sábado, 14 de fevereiro de 2009
Arqueologia de botequim
O Armazém Senado, botica de esquina no Centro antigo do Rio (todas as fotos desse post são de Custódio Coimbra)
Queridos amigos, aproveito este Sábado 14, cujo significado especial vocês podem ver num dos posts abaixo deste Pendura Essa, para dizer que amanhã a Revista do Globo publica uma reportagem deste pobre e desvalido escriba e do fotógrafo Custódio Coimbra, uma fera dos cliques urbanos, sobre bares centenários. Matéria que vou reproduzir aqui exclusivamente para os meus seis ou sete leitores cativos. A idéia original partiu do Custódio, que há meses vinha insistindo em fazer uma parceria comigo de texto e foto sobre esse assunto, nós que fomos pioneiros nas edições do Rio Botequim. Ele ia propor publicar na Editoria Rio do jornal, mas o convenci de que na revista, não só a matéria seria mais valorizada, como não correria o risco de ser substituída em cima da hora por um assunto qualquer considerado mais quente.
Conversamos então com a editora da revista, Isabel De Luca, que topou de imediato. Propusemos a ela evitar os bares centenários já consagrados, como o maravilhoso Bar Brasil, o Bar Luiz, Aurora e coisa e tal. A idéia era mesmo cavucar pelos velhos bairros do Rio e Niterói, em busca de casas menos conhecidas do público, digamos, leigo. O problema é que, nesse momento, me vi às voltas com a defesa de minha tese de doutorado e tive que ir adiando a matéria, incialmente prevista para novembro do ano passado. O Custódio, no pique de sempre, foi tocando as fotos de me mostrando, para seduzir.
Bem, enfim, passada a etapa acadêmica, pude voltar ao assunto para meu próprio deleite. E, vendo as fotos de Custódio, percebi de cara que essa reportagem merecia um tratamento diferenciado dos textos mais convencionais sobre botequim e boemia, que tendem a louvar o exotismo dos estabelecimentos e descrever os serviços. Percebi que o que ligava todos essas casas era o comércio de rua e o fato inexorável de que, sem herdeiros, esses bares centenários (assim como outros tipos de comércio, como barbeiros, açougueiros, jornaleiros etc.) vão tomando o rumo do fim. Esse acabou sendo o fio condutor do texto, o que deu à reportagem um cunho um tanto sociológico, mas, espero, sem academicismo exagerado.
Bem, como sempre, deixo ao julgamento de vocês. Abaixo reproduzo o texto que, amanhã, estará nas bancas.
Revista O Globo, nº 238, 15 de fevereiro de 2009
Os centenários — A luta de bares que existem desde os tempos do Rio Antigo para sobreviver aos novos hábitos da cidade
Paulo Thiago de Mello
Bar do Jóia, com a turma da confraria Viúvas do Gaiato desfrutando a feijoada de dona Neide
Em dezembro do ano passado, fregueses de um pé-sujo centenário, escondido num sobrado de esquina à Rua da Conceição, no Centro do Rio, deram um abraço simbólico ao bar. Era mais um encontro da confraria Viúvas do Gaiato, que reúne fregueses e amigos do Bar do Jóia. Alem da cerveja gelada, do saboroso tempero da feijoada de dona Neide, da conversa fiada e do clima de gozação que marcam cada encontro do grupo, pairava sobre os comensais um sentido de urgência: é preciso salver o velho boteco, que anda assombrado pelo fantasma do fim.
A poucos dias de se tornar centenário, o Bar do Jóia (oficialmente Café Rio Paiva) compartilha com inúmeros e pouco conhecidos botequins do início do século passado o dilema da sobrevivência, confrontado não só pela concorrência com fastfoods, restaurantes de comida a quilo e pastelarias, mas sobretudo pela ausência de herdeiros com disposição para tocar o negócio.
O caso do Bar do Jóia é exemplar. Desde que o português Joaquim Nunes da Silva, o seu Jóia, faleceu, em abril de 2007, aos 84 anos, sua viúva, dona Alaíde, tem tido dificuldade para administrar a pesada rotina do bar:
— Estou muito cansada — admite.
E o estabelecimento já teria fechado, não fosse a insistência da freguesia, que luta para que o Bar do Jóia permaneça aberto pelo menos até seu centenário, que será comemorado em uma série de eventos da confraria, a partir de 12 de março. Em seus encontros, o grupo louva a memória de seu Jóia, famoso pelo humor instável e uma rudeza que renderam inúmeras histórias e anedotas. Ao serem recontadas, essas narrativas (muitas delas relatadas no blog da confraria) mantêm vivas a presença do patriarca.
