domingo, 30 de setembro de 2012

Mulheres naturais e mulheres anti-idade

Outro dia, sem querer causei reboliço numa roda de amigos, a maioria mulheres de gerações distintas, ao expressar meu apreço por uma mulher que não se depila. O ar chegou a ficar tenso, após o silêncio que se seguiu à afirmação, aparentemente, tão descabida. Aquela situação me fez lembrar outra cena, em que o reboliço foi meu. Uma amiga paulistana me contou, numa divertida discussão em Paris, que havia feito um tratamento a laser para que nunca mais crescessem pelos no púbis. Estávamos num café em frente ao mercado d’Aligre. Eu, ela e outra amiga, esta carioquíssima, que apoiou a companheira contra meus argumentos e espanto. Ignorante do mundo cosmético que vivemos, eu nem sabia que havia uma possibilidade tão radical de eliminar, de uma vez por todas, os pelos da xoxota.

Na conversa, argumentei que a mulher careca era algo como uma espécie de perversão ou brincadeira que fazíamos na minha geração para apimentar a transa (ainda se fala transa?). Era algo como a lingerie preta ou velas ou qualquer outra coisa fora do ordinário na hora do sexo. De repente, aquela sua mulher, ao tirar a roupa, descortinava uma vulva careca e era uma alegra inesperada. Mas, depois de um tempo, a fantasia perdia o sortilégio e parecia que se estava trepando com uma menina em vez de uma mulher. Ou talvez nossas índias, com suas “vergonhas saradinhas”, que tanto assombraram o padre Antonio Vieira.

Bem, mas a conversa seguiu no café, regada por um chope Leffe (fazia calor e o sábado era de sol), e a veemência de nossa discussão cresceu à mesma proporção de nosso entusiasmo pelo assunto, ainda bem que em bom português. Embora desconfie que as pessoas ao redor soubessem do que falávamos. De qualquer modo, cheguei a ficar indignado quando ambas associaram os pelos à falta de higiene. Que elas optem por raspar suas partes íntimas vá lá; mas que condenem quem não o faz ao papel de irresponsáveis e insalubres, é demais. Imediatamente baixou o antropólogo. Me lembrei do livro de Mary Douglas chamado Pureza e perigo, em que ela trata comparativamente dessas noções de pureza e impureza em várias culturas e sociedades. Nada como um bom relativismo para refrescar o calor das afirmações.

Como se trata de uma noção fortemente associada à identidade pessoal e social de cada um, pureza e impureza têm uma força extraordinária, mas são, como diria Mia Couto, noções ou representações transitórias e precárias. Estão aí os pelos pubianos que não me deixam mentir: tão abundantes no fim do século passado, eles hoje se transformaram em desvio e sujeira. Na verdade, até a forma de gemer de prazer mudou, mas isso é outro longo assunto.

Coincidentemente, a revista dominical do Globo — que na edição anterior chocou seus leitores ao expor na capa uma bela imagem do “ruivo, raro isóscele perfeito” (c.f. Manuel Bandeira), devidamente guarnecido de uma frondosa floresta — traz hoje uma matéria, de minha colega Joana Dale, sobre quatro mulheres de gerações distintas que têm em comum o fato de não aparentarem a idade que de fato têm. A reportagem inventa uma nova categoria social: a mulher anti-idade. Em resumo, trata-se de mulheres que buscam um equilíbrio, desfazendo os excessos de certos grupos de mulheres, que fizeram a alegria de cirurgiões plásticos, levantando aqui, reduzindo ou ampliando ali, inclusive adolescentes botando peitos e coisa e tal.


Não que elas não mais recorram a eles hoje em dia, mas o fazem, segundo a reportagem, de forma mais comedida e, o que é mais importante, sem ir contra a natureza do próprio corpo. Ou seja, nada de botox em excesso para “parecer uma Barbie” ou arrebitar o nariz adunco. Gastando até R$ 2 mil por mês (e, portanto, também estamos falando exclusivamente de mulheres de classe média ou alta) com sua aparência/identidade, elas entram em dietas inteligentes, tomam sucos energéticos, aderem à medicina cosmética associada a terapias alternativas e coisa e tal, com a filosofia de que é possível atenuar o envelhecimento sem maltratar muito o corpo.

