domingo, 5 de setembro de 2010

Mas o que faz o bom jornalismo, afinal?

Suzana Blass, do Sindicato dos Jornalistas do Rio, e Fernando Gabeira, no ato contra o fim do JB. Gabeira me disse: "O Rio precisa de mais vozes."

A reportagem sobre o fim do Jornal do Brasil na sua versão impressa, publicada no Globo na semana passada e reproduzida no post abaixo, me fez nergulhar num agudo exercício de reflexão sobre esse ofício, que vem se transformando à mesma proporção dialética que mudam a mídia e o jornalismo contemporâneo. O fato de orientar os estagiários da redação do Globo que chegam à editoria de economia também me dá elementos de observação sobre a nova geração de jornalistas e os ritos de interação no ambiente de trabalho, objeto da minha tese de doutorado em antropologia.

Não cabe aqui uma avaliação saudosista, que afirma que os rumos da profissão pioraram. Apenas verifico que o jornalismo que se faz hoje é outro, com características próprias muito distintas daquelas dos anos 80, quando me formei, ou, para analisar em termos de períodos, dos anos 50 ao início dos anos 90, quando o computador entrou na redação e se aposentaram a lauda jornalística e as máquinas de escrever. Mas há concretamente uma sensação de piora, inclusive entre as novas gerações que sequer viveram o auge do jornalismo heróico. Essa sensação vem, penso eu, de coisas concretas, como a baixa remuneração, o aumento da rotatividade de emprego no setor, isto é, da precarização do ofício, que inclusive deixou de ser reconhecido como tal pelo Supremo Tribunal Federal, que lhe negou a obrigatoriedade do diploma.

Ao mesmo tempo, as empresas de comunicação também vivem um processo incontrolável de transformação, sem saber bem para onde vai o negócio da comunicação. Elas não conseguem acompanhar a rápida evolução que novas tecnologias trazem ao setor, criando novas formas de fazer e viver o jornalismo. As empresas investem pesado em novas tecnologias, que, seis meses depois, já estão obsoletas, de modo que a sensação nas redações é de que se está sempre atrasado em relação à realidade. Enquanto isso, permanece o caráter ambíguo das empresas jornalísticas, como corporações que buscam o lucro de seus acionistas, mas que são igualmente instituições fundamentais para o exercício da democracia nas sociedades capitalistas. Esse caminhar entre o papel de empresa e o papel cívico impõe dilemas constantes.

Durante minha tese, tive acesso a pesquisas sociológicas sobre a profissão de jornalista interessantes. Uma delas, um artigo escrito pela antropóloga Alzira Alves de Abreu, enfocava as representações sociais de gerações distintas de jornalistas. Alzira entrevistou inúmeros jornalistas de redação e concluiu que a visão do ofício entre a geração mais velha, que ela chama de "boêmios" e "heróicos", é muito distinta da geração mais nova, que ela chama de "profissionais". Enquanto os primeiros viam a profissão com um olhar cívico, acreditando que seu trabalho era importante para, entre outras coisas, consolidar a democracia; os mais novos tinham uma preocupação mais profissional, acreditando que o papel do ofício é informar, e ponto final. Enquanto os primeiros faziam do bar uma extensão da redação, os segundo se preocupavam mais em avançar na hierarquia interna dos cargos e salários, daí a classificação que ela faz entre boêmios e profissionais, embora haja exceções dos dois lados, evidentemente.

A boemia e, sobretudo, os botequins tinham de fato um papel importantíssimo para o desempenho do ofício, quando comecei. Isso podia ser medido inclusive pelo alto número de profissionais com problemas de alcoolismo. Os botecos e restaurantes que fechavam mais tarde eram uma espécie de válvula de escape, após a dura jornada na redação. Era ali que se comentava, não sem brigas e polêmicas, as edições que iriam para a rua no dia seguinte. Era ali que se desabafava os percalços do ofício e das empresas, reclamando da aspereza dos chefes, da baixa remuneração, entre outros assuntos recorrentes. Nos bares, os coleguinhas de diferentes jornais e assessores de imprensa se encontravam e a impressão que se tinha era que o trabalho seguia ali. E de fato seguia.

Quantas discussões intermináveis no Capela, no Cervantes, no Vermelinho, no Fiorentina, Luna's Bar, Alvaro's, Degrau, Jobi, Jangadeiros e por aí vai... No Lamas, lá pelas duas da manhã, entrava o vendedor com a edição do Dia, que acabara de rodar. Depois chegavam o Globo e o JB. A partir daí verificava-se quem havia furado quem, discutiam-se abordagens, enfoques etc.

O timing do ofício também era outro. O pessoal do fechamento (editores, redatores, secretários, entre outros) terminava seu trabalho na madrugada. Era preciso fazer o acompanhamento gráfico, verificar se as fotos e as legendas batiam corretamente, por exemplo. Quando tudo estava certo, dava-se o sinal verde para as oficinas rodarem o jornal. E quando algo extraordinário acontecia nesse momento, o grito traficional, que virou jargão: "Parem as máquinas!".

Essa relação com a gráfica, a parte de oficina, fabril mesmo, fordista, com suas imensas rotativas, dava um tom industrial ao ofício, que hoje em dia mal se percebe, já que tudo é feito eletronicamente, digitalmente. Era a gráfica que ditava o ritmo do trabalho na redação, estabelecendo os deadlines de fechamento, para que o jornal rodasse a tempo hábil de ser distribuído em todo o país. O nível de tensão crescia proporcionalmente à medida que se aproximavam os prazos de fechamento. Atrasar era impensável.

