segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Humano, demasiadamente humano





O drama e sua potencialidade como estimulador de afeto humano é o que nos une. Nossa capacidade de perceber a dor do outro e nos sensibilizarmos por meio de um processo inconsciente de transferência, nos colocando no lugar do outro, imaginando seu sofrimento. Não se trata de sentir pena, do sentimento cristão de compaixão. O que está por trás desse movimento, a meu ver, é algo mais profundo, uma espécie de identificação, que se dá por meio da dor. É como se o sofrimento do outro nos empurrasse para um momento de abrupta constatação, mesmo que inconsciente, de que somos todos passíveis daquela dor, pois somos todos humanos.

Luc Boltanski escreveu sobre isso do ponto de vista filosófico, levando tal capacidade de empatia pela dor alheia para a instância de relações à distância. Ele fala da capacidade de mobilização que este fenômeno da empatia pode gerar, ampliado pelos meios de comunicação. O título de seu livro, em tradução livre, é algo como Sofrimento à distância.

Eu penso e me interesso mais pelo mesmo processo, mas num viés mais próximo, face a face. Esse foi inclusive um dos motores que me levaram a pesquisar o bairro, o botequim, a convivência urbana nas cidades. A capacidade de nos mobilizarmos pelo outro, por meio de empatias e solidariedades. Algo que a princípio pareceria impossível ou improvável na metrópole, na cidade com sua multidão assustadora de desconhecidos.

Sempre me intrigou essa nossa capacidade de reconhecimento do outro como igualmente humano, já que ele é capaz de sofrer como nós.Insisto, trata-se mais de identificação do que mera compaixão. Esta pode até surgir e se estabelecer como mediadora da relação, mas antes dela há uma identificação primitiva, que a torna possível.

E assim se sucedeu outro dia. O primeiro dia após o apocalipse maia. Com a Terra, pelo menos aparentemente, ainda intacta, girando na sua rotina em torno do sol, decidi sair de casa a esmo, aproveitando a minha folga para perambular pelo bairro. Depois de uma boa hora de andança, passada por sebo para folhear livros e comprar mais alguns, me sentei à mesinha de um bar uma calçada nova de Botafogo, gentrificada.

Trata-se de um admirável mundo novo homogêneo, que tanto encanta os burgueses por sua pureza étnica e social. Todos iguais, classe média, sem pobreza, sem mendigos, sem pivetes, sem miséria. Gosto do lugar menos pela frequência do que pelo chope de excelente qualidade. E louvo o esforço do dono em remar contra a (o)pressão do monopólio da AmBev e vender sua própria marca, entre outras, muitas outras.

Foi então que reparei que a garçonete, uma jovem simpática e bonita que sempre me atende quando apareço por lá, estava nesse dia com ares de que as premonições maias haviam de fato se concretizado; pelo menos em nível pessoal. Seu ar era de uma tristeza profunda e urgente, que se localizava sobretudo nos olhos. Estava, ademais, desatenta, distante e um tanto fria. Para quem já fora atendido por ela tantas vezes, era óbvio que ela não estava bem.

Aquilo provocou em mim uma angústia de dupla mão. De um lado a impotência por não ter a capacidade de poder “curar” minha amiga de sua dor. De outro, pelos meus próprios fantasmas, prontos para se identificar, farejando o ar da melancolia e do infortúnio. Imediatamente pus de lado a distância protocolar de nossos papéis sociais e perguntei, num tom quase de amizade, o que havia com ela. Sua resposta se deu em forma de lágrimas copiosas. Minha mão estendida sem querer derrubou a barreira que segurava o dique. Sem conseguir contê-lo, o choro por fim aflorou.

Constrangida, hesitou entre o profissionalismo e o choro. Sorriu amarelo e tratou de enxugar, inutilmente eu diria, o rosto. Balbuciou algo como: “não estou bem” e pediu desculpas pela quebra de protocolo. Disse a ela que ficasse tranquila e segurei sua mão para reforçar o que dizia. Disse as coisas inúteis que dizemos nessas horas, como “seja o que for, vai passar” e outras besteiras. Percebi um certo alívio em seu rosto, quando ela percebeu que eu, por meu lado, também me emocionara. Meus olhos marejaram encorajados pelas lágrimas dela.

Pensei nas coisas que me entristeciam, na solidão da vida, na morte que ronda meu pai na forma de um tumor, nos amores fracassados que tive e sei lá mais o quê. Me dei conta então que minha tristeza era tudo o que podia oferecer a ela em solidariedade ao seu sofrimento. Era a dor que nos amarrava em nossa humanidade. Humanidade que compartilhamos daquela forma.

Em seguida, ela desapareceu. Outro garçom passou a me atender e fiquei preocupado, sem saber se perguntava por ela e chamava a atenção dos colegas para o que se passava com ela. Mas, uma boa meia-hora depois ela voltou. Me disse que pediu ao gerente uns minutos para espairecer e foi dar uma caminhada. Ela se sentia melhor. Eu também. Estávamos os dois nos sentindo mais humanos.

Um comentário:

ANNA disse...

Depois de algum tempo te “lendo”,sei que,entre outras coisas,vc gosta de viajar pela alma humana e se encantar nos seus labirintos.
Seu texto,como sempre,é comovente,mas algo,que já li e ouvi inúmeras vezes, me chama a atenção: Paulo,este impulso de olhar para o outro sempre como uma possibilidade de descoberta,por mais que pareça um contrassenso,só é possível nas grandes cidades. A ideia de que as cidades pequenas são propícias a encontros mais pessoais,ou prolongados,que a vida cotidiana,por ser mais “fácil”,sem o corre- corre da megalópole,é o lugar perfeito para se estabelecer relações mais “humanas”,penso que nasça no mesmo lugar em que nasce a necessidade humana de acreditar em algo que é melhor,mais bonito,mais seguro e tranquilo do que aquilo que está a sua volta.
Depois de já ter vivido em cidades de todos os tamanhos,em várias partes do país,só percebi esta disposição com o outro,em cidades como Rio,São Paulo,BH,... Umas com maior intensidade,outras com mais reserva,mas nunca em cidades pequenas. Há,nestes lugares,uma certa curiosidade com o novo,o que dá,à quem está de passagem,a falsa ideia de que calma e intimidade,sossego e companheirismo,são sinônimos.
Talvez,o desejo por “shangrilá”,que move o morador das grandes cidades,de certa forma, o obrigue a se movimentar em direção ao outro e exercitar o sentimento de identificação.Talvez,por aceitar como verdade incontestável,o estereótipo,o que vive em lugares menores,acredite não precisar desta proximidade,já que ela seria consequência natural da geografia.
De qualquer forma,oxalá,no dia em que a tristeza me pegar,eu encontre olhos tão doces e mãos tão firmes quanto as que encontrou aquela garçonete.
Abraços,
Anna Kaum.