sábado, 25 de agosto de 2012

Entre folhas

As espessuras da memória variam com os dias que escorrem por mim. Mormaço. Por todos os cantos se espalha a sensação daquele momento preciso, que o tempo desfez na poeira parada, suspensa. Terra ensolarada repartida em raios diagonais, entre folhas. Cidade fantasma, Minas afora, Goiás adentro. Terrosa. Cruzamento de caminhos. Sertão. Mas de algum modo, por uma luz, um cheiro, uma intuição, reencontro você nos interstícios dos instantes. Arrepio. Um fluxo fora da normalidade, um presságio. Assombro. Sempre um zás. Inapreensível exceto na falta. Como a fenda por onde me engole. Memória do que foi sem ter sido. É no hiato dos instantes que a sinto. Desencarnada. E, no entanto, se materializa e se instala no nervo ótico. Parasita. E o mundo então ganha cores e meus pés seguem cegos. Veredas..E deixo o rio me levar, a cada novo instante que se repete incessante.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Amor e saudade numa narrativa beat


Tenho uma amiga que se diz Camaleoa, mas eu a vejo uma mariposa, volateando pelo mundo, perturbando meu sono com seus contos e poemas. Autorretratos de deusa que me seduzem, sobretudo à noite. Vejo seu sexo carnudo, ela dando de bruços. Morena de curvas e segredos. Minha Camaleoa é andarilha, segue pelo mundo, solta, e eu a sigo pelos mapas, no conforto da poltrona. Mato Grosso, São Paulo, Porto Alegre, Paris... e todos lugares improváveis à beira da estrada. Minha beatnik tem o olhar gonzo. Seu texto se abre ao horizonte e ela nomeia as coisas com seus nomes próprios. Evita os apelidos, os eufemismos burgueses e respeitosos. Ela, por exemplo, não escreveria “seu sexo carnudo”, como fiz acima, puritano e envergonhado. Ela diria apenas “boceta”, que por si só já contém na densidade certa a imagem dos lábios carnudos. Mas sua prosa é coisa fina e lírica na aspereza. Na sua poesia, lemos “bo-ce-ta”, com as sílabas bem faladas, quase babadas, intumescidas, úmidas. Dá para sentir o gozo em sua narrativa. Eu a amo profundamente, e nem nos conhecemos, olhos nos olhos, abraço apertado. Um cheiro no cangote. Camaleoa é um ser literário de carne e osso ou talvez uma entidade patafísica que às vezes se incorpora numa tal Cristina Livramento, quando se predispõe a coisas mundanas, como escrever ou trepar. Um dia quase nos conhecemos. Uma de suas estradas passou pela Zona Sul do Rio, mas eu não estava. Desincronizamos. Que pena. Mas tudo bem. Acompanho sua trajetória e ela me inunda de alegria, quando me escreve cartas, como antigamente se fazia, e as manda pelo correio, com seus minilivros, jornais de prosa & poesia. Me apresenta poetas e escritores dos cantos onde pousa. E agora acaba de me enviar seu livro São Paulo & Notas cinzentas de amor e saudade. Uma narrativa densa, uma prosa poética, um texto raro num momento em que muitos "jovens escritores" parecem presos ao sortilégio do enredo, incapazes de inventar linguagens. Li seu livro no mesmo dia, de um gole só. Mas hoje, acordei sereno, fiz um café forte, como ela gosta, deixei o aroma impregnar a casa vazia, e estou relendo, na calma, na luz da manhã, degustando meu café e poesia. Os textos que falam de saudade só podem ser escritos num idioma íntimo, que se abre ao leitor na mesma intensidade com que ele é capaz de sentir a falta, a ausência, o oco, aquilo tudo que, não existindo, nos constitui. Um beijo, Camaleoa. E obrigado pela saudade do nosso encontro que não ocorreu..

sábado, 11 de agosto de 2012

Identidade, boemia e botequim

Amigos, reproduzo abaixo um artigo publicado na edição de hoje do caderno literário do Globo. O Prosa & Verso, após o redesenho do jornal, passou a se chamar apenas Prosa. A última página, porém, ganhou o nome de Verso, onde, com seu formato fixo, apresentará sempre artigos que coloquem em evidência o contraste de ideias. A foto é de meu mano Custódio Coimbra, um belo retrato da Casa da Cachaça, na Lapa. O Custódio tem de fato alma de gato. Toda vez que ele vai fotografar um botequim — e em nossa história profissional foram centenas deles desde os primórdios do Rio Botequim à redação do Globo  — os gatos aparecem. É assomborsamente sobrenatural.



