segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Três poetas da geração 70


Por uma estranha coincidência, li em seqüência nos últimos dois anos a biografia de Torquato Neto, feita por Toninho Vaz, e a reedição d’Os últimos dias de Paupéria, reorganizado por Vaz em dois volumes, que separam a produção do Nosferatu tropicalista e marginal na coluna Geléia Geral, de seus textos mais íntimos (poemas inéditos, cartas e anotações do período em que ficou internado no sanatório, material que não tinha nas edições anteriores, organizadas por Waly Salomão e Ana Maria Duarte, mulher de Torquato). Em seguida me caiu em mãos, numa edição amorosa do Instituto Moreira Salles, um grande livro ilustrado com textos inéditos e fac-símile dos cadernos de poemas de Ana Cristina César, chamado de Antigos e soltos. Muito generosa, a edição permite vislumbrar um pouco do processo criativo de Ana, bem como sua intensidade emocional. Em alguns momentos é possível vislumbrar como o poema surgiu e como foi sendo trabalhado por Ana até sua forma final.

Vindo dessa leitura incrivelmente densa e ao mesmo tempo pesada, já que os dois poetas se suicidaram ainda jovens (ele com 28, em 1972, e ela, aos 31, em 1983), caí, por puro acaso, na leitura da autobiografia, ou coisa que o valha, de Chacal. Não o terrorista, mas o poeta marginal da geração de Ana, e pródigo agitador cultural, figura maior do “coletivo” (como se dizia nos anos 70) de poetas: Nuvem Cigana, e maestro das estripulias — ou artimanhas como prefere o poeta —, do CEP 20.000, passando por experiências lisérgicas e herbanárias, conforme ditavam os tempos naqueles anos de chumbo, com Asdrúbal trouxe o trombone, Circo Voador, Parque Lage e outras explosões performáticas daqueles dias, pra lá de psicodélicas (não nos esqueçamos da famosa urinada de Tavinho Paes no palco de um teatro de São Paulo, mas isso é assunto para outro post). E sobretudo as produções mambembes de livros de poesia em mimeógrafos, vendidos na noite da boemia, e independentes de editores.

Não posso precisar se meu sentimento foi influenciado pela seqüência de leitura — Torquato, Ana C e Chacal —, uma espécie de relativismo injusto a priori, mas fiquei com a sensação de que Chacal descreve em vez de narrar sua vida. E faço aqui uma referência à oposição que Georg Lukács estabeleceu em seu ensaio Narrar ou descrever?, no clássico livro Ensaios sobre literatura. Segundo ele, descrever nivela todas as coisas no texto, ao passo que narrar hierarquiza, dando densidade psicológica à narrativa. E mostra exemplos concretos apresentando a descrição uma corrida de cavalos em dois romances, Naná, de Émile Zola, e Ana Karenina, de Tolstói. Ao ler as duas passagens, fica bastante claro o que ele quis dizer com essa oposição.

Pois bem, não sou especialista, mas me pareceu que Chacal descreve mais do que narra sua vida no livro. Tanto é assim que a leitura flui como água, com pouca densidade, mesmo em momentos mais dramáticos e cruciais, como seu atropelamento quase fatal em São Paulo, e na descrição de sua queda no Jóquei, após uma noitada intensa com Cazuza no Baixo Gávea. Momentos que, se narrados, nos colocariam quem sabe no coração do poeta, na sua cabeça, do lado de dentro, como ocorre com o livro de Torquato. Talvez esse seja o preço da autobiografia: a dificuldade de um mergulho total no fundo da alma. Provavelmente coisas de superego vigilante.

Fico com a impressão, talvez injusta, admito, que o texto de Chacal tem essa forma descritiva para além das intenções conscientes do autor. Mas pensando bem, é um pouco como sua poesia, e não poderia deixar de ser. Seus versos nunca me pegaram (como também não me pegaram os de Waly Salomão, mas por minha culpa: não soube lê-los), o que não quer dizer muito. Aliás, dessa geração, gosto imensamente de Geraldo Carneiro e, entre os tropicalistas, Capinam, embora goste muito de Torquato também. Mas Capinam é um mestre. Também gosto de muita coisa de Ana C. No caso de Chacal, a leitura da biografia me permitiu descobrir versos dignos. Mas, para saciar meu gosto, tenho que garimpar em sua vasta produção. Aliás, o próprio Chacal escreve: “Para o mundo acadêmico sou um poeta descartável, de poucos recursos e baixo repertório. Para o mundo pop, um poeta, um intelectual, um crânio. E todos têm razão. Menos eu. Menos eu."

Honestidade é a principal virtude do livro, que tem também muitos defeitos, na minha amadora opinião (não estou nem no mundo acadêmico nem no mundo pop, olho Chacal do limbo). O principal defeito é sinalizar com um jantar e oferecer um sanduíche. Há trechos que parecem ter saído no primeiro vômito, sem qualquer lapidação, com repetições e construções pobres. Há muita informação mas pouca densidade narrativa, me pareceu, sobretudo, um texto preguiçoso, em que as situações são descritas friamente, sem circunstâncias. É um texto bem mais informativo do que emocional. Quase um registro enciclopédico da literatura marginal da zona Sul carioca desde os anos 70.

Mas, como informativo, o livro é um mergulho no tempo recente. Eu que sou da geração imediatamente posterior à do poeta, curti ler sobre momentos especiais da vida na cidade. Chacal fala das “dunas do barato”, como Waly Salomão apelidou as dunas do Pier, na praia de Ipanema. E isso me trouxe a minha adolescência, início dos anos 70, quando surgiu a tanga e o amor era livre, mas difícil. Em 1975, o Asdrúbal, com a peça Trate-me leão. “Nós somos jovens...”

Volto a dizer: é um livro honesto. Honesto sobretudo com o que Chacal me parece ser, como poeta e como pessoa. Apesar de minhas opiniões rabugentas e pedantes, o livro me levou a desfrutar melhor a sua letra e mais ainda seu dom de maestro de movimentos cósmicos em torno da poesia, sobretudo a poesia recitada em público. De extrema importância soltar o verbo (lembro-me do poeta Erickson Luna esbravejando seus versos perfeitos no mercado de Recife para um público diverso...), embora não tenha nada contra livros de poesia.

O título do livro, Uma história à margem, com direta referência ao movimento do qual fez parte e ajudou a criar, me lembrou a abertura que Paulinho Pires fez do livro sobre Torquato, a quem situa como um artista “à margem da margem da margem”. Colocado nesta perspectiva, as coisas se encaixam melhor na seqüência de leitura que fiz, pois estabelece um nível de hierarquia entre radicalismos distintos dos três poetas.

E saio convencido de que devo ser mais generoso em minha leitura. Abaixo versos de Chacal:

O outro

só quero
o que não
o qee nunca
o inviável
o impossível

não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível

só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o inaudito

não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível

eu quero
o outro.

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