sábado, 6 de outubro de 2012

Gritos e sussurros

No post abaixo, sobre pelos pubianos, mencionei que da minha geração para cá até a forma de gemer mudou. Aqui e no Facebook várias amigas revelaram uma curiosidade sobre o que, afinal, eu quis dizer com essa afirmação tão improvável. Bem, tento aqui tratar disso, retomando do post anterior a ideia de “coletividade” que se impõe, quase que "durkheinianamente", sobre nossos costumes tupiniquins. As modas e as ondas não se restringem a roupas, circuitos boêmios e comportamento público. Elas intervêm também na intimidade, pois esta é cada vez mais compartilhada em redes sociais, sejam elas virtuais ou reais.

Como sempre, corro um grande risco ao generalizar as coisas, mas como estamos num blog cujo subtítulo aponta para “escritos sem compromisso”, olho a coisa como se estivesse à mesa de um botequim, refletindo sobre mitos fulgurantes da nossa cultura contemporãnea. Assim, comparativamente, retorno à minha geração, que, com toda a repressão política e sexual que se abatia sobre nós, ensaiou uma fracassada revolução sexual. Estou falando dos anos 1960-1970, quando a pornografia era perseguida e o rigor moralista católico se manifestava por meio dos olhos vigilantes de pais, professoras, padres, inspetores etc. Sexo era um tabu, inclusive e sobretudo enquanto discurso — e o anjo pornográfico Nelson Rodrigues captou muito bem essa energia que subjazia sussurrada sob o manto de normalidade.


Ao contrário de hoje, não se falava do assunto abertamente, exceto na intimidade do quarto, nas alcovas barrocas da literatura erótica, ou na pornografia descuidada, como os catecismos de Zéfiro, que se adquiriam em certas bancas de jornal, e serviam como catálogos de perversões mal ilustradas. À rua, a juventude chamada de “transviada” — que, com seus cabelos longos e aderência ao rock’n’roll, se extraviara do bom caminho —, era agredida verbalmente e, às vezes, fisicamente. Os meninos com cabelos compridos eram tachados de “viados”. As meninas, putas. Todos vistos como viciados, almas perdidas: “aonde o mundo vai parar, dona Rosinha?, indagavam, aflitas, as mães às suas comadres de igreja”.

Mas, a partir da revolução comportamental de 1968 (uma espécie de Primavera Árabe mundial da época; só que em vez de hijab, batas indianas; em vez de moderação e abstinência, sexo, drogas e rock’n’roll), a nova geração, não sem conflitos, ensaiou uma afirmação existencial própria, negando o moralismo hipócrita dos caretas. Começavam, embora mais no plano do desejo do que no da realização concreta, tentativas de enterrar aquele moralismo religioso, quase rural. Isso se refletia em todos os campos, na academia, nas artes e na filosofia, e no comportamento cultural (é nesse momento, por exemplo, que a Tropicália emerge como movimento de vanguarda).

É claro que o buraco é mais embaixo. O psiquismo das pessoas não muda da noite para o dia, convertido pela “revolução”. Mas ali começava um movimento dialético, alternando enfrentamento e aderência ao sistema, que acabou por, de fato, transformar o comportamento da sociedade, ainda que a caretice e o moralismo tenham sobrevivido relativamente bem e se apresentem hoje com roupagens mais adequadas aos novos tempos. Não é à toa que vejo gente da minha geração reclamar que os filhos são mais caretas que seus pais haviam sido. O conservadorismo continuou latente, e as contradições entre discurso libertário e ação repressiva explodiram nos limites, culturais e psicológicos, de cada um.


No plano do discurso, começou realmente um movimento importante, que ao longo do tempo acabou mudando a sociedade. Hoje, somos muito diferentes do que éramos então. Porém, a caretice e o moralismo conservador permanecem renascidos e revigorados por novas expressões e atitudes. Os jovens nas igrejas, por exemplo, têm cabelos compridos e tocam corinhos em ritmo de rock'n'roll. Como se vê, dos anos 1960 para cá, muita coisa se perdeu nesse processo, além dos pentelhos.

