sábado, 27 de dezembro de 2008

Um barzinho, um violão


O Decolores na sua originalidade típica dos velhos botequins

O cenário parece de filme de ficção científica, com os gigantescos guindastes e plataformas petrolíferas dos estaleiros Mauá Jurong e McNamara fincados na Baía de Guanabara. Mas é exatamente o contraste entre esse universo literalmente heavy metal, e a paisagem bucólica da baía, cercada pelos morros do Rio de Janeiro e cortada pela Ponte Rio-Niterói, que, dali, se vê por um ângulo incomum, que faz a magia do lugar. Quem conhece, já sabe que estou me referindo a Portugal Pequeno, no charmoso bairro da Ponta D'Areia, em Niterói, reduto da colônia portuguesa, que ali começou a se instalar no século XIX. Formado quase que exclusivamente por sobrados típicos, pequenos prédios e calçamento de pedras, o bairro, embora cercado pelos estaleiros, é um retrato de outros tempos.


O balcão de fórmica, com tampo de mármore e os banquinhos de madeira

Pois é neste lugar insólito, meus amigos, que se esconde um dos melhores endereços para quem aprecia um bacalhau bem preparado e, claro, todos os seus derivados: o Decolores. Trata-se também de um botequim centenário, ou quase, já que ninguém sabe ao certo a data de sua inauguração. Mas a idade aparece na arquitetura, na decoração e na ambiência. E também na história, pois contam que, na efervescência dos anos 50, um importante bicheiro foi assassinado enquanto, distraído, apreciava uma boa posta à portuguesa, ou seria ao Zé do Telhado? Também já foi literalmente cenário de filmes, assim mesmo, no plural.


A velha cristaleira e o gravador de fita cassette atestam o tempo parado do lugar

As tardes de sábado são um bom momento para aparecer. E pode levar o violão e os amigos, para uma serenata na calçada, onde o Decolores amplia seu espaço colocando algumas mesinhas. Para os mais calorentos, ou seriam frescos?, a casa abriu um anexo, com ar-condicionado. Mas é no velho salão original, com chão de ladrinhos e balcão de mármore, ante o imenso arco-íris pintado no fundo verde, que a magia do bar se dá em sua plenitude. O garçom Joel, prata da casa, é exímio tenor, é o rei do bolero e do samba-canção. Basta pedir um palinha e, pronto, a casa se enche do vozeirão, que interpreta à moda antiga.


A frente do bar e as mesinhas na calçada, onde os fregueses às vezes fazem serestas

Para quem quiser se aventurar, o Decolores fica na rua Barão de Mauá, 342, Ponta D'Areia, Niterói. Telefone: 2622-6167. Saindo da ponte, é só ir pegando à direita sempre e, depois do velho Moinho, é só perguntar.


Joel, o garçom com voz de bolero: é só pedir uma palinha

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Sábado 14 em Copacabana


O balcão da Adega Pérola, petiscos e chope na Siqueira Campos

Amigos, há alguns anos, vivi uma sexta-feira 13 digna do nome. Vou poupá-los dos detalhes sórdidos, mas, só para um resumo brevíssimo, envolveu desde um pequeno acidente de trânsito, briga com namorada e comida fria em restaurante... tudo isso num dia chuvoso, em São Paulo! Bem, passada a meia-noite, tudo se inverteu. A namorada, que dormira amuada, acordou no meio da madrugada com uma disposição, digamos, amorosa incrível e o sábado amanheceu num clima completamente distinto do da véspera, com um sol inesperado e uma esperança imprecisa no ar. Pois bem, anos mais tarde, ao narrar, em detalhes, essa experiência a um grupo de amigos, um deles lembrou o fato óbvio: era o sábado 14, o primeiro dia após a sombria sexta-feira 13. Disse ele, filosófico:

"Lembre-se que depois de uma sexta-feira 13, há sempre um sábado 14!"


Vendidos por peso, os petiscos da Pérola provêm basicamente do mar

Pronto. Bastaram essas palavras em tom de adágio, para que fosse instituída a comemoração da auspiciosa data e, desde então, ou quase, nos reunimos no sábado 14 para celebrar a vida, normalmente em vários botecos, em verdadeiras maratonas etílitcas, ou baratonas, como prefere minha amiga Mila Chaseliov, digna vencedora da última baratona na categoria feminina. Pois bem, embora o último sábado não fosse 14, ele inspirou uma minibaratona por Copacabana, onde levei um casal amigo de Sampa, a cidade onde tudo começou.