Mas o interessante é que Joana abre a reportagem falando da conversa entre as quatro personagens, quando foram reunidas para fazer a foto que ilustra a história. O assunto flui de cinema a livro, passando por novela e outros temas, que funcionam como um indicador de pertencimento social. “As quatro falam a mesma língua”, diz Joana na reportagem, para concluir: “mostrando que não há mais fronteiras entre as gerações.”

Aqui, correndo o risco de generalizar, eu vejo um elemento que distingue nossa cultura da europeia ou norte-americana. Nós somos muito mais coletivos do que individualistas no sentido do consumo e do comportamento público, da praia, da rua, do verão etc. Lemos os mesmo livros, vemos os mesmos filmes e compartilhamos os mesmos dramas, como envelhecimento e coisa e tal. Isso, obviamente, tem aspectos positivos e negativos. Mas me permite entender porque os pentelhos, antes parte integrante da anatomia cultural, uma vez banidos, ou seja, incorporados à categoria do impuro, se tornaram um “problema” a ser eliminado. Mesmo quem hoje resiste à pressão social para raspá-los, o admite apenas em voz baixa, quase com vergonha.

No Brasil, somos uma aldeia, onde compartilhamos uma cultura que se impõe mais pelo coletivo do que pelo individualismo. Uma cultura que, entre outras exigências, vem demandando que as mulheres tenham as “vergonhas saradinhas”, para voltar ao padre Vieira. E essas exigências e demandas são incorporadas inconscientemente e rapidamente naturalizadas, isto é, passam a valer como uma verdade absoluta, como se fossem uma coisa “natural”, da natureza humana. É como se raspar os pelos que nascem no corpo a partir da puberdade marcasse uma passagem simbólica, do lado animal para o humano, do impuro para o puro, do sujo para o limpo.

Mesmo que se trate de uma decisão individual, é inegável que há uma pressão coletiva. Embora, ainda bem, haja inúmeras exceções por aí, que confrontam essa, digamos, ordem social. Mas tolerando alguns exageros generalizantes e reducionistas, tenho a impressão que se você quer pertencer ou simplesmente não sofrer as sanções explícitas ou simbólicas no Brasil, é melhor se integrar às coisas todas que compõem essa ordem coletiva. Saber, por exemplo, quem são os personagens da novela, ou ter lido o último livro ou visto o último filme sobre o qual todos estão falando. E, é claro, ter o corpo adequado àquilo que a ordem determina como certo. É uma postura coletiva que tem a ver com uma imagem projetada de mulher, sem idade, pura (moral e higienicamente), sensual, maternal etc. e tal; e de homem, forte, inteligente, agora com um pouco mais de sensibilidade, e sei lá mais o quê.

Na Europa e nos Estados Unidos, apesar de toda a futilidade e as modas imperiais, vi mais mulheres do que no Brasil que são abertamente contra essas “imposições” (da indústria cultural, da publicidade, do jornalismo, dos vizinhos etc.) de uma beleza eternamente jovem e saudável, que deve compor a mulher ideal. Elas odeiam papos como “relógio biológico”, “TPM” e que tais.

Há, por exemplo, uma modelo, rejeitada por agências como Ford, que é hoje extremamente requisitada por fotógrafos de renome. Ela tem uma beleza absolutamente rústica, tipo nariz grosso, e embora seja magra, não é cadavérica. As curvas estão todas lá. Os pelos também, inclusive debaixo do braço, para horror de minha amigas. No entanto, é uma mulher de uma sensualidade irresistível. Seu nome é Nettie Harris e ela tem um blog, no qual posta suas fotos (e de onde tirei as fotos que ilustram este post). Vale a pena conferir, pois me parece uma reação à onda de beleza e sensualidade convencionais.