O pé-sujo recusa a saideira
Paulo Thiago de Mello

Em mais um capítulo na história de transformações dos botequins cariocas, boemia da cidade tem hoje múltiplos espaços de representação

Em um debate sobre a língua portuguesa, no contexto da unificação ortográfica, Mia Couto afirmou que “as identidades são transitórias e precárias. O problema é que elas são vividas como definitivas e eternas”. Os sucessivos ciclos de desenvolvimento urbano do Rio dão pertinência à afirmação do escritor moçambicano. Variados sonhos de cidade e ideais de civilização se chocam na arena pública, entre forças que buscam renovação e outras que defendem a preservação de patrimônios intangíveis. A cidade, como a língua, se transforma invariavelmente, o dia a dia muda e, com ele, as identidades urbanas. Mas como estas são vividas como absolutas nem sempre os processos são perceptíveis.

Observe-se o exemplo do botequim. Surgido na belle époque carioca, no início do século XX, quando o Rio se transformava em centro cosmopolita, esse tipo de comércio, oriundo das boticas e armazéns, funcionava como um refúgio para a massa operária, efetiva ou potencial, que se aglomerava na cidade em busca de oportunidade. Era o tempo do triunfo do racionalismo urbano, baseado no modernismo de Le Corbusier, e tendo como modelo a Paris do Barão Haussmann. O Rio industrializava-se e precisava de mão de obra qualificada.

Nesse contexto, o botequim rapidamente passou a ser visto como um desvio no caminho entre o lar e o trabalho. Nele, o trabalhador escapava da rígida hierarquia das fábricas, com seus chefes, capatazes, gerentes e diretores, e também de suas responsabilidades como provedor do lar. Muitas vezes, o dinheiro da feira ficava no balcão da taverna, para desespero da mulher. As instituições logo trataram de enfrentar o assunto, criminalizando o ócio e a malandragem. A igreja condenava moralmente; a medicina alertava para o alcoolismo como doença social; e a polícia reprimia.

Mas, ao mesmo tempo, ali era um dos poucos espaços onde a classe trabalhadora e a população pobre podiam estabelecer relações menos desiguais, que fugiam à rígida e excludente hierarquia social. Afirmava-se ali um sentido de boemia que logo atrairia segmentos das camadas médias da população. Assim, o botequim passaria a ser não só lugar de malandros, ociosos e alcoólicos, mas também de sambistas, poetas, jornalistas, entre outros. Surgia uma outra identidade para o botequim, como espaço de “liberdade”, embora cheio de regras e etiquetas, e de expressão cultural.

Na segunda metade da década de 1990, o ex-prefeito Luiz Paulo Conde lançou uma série de livros para enaltecer instituições vistas por ele como patrimônios culturais do Rio. Lançou edições sobre igrejas e sebos, um catálogo de estilos arquitetônicos da cidade e um guia de botequins. Os três primeiros desapareceram em solenidades e salamaleques palacianos. O último surpreendeu pela repercussão. O “Rio Botequim”, ao tirar o bar das esquinas obscuras e páginas policiais dos jornais, lançou luz sobre a importância cultural desses estabelecimentos para certa identidade carioca.

A partir de então, a ideia positiva do botequim atenuou a má fama do bar como espaço de desvio, ainda que esta representação perdure. Os jornais criaram colunas especializadas; chefs renomados passaram a valorizar a gastronomia popular dessas casas; surgiram especialistas no assunto; criaram-se concursos de melhores botequins, garçons e chope; e o tema até virou assunto acadêmico, com monografias em várias disciplinas.

Mas talvez o sinal mais contundente desse processo tenha sido a transformação do bar propriamente dito, por meio de uma profissionalização do serviço. As empresas familiares dos velhos botequins estão sendo substituídas por sócios investidores, que contratam chefs, gerentes, relações públicas e assessores de imprensa, e apostam no ramo em meio à onda de valorização do botequim. Nos últimos anos, surgiram redes e bares modernos, que nada têm a ver com os botequins originais, mas que evocam esses estabelecimentos para vender uma ideia de legitimidade boêmia.

Esse movimento assombra boêmios identificados com a velha tradição do botequim, que veem tal identidade ameaçada. Para estes, no botequim carioca, o serviço é secundário. O importante é seu caráter de clube social da vizinhança, onde funciona como ponto de encontro e de sociabilidade. Mais relevante do que o menu e a carta de cervejas é a relação entre freguesia, garçons e donos de botecos. Esses guardiões da tradição resistem contra os novos usos do bar, e se apegam intransigentemente aos sinais físicos e simbólicos da identidade original do velho botequim, como o balcão, o ovo colorido e uma boa conversa fiada.

Como percebeu Mia Couto, há um tanto de fetichismo em todas essas identidades. E como são vividas como se parte da nossa existência estivesse em jogo, é preciso brigar por elas. Enquanto isso, a vida segue, e o que se vê é que a boemia do Rio hoje tem múltiplos espaços de representação. E, por enquanto, o velho pé-sujo e o novo boteco convivem na cidade.