Os amigos de Sampa e do Rio se encontram na calçada do Pavão Azul

Iniciamos nossa jornada almoçando na Modern Sound, ouvindo um jazzinho e em seguida um samba de primeira. Foi para abastecer o corpo e o espírito com proteínas e hidratar nossas almas para a empreitada à frente, que começou pra valer mesmo pela clássica Adega Pérola, na Siqueira Campos, endereço da boemia teatral e de músicos dos anos 70-80. Meus amigos não tinham experimentado o rollmops, que na Adega são feitos com sardinha, em vez de arenque, afinal, estamos nos trópicos e é preciso adaptar. E o chope, que na Adega é meio de lua, estava sensacional. Ideal para abrir os trabalhos. Depois foram porções de manjubinha e outros mimos dos quase 100 petiscos, ao estilo tapas, que a casa oferece.


Meu amigo Cesar Baima, diante de duas pataniscas que sobraram

Em seguida, fomos para o Pavão Azul em busca das pataniscas. Encontramos bem mais que isso. Lá estavam outros amigos, bebendo Original gelada. Não fizemos desfeita e acompanhamos, com um farta porção do petisco que deu fama ao boteco, em frente à delegacia de polícia, que acrescenta um ar insólito ao bar. Depois de muita conversa jogada fora, rebocamos todo mundo para uma quadra dali, para provar o chope campeão do Real Chope, dica preciosa do Jaguar.


Meu chope saindo no Cervantes: estava preocupado com as notícias sobre a qualidade, mas gostei. O preço está mesmo salgado

No caminho conversamos sobre a singularidade que é o bairro de Copacabana, com suas galerias e comércio de rua, que ainda resistem aos shoppings. Com sua vida noturna: o único bairro do Rio, ao lado da Lapa, que não dorme. Também o lugar onde o contraste entre a distância física e a distância social nunca foram tão atordoantes, com os clássicos prédios art déco e os edifícios quitinetes e favelas; com as áreas de prostituição ao lado dos endereços chics. Enfim, um Rio de Janeiro de fortíssima personalidade, símbolo simultâneo do esplendor e da decadência da cidade.


A turma do Cervantes, volta ao trabalho após quatro meses de reforma

Seguimos então para a saideira no Cervantes, que quatro dias antes reabrira após quatro meses de reforma. Na reinauguração, um amigo me telefonou para reclamar do chope, afirmando que estava caro (R$ 4 a caldeireita) e ruim. De fato, o preço está salgado, mas a qualidade, no sábado, estava de alto nível. E olha que viemos do Real Chope, de modo que nosso parâmetro era exigente. O gerente me explicou que a reforma foi basicamente superficial, trocando as paredes e ampliando a área de trabalho dos garçons. No sistema do chope não se mexeu, garante ele. Bem, e os sanduíches, com o pão maravilhoso, continuam com o mesmo sabor. Saí de lá aliviado.


O novo Cervantes, com mais espaço para o pessoal que trabalha no balcão

Deixei meus amigos depois do Cervantes e fui tomar a saideira no Bar da Morena, um boteco sensacional, que não revelo a ninguém onde fica nem o que tem, para não estragar.

Bem, abaixo os endereços das casas visitadas:

Modern Sound (Allegro Bistrô Musical), rua Barata Ribeiro, 502 (quase esquina com Santa Clara). Tel.: 2548-5005. Para consultar a programação musical: www.modernsound.com.br.

Pérola, rua Siqueira Campos, 138 (em frente ao velho shopping center do teatro Opinião). Tel.: 2255-9425.

Pavão Azul, rua Hilário de Gouveia, 71 (em frente à 12ª Delegacia). Tel.: 2236-2381.

Real Chope, rua Barata Ribeiro, 319 (esquina com Paula Freitas). Tel.: 2547-6673.

Cervantes, rua Barata Ribeiro, 7-B (ou Rua Prado Júnior, 335-B). Tel.: 2275-6147 (vale lembrar que o Cervantes é um dos últimos bares a fechar na zona Sul).

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Um abraço no Bar do Jóia


O Bar do seu Jóia, escondido no velho Centro do Rio, fará 100 anos em janeiro

Amigos, nestes tempos de rápida proliferação de pastelarias e fast-food, alguns botequins históricos da cidade estão desaparecendo. Só nos últimos anos, numa rápida consulta a minha esmaecida memória, perdemos Café Aliança, Penafiel, Café Progresso, Pinhel, Bico Doce, Belmonte (o original), Lisboeta, Leiteria Gigi, Mandrake, entre muitos outros que me escapam agora. Além disso, há aqueles que passaram por reformas descaracterizadoras, que trocaram a velha chopeira por novas e pasteurizadas máquinas de chope; outros ainda que perderam em qualidade humana, com a saída de garçons e cozinheiros históricos... e por aí vai.

Entendo que a cidade se transforma e se, de um lado, desaparecem boas casas do ramo, do outro, o morador boêmio da cidade sempre encontra novas alternativas para brindar e jogar conversa fora com os amigos. Não quero transformar a idéia de botequins históricos num fetiche. Até porque a necessidade de boemia precisa ser saciada empiricamente. Mas, por outro lado, não posso me furtar, no plano estritamente pessoal e sentimental, a sofrer quando vejo algumas casas tradicionais tomando o rumo do fim.