Há também um movimento que defende a "mulher natural", que é igualmente fetichista, pois não existimos de forma absoluta na natureza, mas sempre mediados pela cultura. Assim, falar de mulher natual é falar de uma ideia fetichista, construída por parâmetros morais e culturais. Mas, de qualquer modo, me soa como uma reação saudável a esta outra suposição de pureza, tão bem refletida nas mulheres anti-idaade. É cono se a "mulher natural" dissesse à "mulher anti-idade": meninas, não tenham vergonha de seus pentelhos.

sábado, 22 de setembro de 2012

Bestiário

Leoa. Tem os filhores ao alcance da intuição e exibe o dom materno na naturalidade com que lhes lambe as feridas. Puxa-os, amassa-os, e morre de saudade de seus "bebês", mas sem lamentos melodramáticos. Orgulhosa, quer que ganhem o mundo, imperiais. Quando está solta na selva, é toda instinto. O faro se insinua alma adentro, levando o cheiro da caça. É a rainha da floresta, dona do mundo e, com seu rugido furioso, amedronta os mortais. Evito irritá-la. Próximo a ela, calo em silenciosa reverência. Sua musculatura perfeita, seus ossos alongados e a elasticidade quase invertebrada a tonram tão sedutora, que não me resta outro destino, exceto me entregar, feliz, às suas garras. Morro mil vezes de amor, enquanto ela se diverte. Esquece seus trovões ao menor gesto de carícia e rola na relva sob o toque de meus dedos, até devorar-me, para sempre esquecida em sua paixão.

sábado, 15 de setembro de 2012

Egberto na voz e piano de Delia Fischer

Não foi sem emoção que iniciei o sábado retornando ao universo musical de Egberto Gismonti. Dessa vez, pelas mãos ou, mais precisamente, pelo piano e pela voz de minha querida amiga Delia Fischer. No repertório, clássicos do mago de Carmo, especialmente as parcerias com o poeta Geraldo Carneiro, para mim, uma das melhores vozes da poesia brasileira dos anos 70. Foi mais ou menos assim: ontem, trouxe da redação uma boa dúzia de lançamentos, a maioria novidade para mim. Mas entre eles, veio esse CD da Delia, chamado Saudações, título de uma das canções de Gismoti.

Por sincronicidade, hoje tem no Segundo Caderno do Globo uma resenha do Calbuque sobre um outro achado fortuito: a gravação de um concerto de Gismonti, com o saxofonista Jan Garbarek e o baixista Charlie Haden, realizado na Alemanha em 1981. A fita do show estava em excelente estado, perdida nos arquivos da ECM, a gravadora de Gismonti.



Delia sempre foi uma espécie de alucinação do espírito. Conheci essa menina linda nos anos 80, quando ela gravara, se não me engano, seu primeiro disco. E me tornei seu fã para sempre. Na época, fiz fotos que foram usadas na produção do projeto. Depois, fui companhando sua carreira de longe e de perto. Sua temporada na Modern Sound me tinha lá aos sábados religiosamente. Ela também participou de um CD do meu pai, Gaudencio Thiago de Mello, chamado Amor mais que perfeito, em que ele trabalha com cantoras: Fátima Guedes, Cris Delano, Itamara Koorax e Andrea Dutra

Mas não me lembro de ouvi-la cantar. E hoje foi essa surpresa deliciosa, deixar sua voz se espalhar pela casa, se insinuando por entre a harmonia sofisticada do piano, as peças elaboradíssimas de Gismonti e o lirismo profundo de Geraldinho Carneiro. Além disso, o disco traz a companhia de excelentes músicos instrumentistas, acrescentando baixo, guitarra, cavaquinho, violino, entre outros. Fica a dica: Delia Fischer. Saudações.


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Além-mar


Minha Sarah ensolarada,
Vou me mudar pra Irlanda
Onde beberei strong ales
E brigarei com hooligans,
Fascistas e baderneiros.
Depois, estropiado, herói
De guerras memoráveis,
Deitarei em teu peito
E mergulharei no "ruivo,
Raro isoscéle perfeito".

Minha Sarah guerrilheira,
Vou me mudar pra França
Me acharás à esquina,
No café dos exilados,
Onde beberemos um tinto,
Rascante, comme il fault.
Ouvirei com o olho afogado
Histórias da Cordilheira
E buscarei em teu colo
O calor do trópico abafado.

Minha Sarah incendiária,
Vou me mudar pra Holanda
Lá não sou amigo do rei
Me perderei em campos
De girassóis impressionistas
E aprenderei teus segredos
Quando, distraída, expuseres
A relva rubra, empapada,
E dormirei em teus braços
Raiz firme para tua flor.

(para Manuel Bandeira)