Daí a invenção do texto jornalístico com o lide e a chamada pirâmide invertida. A informação mais importante era colocada logo no início do texto, de preferência no primeiro parágrafo, e se escrevia em ordem decrescente de importância. Desse modo, se o prazo apertasse e a matéria estivesse estourando o tamanho projetado pelo diagramador para a página, o redator sabia que podia cortar o texto pelo pé, pois, teoricamente, os fatos menos relevantes estavam narrados ali.

Era uma época em que as reportagens eram redigidas em laudas, batidas em máquinas de escrever Hemington, com cópia carbomo. Verificar a grafia de um nome ou a data de um evento histórico exigia trabalho na sala de pesquisa. As consultas a manuais, enciclopédias, dicionários e vocabulários ortográficos eram penosas, pois obrigavam a interromper o trabalho de redação. Era uma época também que havia uma exigência de qualidade muito cruel. Um erro de português podia significar a demissão do autor, como tantas vezes ocorreu. Por isso, todos se esmeravam em apurar bem e escrever corretamente, apesar dos prazos exíguos. Não havia recursos como Google ou Wikipedia num terminal de computador de última geração. Hoje, por exemplo, faço a pauta de assuntos internacionais de economia no Globo com outros dois colegas redatores, compartilhando um arquivo comum no Google Docs, o que nos permite atualizar a pauta simultaneamente.

Assim, o bar deixou de ter esse papel tão visceralmente ligado à redação. Entrevisto jovens que chegam ao Globo e nenhum deles freqüenta o botequim "profissionalmente". Suas fontes estão em outros lugares e as polêmicas e debates sobre as edições são preferencialmente feitas mediante redes sociais como o Facebook e o Twitter. Em vez da discussão acalorada, entre tulipas e pilhas de bolachas de chope, emoticons e outros recursos gráficos para expressar o assombro ou o encantamento de um ofício que mudou radicalmente. Além do que, eles chegam à redação em idade muito inferior aos de minha geração. A média hoje dos estagiários é de 19-20 anos, enquanto que, nos anos, 80, era de 25 anos ou mais.

Se antes a edição ficava velha e embrulhava o peixe no dia seguinte, hoje a notícia envelhece a cada clicada na internet. Isso, evidentemente, transformou a forma de se fzer jornalismo e a qualidade final da notícia. Há uma profusão interminável de informações despejadas sobre o leitor/internauta. Desse modo, é preciso atualizar constantemente, praticamente em tempo real, os sites de informaçõess, as versões online dos jornais impressos etc. Junto ao texto, há hiperlinks para vídeos, áudios, fotos, infográficos etc., mas o tipo de apuração também se apressou, voltando-se para notas sociais sobre celebridades e temas mais sensacionalistas, capazes de atrair e prender a atenção dos leitores navegantes. E os jornais impressos em vez de se especializarem em reportagens, com medo do furo imposto pela concorrência, tentam correr atrás da informação mais quente possível, mesmo sabendo que será sempre uma edição gelada em comparação à versão online e digital.

Penso que seria o momento ideal para que os jornais impressos voltassem a fazer boas reportagens. Reportagens que, de tão raras hoje em dia, são sempre acrescidas de um adjetivo: reportagem especial, reportagem investigativa e por aí vai. Reportagem é reportagem, e ponto final. Uma boa apuração e um bom texto são suficientes para levar ao leitor uma boa história. E isso ainda é o que define, na essência, o jornalismo de ontem e de hoje.

5 comentários:

ips disse...

Paulinho, esse seu texto está demais. Uma belíssima elaboração de tudo aquilo que venho ouvindo de você nos últimos anos. Chego ao final da leitura com a certeza de que não existe (não pode existir) jornalismo em "tempo real", ainda mais sobre não importa que assunto (ou melhor, sobre que fofoca). Parece que a investigação de ontem foi substituída por um tom de fofoca, nos dias que correm. A face do jornalista boêmio não deixava dúvidas sobre o que ia no coração daquele homem, bravo herói do lado de fora do seu planeta redação. Hoje, como você diz com tanta precisão, "emoticons" ("con", em francês, é bem de acordo com o que você sugere...) escondem a falsa alegria dessa gente definitivamente desinteressada em ouvir o que não soa bem às suas verdades e crenças. Esses dias reli Memórias do escrivão Isaías Caminha. Me parece que sua voz (essa pela qual Gabeira reclama nas ruas) é um eco retumbante do punho de Lima Barreto. É, meu amigo, é isso aí.

ipaco disse...

Pois é, essa reportagem sobre o fim do Jornal do Brasil impresso trouxe de volta as reflexões que fiz na defesa da tese. É interessante presenciar com alguma clareza esse processo de transformação de um ofício. E um ofício importante como o jornalismo. Beijo.

Blogat disse...

Excelente reflexão.

ipaco disse...

Obrigado.

Camaleoa disse...

Nah. Você não apareceu em SP, a gente nunca bateu um papo e logo nestes últimos tempos em que tinha encontrado um botequim pra essas conversas todas de redação (point Parlapatões, Pça Roosevelt).
Mais novidades, por e-mail. Grande abraço.