Newark, Nova Jersey, 7.11.2012. Embora hoje seja meu segundo dia, a “sensação
térmica”, como se diz por aqui é como se tivesse acabado de chegar. Ontem, foi
um dia de espantos, assombros e encontros. Estava insone e completamente
chapado pelo cansaço da viagem, preocupado com o que haveria de encontrar por
aqui, após a passagem do furacão Sandy, e pelo que virá pela frente, com a
previsão de uma nevasca para hoje à noite. Meu fuso horário ainda é o do Rio,
três horas à frente. Engraçado, ano passado, quando fui à Paris, quatro horas
de diferença, não tive jet lag. Dessa vez senti e ainda sinto o fuso horário,
como uma espécie de torpor. A calefação seca o ar e parece que estou ainda no
avião, com a boca e o nariz secos. Mas vou me adaptando. Escrevo rápido, sem
muito rebuscamento, preocupado com o tempo da bateria do computador. Ainda não
tenho tomada que funcione aqui.
Hoje, sim, senti a cidade. Acordei com a expectativa de
neve, mas tive uma notícia melhor: a vitória de Obama. Alívio e, por estas
bandas, o Nordeste americano, a maioria está contente. Como acontece sempre
quando estou em trânsito, fico num estado de alerta sensível nos primeiros
dias. Por isso, aproveito para escrever. Faz dez anos que vim à Nova York pela
última vez, e estou aproveitando o estranhamento para anotar coisas, que depois
desaparecerão na naturalização que se dá com a adaptação à nova realidade. Esse
estado é muito intenso. A sensação acordou já no embarque, ainda no Rio. E
minha atenção foi se aguçando a cada etapa: embarque, acomodação no assento, decolagem,
viagem, aterrissagem, chegada, imigração, malas, alfândega, transporte para a
cidade. O primeiro passo no novo solo.
Fui acolhido por Alberto Ocampo. Um taxista colombiano,
amigo de meu pai. Foi um luxo. Atravessei do aeroporto JFK para Nova Jersey,
passando pelo Brooklyn e fazendo um inventário dos destroços que Sandy deixou.
A temperatura? Zero grau. O horizonte de edifícios nova-iorquinos continua lá.
Um cartão postal clássico da cidade, como aquela foto acima do Corcovado, em
que se vê a Baía de Guanabara; ou os telhados de Paris. A diferença é que aqui
e em Paris a luz é cristalina. No Rio, só no outono e no inverno o ar permite
uma mesma luz tão limpa.

Sempre viajo com um romance. Normalmente aquele que está há
tempos na cabeceira, mas que, no corre-corre do dia a dia, nunca abri. Trouxe o
livro da portuguesa Alexandra Lucas Coelho, chamado E a noite toda (ia trazer o romance do Paulinho Pires, que também tem a ver com meu momento, mas não achei na minha bagunça, na hora de fazer a mala) A história
também é marcada por viagens, aeroportos, check points, e um romance
polifronteiras, como já vivi também. E os personagens são jornalistas cobrindo
conflitos pelo mundo, o que também me soa bastante familiar. Pautas, deadlines,
hotéis baratos, entrevistas coletivas, fontes obscuras, fotografia, perigo.
Vamos ver como acaba. O livro é realmente muito bom, com uma narrativa leve,
mas profunda. Texto ligeiro, conteúdo profundo. Uma boa combinação.
Pensei nas minhas viagens, Manágua, os sandinistas (a primeira máscara que ilustra este post é de lá);
Amazônia, a natureza; Paris, o amor que ganhei e perdi entre estações. E as
coisas materiais que marcam um certo cosmopolitismo, o jantar especial com
vinho de adega; os encontros com personagens especiais e suas histórias extraordinárias.
Os idiomas e as confusões que emergem em atos falhos, como responder a Alberto,
ontem, em francês uma pergunta feita em castelhano. Essas coisas.
Quando estou neste tipo de situação, uma espécie de narrador
literário assume meus olhos e tudo o que vejo vai se transformando em
narrativa. Frases de efeitos, no início, bem exageradas e piegas, mas depois
vou lapidando o texto. Faço anotações, escrevo códigos que depois descortinam
toda uma ideia complexa, com muitas ramificações. Queria ser assim o tempo
todo, mas não suportaria tanta sensibilidade. Acabaria com queimaduras de
terceiro grau. Depois que a naturalização se impõe, o narrador vai embora. Só
aparece em momentos especiais.
Acontece que esta é uma viagem especial. Além do que foi
mencionado há uma circunstância especial e inédita: o encontro com meu pai. É
simultaneamente uma despedida e um encontro original. Pela primeira vez estou
com meu pai sem a mediação do Ego, dos projetos de sucesso, do artista genial.
Pela primeira vez encontro o homem, com seus altos e baixos, à medida que a
sombra da morte paira à esquina. A memória rateando, um tumor no centro do
corpo, as funções mais básicas submetidas a uma sensibilidade outra, limitadora.
O apetite que se sacia antes do tempo; as manias obsessivas que se desvanecem
em meio à uma sensação de desordem geral inevitável.
Mas, apesar desses sinais, apesar da magreza assustadora, lá
está o velho. O humor de sempre, o tom de voz, o carinho. O personagem é quase
o mesmo. Mas a relação também mudou. Estamos sem expectativas. Apenas estamos
juntos e vivemos o agora. E o tempo passa. A TV ligada, o som ligado, certa
cacofonia tecnológica para nos lembrar de um cotidiano que, antes, incomodava e
agora traz um alívio, como se pudéssemos reinstalar a normalidade por meio
desses aparelhos que nos cercam a vida inteira. E, assim, este é o momento: viagem,
viajantes, cotidiano, provincianismo, cosmopolitismo... encontros e despedidas.
Tudo ao mesmo tempo agora.