? Passaram a elogiar a reforma dos banheiros para as meninas, não é verdade? Moacyr Luz, meu chapa, tem GIGANTESCA participação nesse movimento nefasto e pernicioso de assassinato dos botequins mais simples. Mas eu compreendo a omissão de seu nome - dele, é evidente - no texto que responsabiliza os assassinos de uma de nossas melhores tradições. Um abraço.

Unknown disse...

Paulo,

Acabei de ler Fordlândia: Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva que mostra o dilema que Ford sofreu tentando resgatar a vida em comunidades que existia antes do processo de industrialização por ele criado.

Seu relato me lembra o dele, de saudade de um tempo que você foi um dos principais protagonistas em sua extinção.

Abraços.

ipaco disse...

Querido Edu, como o Norton assinalou, também tenho culpa no cartório, se é que se pode culpar alguém nominalmente. Participei das primeiras edições do Rio Botequim e, naquele então, não tínhamos a menor idéia dos efeitos, digamos, colaterais do projeto, que também trouxe coisas boas ao valorizar, por exemplo, a criatividade gastronômica dessas casas comerciais, para ficar num só exemplo. Discordo do Moa nessa obsessão por banheiro limpo e a defesa do serviço, o que, a meu ver, retira o foco da principal qualidade do boteco carioca, que é a de ser um clube social informal do bairro, da esquina. Por isso tenho ido no Bar da Adelina e você, ao Rio Brasília, não é mesmo? Mas não responsabilizaria o Moa por esse processo, que é uma onda bem mais ampla, provocada por muitos fatores simultâneos.

ipaco disse...

Salve, Norton. Pois é, sinto saudade de um tipo de boemia que vai sumindo aos poucos do mapa do Rio. Mas também compreendo esses processos da cidade, que são incontroláveis. Ainda bem, que ainda existem pés-sujos por aí, como o Bar da Adelina... Abs.

Eduardo Goldenberg disse...

Paulo: modéstia à parte... desde a primeira edição do lixo que eu faço o alerta (ainda que isso tenha me rendido um fomento na fama de chato). O vade-mecum de otário, como a ele se refere o Szegeri, é, desde o início, um instrumento da destruição do botequim mais vagabundo que o Moacyr canta por aí enquanto o apunhala pelas costas em busca de holofote. Compreendo, de novo, o afastamento de sua responsabilidade por conta do afeto que une vocês dois. Mas ele é, sim - queiram ou não - uma das mais altas vozes em prol do lixo que assassina, aos poucos, os butecos mais autênticos da cidade. Um abraço.

jb disse...

meus caros,

paulistaníssimo que sou, adoro minha cidade, que tem algumas coisas boas, e botequins não estão entre elas.

com exceção de dois ou três endereços que confirmam essa regra, não temos nada além de endereços metidos a besta que servem comida e bebida ruins por um preço estratosférico.

e me envergonha essa subcultura ser exportada para o rio de janeiro, que junto com belo horizonte, tem os grandes botequins brasileiros.

quanto ao moacyr luz, esse que já foi frequentador dos "botequins mais vagabundos" e hoje ostenta parcerias comerciais pra lá de suspeitas, que inclusive se recusa a comentar, em uma atitude hipócrita e arbitrária, é claro que ele tem MUITA culpa no cartório, em minha opinião, já que ele defende e incentiva tudo que o belo texto do post condena, de maneira direta ou indireta.

abraços!