A parede do Jóia, ainda com cartazes de décadas atrás

Por isso entendo e compartilho a iniciativa dos fregueses do Bar do seu Jóia, que fizeram um abraço simbólico àquela verdadeira instituição de uma certa boemia carioca, para expressar seu desejo que o bar continue vivo, apesar da morte recente de seu patriarca, o seu Jóia. Sua viúva, dona Alaíde, está tendo dificuldade para manter a casa, que exige cuidado e recursos além de sua capacidade. Esse botequim centenário guarda resquícios de um tempo que se esvai rapidamente e é inevitável sentir uma espécie de saudade e aflição, quando se percebe que com essa memória coletiva que se apaga, também acaba uma parte da nossa própria história pessoal.


Esta foto, feita por meu amigo Custódio Coimbra, um craque dos clics, me pegou em flagrante, saindo da cozinha do Jóia com um prato de feijoada, no dia do abraço

O Jóia, cujo nome formal é Café e Bar Rio Paiva, se esconde na rua da Conceição (esquina com Júlia Lopes de Almeida), próximo ao Colégio D. Pedro II, no Centro.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Bip é uma saudade


Cena típica do Bip: roda de samba aos domingos

Bem mais que um bar, o Bip é um lugar, no sentido amplo e afetivo do termo. O que ocorre em suas dependências e no entorno não se descreve enumerando as qualidades físicas e abstratas, como se faz quando se fala de um botequim digno de nota: ambiência, decoração, arquitetura, boêmia, história... Tudo isso é importante no Bip, mas não é suficiente para traduzir o que é esse lugar. Nem mesmo basta ostentar aquilo que o distingue dos demais, como sua administração gerida pelos fregueses no calor da hora, o socialismo e a anarquia vivenciados empiricamente no botequim. O Bip está além dos mais badalados, dos mais tradicionais, dos mais charmosos. É o verdadeiro caso a parte. Aquele que não se enquadra nas descrições convencionais, sempre incompletas quando tentam explicá-lo.

Para se falar desse lugar com um mínimo de sinceridade não se pode descrevê-lo, nivelando suas qualidades numa lista de prodígios. Não. Para se falar do Bip, é preciso narrá-lo, e isso significa ir além das enumarações: ultrapassar a descrição; atravessar suas paredes, que testemunham a história do samba e do Botafogo do nosso Alfredinho; avançar para depois das notas musicais de suas rodas de choro e samba. Para narrar o Bip é preciso, no mínimo, trazer à luz os dramas de todos aqueles que o fazem, a começar pelo Alfredinho, coração e alma da casa.


Alfredinho, coração e alma do Bip Bip

O Bip transcende a si próprio no espaço justamente por causa de sua qualidade humana, demasiadamente humana. Por isso, encontro-o, por exemplo, no Lamas ou no Galeto, quando esbarro com Alfredinho na madrugada carioca. Ou quando, numa roda de samba qualquer, sua figura aflora, como uma espéice de deus da alegria, abençoando a bagunça, dionisíaco. Ou nas conversas com meu amigo Marceu Vieira. Ou na francesa que me fala, num café em pleno inverno parisiense, de sua saudade do Rio que o Bip contém. Ou na arguta observação do jovem japonês que vem do Oriente aprender o segredo disso que está além de palavras.

O Bip é o afeto, a alegria, a melancolia, a vida, enfim. É essa coisa essencial que encontrei, por exemplo, quando meus olhos esbarraram, pela primeiríssima vez, com os de Naninha, em seu vestido florido, atrás do balcão, severa, guardando a casa. O Bip é uma saudade, palavra que significa muito mais que nostalgia ou evocação, e que traz em seu âmago a essência mesma da vida, das coisas fugidias que passam por nós e nos fazem humanos. Termo que só existe em português (por falta de um equivalente em alemão, por exemplo, Freud se viu obrigado a inventar a psicanálise para tentar dar conta dos mesmos fenômenos furiosos que a lírica lusitana resume em saudade). O Bip é muitas coisas, mas, sobretudo, o lugar dessa ebulição apaixonada que o lirismo de nossa língua traduz numa só palavra.


Os músicos tocam de graça, pelo prazer de tocar

(Texto publicado no livro Bip Bip 40 anos — Histórias de um bar, lançado em dezembro de 2008, como parte de minha modesta contribuição com outros cento e tanto autores)

O Bip Bip fica na rua Almirante Gonçalves, 50 (entre Djalma Ulrich e Sá Ferreira), em Copacabana. Tel.: 2267-9696.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Abrindo os trabalhos

Amigos, a idéia deste espaço, apropriadamente batizado de Pendura Essa, é trazer à baila os assuntos relacionados à vida boêmia pelo mundo afora, mas sobretudo neste Rio de Janeiro do início do século XXI. Valem desde notinha até reportagens e crônicas sobre o assunto, ou simplesmente aquela conversa fiada de balcão.