quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Bip é uma saudade


Cena típica do Bip: roda de samba aos domingos

Bem mais que um bar, o Bip é um lugar, no sentido amplo e afetivo do termo. O que ocorre em suas dependências e no entorno não se descreve enumerando as qualidades físicas e abstratas, como se faz quando se fala de um botequim digno de nota: ambiência, decoração, arquitetura, boêmia, história... Tudo isso é importante no Bip, mas não é suficiente para traduzir o que é esse lugar. Nem mesmo basta ostentar aquilo que o distingue dos demais, como sua administração gerida pelos fregueses no calor da hora, o socialismo e a anarquia vivenciados empiricamente no botequim. O Bip está além dos mais badalados, dos mais tradicionais, dos mais charmosos. É o verdadeiro caso a parte. Aquele que não se enquadra nas descrições convencionais, sempre incompletas quando tentam explicá-lo.

Para se falar desse lugar com um mínimo de sinceridade não se pode descrevê-lo, nivelando suas qualidades numa lista de prodígios. Não. Para se falar do Bip, é preciso narrá-lo, e isso significa ir além das enumarações: ultrapassar a descrição; atravessar suas paredes, que testemunham a história do samba e do Botafogo do nosso Alfredinho; avançar para depois das notas musicais de suas rodas de choro e samba. Para narrar o Bip é preciso, no mínimo, trazer à luz os dramas de todos aqueles que o fazem, a começar pelo Alfredinho, coração e alma da casa.


Alfredinho, coração e alma do Bip Bip

O Bip transcende a si próprio no espaço justamente por causa de sua qualidade humana, demasiadamente humana. Por isso, encontro-o, por exemplo, no Lamas ou no Galeto, quando esbarro com Alfredinho na madrugada carioca. Ou quando, numa roda de samba qualquer, sua figura aflora, como uma espéice de deus da alegria, abençoando a bagunça, dionisíaco. Ou nas conversas com meu amigo Marceu Vieira. Ou na francesa que me fala, num café em pleno inverno parisiense, de sua saudade do Rio que o Bip contém. Ou na arguta observação do jovem japonês que vem do Oriente aprender o segredo disso que está além de palavras.

O Bip é o afeto, a alegria, a melancolia, a vida, enfim. É essa coisa essencial que encontrei, por exemplo, quando meus olhos esbarraram, pela primeiríssima vez, com os de Naninha, em seu vestido florido, atrás do balcão, severa, guardando a casa. O Bip é uma saudade, palavra que significa muito mais que nostalgia ou evocação, e que traz em seu âmago a essência mesma da vida, das coisas fugidias que passam por nós e nos fazem humanos. Termo que só existe em português (por falta de um equivalente em alemão, por exemplo, Freud se viu obrigado a inventar a psicanálise para tentar dar conta dos mesmos fenômenos furiosos que a lírica lusitana resume em saudade). O Bip é muitas coisas, mas, sobretudo, o lugar dessa ebulição apaixonada que o lirismo de nossa língua traduz numa só palavra.


Os músicos tocam de graça, pelo prazer de tocar

(Texto publicado no livro Bip Bip 40 anos — Histórias de um bar, lançado em dezembro de 2008, como parte de minha modesta contribuição com outros cento e tanto autores)

O Bip Bip fica na rua Almirante Gonçalves, 50 (entre Djalma Ulrich e Sá Ferreira), em Copacabana. Tel.: 2267-9696.

2 comentários:

Anônimo disse...

que honra ter sido citado, amigo. ótimo seu blog. merecia incentivo oficial da prefeitura. muito bom. grande abraço! marceu.

ipaco disse...

Valeu, Marceu! Venha sempre.