Reunião no Cosmopolita: Jaguar, seu Tuñas, Guilherme, eu e Paulo MussoiSempre defendi a idéia de que o botequim carioca é muito mais do que serviço e gastronomia, funcionando, antes de tudo, como um espaço de sociabilidade, uma espécie de clube social da vizinhança, em que aspectos da cultura do bairro e da cidade são reiterados e vínculos de amizade e de identidade social são reforçados em conversas, jocosidades, disputas etc. Onde o pendura aparece como um importante regulador do ciclo de confiança entre fregueses e proprietários, muitas vezes mediado pelos garçons etc. Onde o botequim, como comércio de proximidade, atua como um importante elemento a estimular a vida na calçada e no bairro etc. Nas seis primeiras edições do
Rio Botequim em que participei, essa noção, digamos, antropológica foi defendida numa luta constante para fazer com que o guia registrasse esse aspecto subjetivo, porém importante, porque diferencia o botequim carioca dos estabelecimentos comerciais que vendem bebida alcoólica no resto do país.
O garçom Ramos, do Villarino: alma de botequimO boteco de São Paulo, por exemplo, em geral valoriza o serviço, o atendimento, a qualidade da comida, o ambiente, o banheiro limpo etc. Mas não é um lugar aonde se vai de sandália e sem camisa, bater papo, jogar porrinha, observar a vizinhança passando, a gostosa do bairro, a vizinha chata que reclama do barulho e da bagunça. Não é lugar onde se usa da verve jocosa para gozar os amigos, idealizar projetos, pequenos negócios e revoluções socialistas; criticar o governo, o patrão, a patroa e a sogra etc. Ou seja, o boteco paulistano de grife não valoriza a ambiência, a atmosfera, o ar cosmopolita da cidade. Ir ao boteco em São Paulo é um programa; é como ir ao cinema, ao teatro etc. É necessário se vestir adequadamente. Tem hora pra chegar e sair. No Rio, não é necessariamente assim, embora tenham proliferado nos últimos anos bares com essa característica paulistana, isto é, voltados para o serviço. Nos verdadeiros botequins cariocas, o que está em jogo é o cotidiano, é o botequim da esquina, que liga os fregueses à rua, ao bairro, à cidade. Um clube da esquina.
Decolores, em Nikiti: alma de botequimPor isso, o botequim carioca era contraditoriamente tido pela elite da cidade e as instituições formais — como o Estado, a Polícia, a Igreja, a Medicina etc. — como um lugar de vagabundo, puta e malandro. Lugar de doença (o alcoolismo) e perdição, um antro que desviava o homem reto de seu caminho entre o lar e o trabalho. Onde o marido deixava parte do parco salário para desespero da família. E ainda chegava em casa dando esporro na mulher. Por outro lado, era cantando e louvado pela boemia, pelos artistas, músicos e poetas, pelos operários que encontravam nesse espaço um lugar onde a hierarquia social era mais igualitária, onde tinham sua voz e obtinham o respeito difícil de encontrar no resto da cidade. Era e ainda é também um retrato cultural da cidade, revelando o desenvolvimento urbano, as transformações históricas, a urbanização, a industrialização etc.
A cozinha do Cervantes: alma de botequimO lançamento do
Rio Botequim, no fim da década de 90, ajudou, pela repercussão que teve na imprensa, a chamar a atenção para esse lado de identidade cultural da cidade. Mas, se por um lado, o carioca mais desavisado começou a bater no peito orgulhoso de seus botequins, as visões negativas sobre o pé-sujo não desapareceram, sobretudo por parte das autoridades municipais, com suas leis draconianas de posturas, impedindo, por exemplo, mesinhas nas calçadas, coisa comum em qualquer cidade cosmopolita do mundo. O aumento da freqüência também teve conseqüências de ordem econômica e social. Os preços subiram, donos de alguns botequins, deslumbrados com o maior reconhecimento, antes tímido, empreenderam modificações, reformas, investiram em redes e priorizaram o serviço, desconfigurando exatamente aquele aspecto de clube social.
Aconchego Carioca: alma de botequimDe olho no sucesso econômico desse fenômeno, rapidamente restaurantes e bares sofisticados passaram a se autodenominar “botecos” e adjetivos semelhantes, evocando informalidade, simplicidade e uma gastronomia singular. Os jornais criaram colunas de especialistas (é verdade que
Jaguar e outros já escreviam sobre isso desde sempre), criaram-se concursos, eleições, valorizando garçons, pratos, bebidas, baratonas e toda sorte de eventos etc. Houve uma “profissionalização” em torno desse segmento botequim. Parte dessa revolução foi positiva, pois melhorou muita coisa que podia ser melhorada sem implicar numa descaracterização, incentivou a criatividade dos donos de botequins, como
Katia e
Rosa, do
Aconchego Carioca,
Alaíde, ex-
Bracarense,
Fernando, do
Enchendo Lingüíça,
Paulette, do
Petit Paulette, e tantos outros. Inventando pratos, reforçando a ambiência etc.