O tabu que remetia o sexo para a alcova se desfez à proporção que o assunto veio para a sala de jantar; à medida que saiu do fundo das bancas de jornal em esquinas obscuras para as livrarias mais nobres da cidade. O assunto virou talkshow em programas como Papo Calcinha, Saia Justa, entre outros; foi desinfetado por sexólogos pops (como a menina do Altas Horas) e médicos como Dr. Drauzio Varella; virou bestseller, numa literatura rápida, em que a narrativa dramática — como se via, por exemplo, em um Henry Miller ou numa Anaïs Nin — perdeu espaço para a descrição detalhada, ginecológica e, voltando à noção de pureza e impureza, asséptica.

Há alguns anos, médicos alertaram, preocupados, que havia uma procura muito grande de adolescentes saudáveis por cirurgias plásticas, para aumentar os peitos. Alguém conjecturou que elas estavam seguindo um modelo estético das atrizes pornôs americanas, que entopem os peitos com silicone a ponto de quase explodirem. E, quando trepam, eles balançam como melões soltos sob a pele, como se não fizessem parte do corpo. Os filmes pornôs, que nos anos 1970 fizeram experiências estéticas (clássicos como Garganta profunda e Atrás da porta verde, e o surpreendente musical Alice no país das maravilhas, por exemplo), tornaram-se uniformes e educativos. Mostram tudo explicitamnte, mas encaretaram. E estão acessíveis a qualquer um pela internet. Daí, talvez, venha essa estética pornô clean, que não se restringe ao corpo, mas às formas de trepar e... de gemer.

A sonoridade que escapa pela garganta durante um ato prazeroso e proibido — e que, portanto, nos aproxima o máximo possível da condição humana — é mais gutural, chorada, suspirada... ecoa num volume explosivo, por mais sussurrada que seja. Está sempre por um fio, entre os dentes, precária. Não pode ressoar da mesma forma que os gemidos industriais, assépticos, e, num certo sentido, banais, que emergem de grandes produções pornôs, mesmo que o cenário destas seja a nossa cama.

4 comentários:

ANNA disse...

De uma maneira ou de outra, “Durkheinianamente” os mais jovens acabam por responder aos estímulos que a geração anterior produziu, para um lado ou para o extremo oposto, aí já não tão Durkhein.
Meu filho de 18 e meu sobrinho de 17 anos estão cansados de me surpreender com conceitos tão caretas que me pergunto por quem diabos foram educados, ou se num descuido, entre a infância e a adolescência, não foram trocados por algum antepassado. Ainda esta semana perguntei a eles porque são tão cheios de etiquetas e classificações para todos e como resposta ouvi que os movimentos de abertura e fechamento dos valores morais são cíclicos e que agora eles estão no “tempo do vovô”. Eu acho que se parecem mais com o bisavô, mas...
Por outro lado, existem aqueles, tão ou mais jovens que os “meus bebês”, que caminham numa estrada completamente desprovida de limites e onde a ideologia é a da quantidade sem restrição. De corpos, de formas perfeitas a qualquer custo, de gemidos colocados com a precisão de sustenidos numa partitura e, infelizmente, sem nenhuma estrutura emocional ou utopias sociais.
Na verdade, penso que vivemos um período de transição em que as relações pessoais, sociais e econômicas se estremecem e se acomodam, na tentativa de encontrarem os códigos pelos quais nos comunicaremos e nos faremos entender neste mundo onde até o que não é sólido se desmanchou no ar. Até lá, parece que tudo vai ficar cada vez mais estranho, confuso e,ao menos para mim,difícil de perceber os contornos.
Bjs,
Anna Kaum.

ANNA disse...

Bom dia e bom voto,amigo!

ipaco disse...

Oi Anna, pois é, acho que estou ficando velho. Estou sempre me referindo à minha geração como referência... :-)

Bjs.

PS agora somos amigos no FB!

ANNA disse...

Velhos certamente estamos os dois, mas não creio que venha daí nosso espanto.Eles são muito o outro extremo e não foi nada nem parecido com isso,que imaginamos, nasceria dos nossos gritos.
PS Pois é,e eu virgem,virgem,fico toda assustada com esse jeito esquisito de fazer amigos.
Bjs.