Bar do Jóia: alma de botequim (foto de Custódio Coimbra)Mas também teve seu lado negativo, com a proliferação de falsos botecos, uma certa banalização e mesmo fetichização do botequim, tanto por aqueles que o querem transformar em botecos paulistanos, limpinhos e cheirosos, como aqueles que desejam mantê-los parados no tempo, alheios às mudanças estruturais da cidade. Enfim, dos anos 90 pra cá, o botequim carioca viveu uma verdadeira revolução como instituição cultural da cidade, com seus efeitos colaterais e coisa e tal. Virou assunto em cada esquina e, como no futebol, tem um especialista em cada cidadão, de modo que cada um tem sua visão e diagnóstico sobre esse processo. Aqui, apenas exponho minha percepção em relação a esse fenômeno.
Adega Pérola: alma de botequimA sétima edição do
Rio Botequim, já a cargo de meu amigo
Guilherme Sturdart, foi uma edição especial, voltada exclusivamente para gastronomia, uma especialidade do
Guilherme, que é um estudioso do tema, tendo catalogado em anos de pesquisa pessoal mais de mil bares, classificando-os, entre outras coisas, por suas singularidades culinárias. Dificilmente haverá um bar na cidade e arredores que ele não conheça. Tirando o desenho gráfico do guia, que recortou as fotos de tal modo que não permite ao leitor que se tenha uma idéia dos bares sobre os quais se fala, o projeto foi bastante interessante, selecionando bares por especialidades da cozinha, fornecendo as receitas de cada um e coisa e tal.
Pavão Azul: alma de botequimAgora, a editora
Casa da Palavra, de minha amiga
Martha Ribas, prepara a oitava edição do
Rio Botequim, ou o
Rio Botequim 2010. Dessa vez, não há a chancela: “especial gastronomia”. Ou seja, o guia vai tratar de bares por suas virtudes além da cozinha, inclusive ambiente, bebida, arquitetura, higiene etc. Nesse processo, fui convidado para participar de uma espécie de conselho de especialistas, que, entre outros, contou com figuras como
Jaguar,
Moacyr Luz,
Marcelo Lins e
Paulo Mussoi, para ranquear entre os 200 bares selecionados para o guia os 50 que receberão estrelas (de um a três). O evento, realizado no
Cosmopolita, dos irmãos
Tuñas, casa inaugurada em 1926 e onde
Oswaldo Aranha inventou o filé que leva seu nome, foi marcado por uma bem-humorada e simultaneamente tensa discussão sobre a lista de bares que receberão ou não estrelas no próximo guia.
Alfredinho, do Bip Bip: alma de botequimDois dias depois,
Joaquim Ferreira dos Santos, ao resenhar o encontro, publicou na coluna
Gente Boa, do
Globo, uma informação imprecisa: a de que o
Bip Bip, por sugestão de um dos membros da comissão, não seria ranqueado com estrelas. A informação é imprecisa porque, embora a sugestão tenha sido de fato apresentada, não se bateu o martelo sobre a inclusão ou não do
Bip entre os estrelados do guia. A decisão ficará a cargo do autor e da editora do projeto,
Guilherme Sturdart e
Martha Ribas. O que posso dizer é que, do mesmo modo que sugeriram a retirada do
Bip, sua permanência foi por mim defendida com ardor. Afinal, não se vai a botequim apenas para comer. E o
Bip, que já foi até capa do jornal francês
Le Monde, é um bar que eu indicaria a qualquer pessoa interessada em conhecer a alma dos botequins cariocas, gringo ou da terra. Eu, que tenho o
Alfredinho como um pai, a quem peço a benção quando encontro, sou obviamente suspeito em minha defesa. Mas não estou só nela.
Samba no Bip: alma de botequimVamos ver como sairá o guia. Talvez a idéia de botequim exclusivamente como serviço esteja se sobrepondo aos aspectos culturais mais amplos e intangíveis, difíceis mesmo de descrever num guia por sua subjetividade. Talvez isso seja visto, sobretudo aos olhos dos financiadores do projeto, como uma profissionalização do guia (o
Joaquim usou a expressão, perigosíssima a meu ver, “Michelin dos bares”), mas prefiro pensar que após todos esses anos, com toda a experiência adquirida e tendo consciência do papel do
Rio Botequim no estímulo a uma reflexão sobre esses estabelecimentos, respeite-se a noção de ambiência, que engloba essa característica de clube social da vizinhança. Para mim, essa noção é tão ou mais importante do que gastronomia, limpeza, arquitetura, história, bebida, garçom e ambiente (espaço), pois é ela que diferencia o botequim carioca dos bares de outros lugares.
Bip Bip: alma de botequim