O grupo também discute possíveis soluções para o dilema, insistindo, por exemplo, para que um dos membros da confraria, um dentista com recursos, compre o bar. Mas, apesar da gravidade da situação, as marcas principais do boteco são a jocosidade e o bom humor. A própria idéia de abraçar o bar é uma gozação póstuma com seu Jóia, que detestava ser tocado.
O Bar do Jóia não esconde a idade. Pé-direito alto, portais em arco, pôsteres de mulheres dos anos 60 nuas, geladeiras de madeira, entre outros elementos típicos, fazem do boteco um cenário do Rio Antigo. Mas é o humor do dono, mesmo após sua morte, que marca o lugar. Para o escritor e compositor Moacyr Luz, seu Jóia é um tipo de comerciante em extinção:
— Pra mim, feito mico-leão-dourado, estão acabando os donos de botequins que só agem na intuição, os que nasceram pra viver atrás do balcão sem puxar saco do cliente, nem inventar marketing pra aparecer na mídia. Dono de boteco que sabe a diferença de São Jorge pra São Benedito e não concorda que jiló seja fruto ou fruta, aquele que detesta cartão de crédito, que não suporta emprestar garrafa, que jamais oferece o telefone pra uso pessoal e, de preferência, que reza para que não apareçam mais fregueses além dos chatos de sempre.
O Restaurante 28 com o velho espelho e os ganchos para pendurar chapéus e paletós
O problema da sucessão em empresas familiares se tornou relativamente, sobretudo nos pequenos comércios de rua. As gerações mais novas se formam em outras profissões, consideradas mais nobres, e perdem o interesse pelo negócio. Assim, ironicamente, o boteco que os sustentou acaba fechando ou cai em mãos de novos proprietários, que invariavelmente transformam o lugar. É esse o dilema dos irmãos Amândio e Jacinto Salgado, do Restaurante 28, localizado não muito distante do Bar do Jóia, à Rua Barão de São Félix:
— Futuramente isso vai acabar — prevê Amândio, de 71 anos. — Os filhos não querem saber do negócio. Então, só vai durar enquanto estivermos aqui.
No comando da casa desde 1960, quando chegou de Portugal convidado por parentes, seu Amândio vive no segundo andar do sobrado, como era comum no comércio de rua da cidade até meados do século passado. No fundo do bar, numa espécie de quintal, vive uma das empregadas com sua filha. Tudo isso reforça a atmosfera familiar do lugar.
O amplo salão do Restaurante 28 — cujo nome oficial é Restaurante e Café Pastoria — ainda tem antigos ventiladores nas laterais da parede e ganchos para que o cliente pendure o chapéu e o paletó. Na grande cozinha, duas senhoras dividem com a cozinheira Antonia da Costa, de 78 anos, a tarefa de preparar especialidades como o cabrito, elogiado na última edição do Rio Botequim, o leitão à pururuca e o tradicional cozido, com atendimento simpático da garçonete Claudia Machado. Coisa fina. O Restaurante 28 lembra o saudoso Penafiel do Saara, fechado no ano passado, pouco antes de completar 90 anos. Trata-se de uma memória gastronômica que vai, aos poucos, desaparecendo.
Na Ponta D'Areia, em Niterói, o pequeno Decolores, prestes a completar 100 anos, não enfrenta o problema da falta de herdeiros para levar adiante o bar. Comandado pelos irmãos Marcelo e Ângela Alves, ambos com menos de 50 anos, a casa sofre mesmo é com o rigor das regras de trânsito da estreita rua, situada de frente para a Baía de Guanabara. a proibição de estacionamento fez cair a clientela do bar.
—Estamos mal. Desde que essa operação exagerada dos guardas de trânsito começou, há cerca de dois anos, o movimento caiu entre 70% e 80% — diz Marcelo Alves. — A notícia de que não há lugar para estacionar se espalha e as pessoas deixam de vir. É triste ver que, em pouco tempo, esses agentes de trânsito conseguiram desfazer o trabalho de uma vida inteira.
E Marcelo pode realmente falar em vida inteira, já que trabalha no Decolores desde os 9 anos, quando começou ajudando o tio Fernando Fernandes. Ele assumiu a casa após o falecimento de Fernandes, 1998. Mesmo assim, o pé-sujo continua sendo ponto de encontro de seresteiros, às terças e quinta-feiras, e dos amantes de frutos do mar, especialmente as famosas sardinhas fritas, servidas abertas, e dos pratos tradicionais de bacalhau, em especial a versão à portuguesa, com batatas coradas, azeitonas pretas, ovos cozidos, cebola e pimentão.
Seu Antonio Ferreira, de 76 anos, um dos fregueses mais antigos do Decolores, tem uma memória prodigiosa
Seu Antonio Ferreira, de 76 anos, é um dos fregueses mais antigos do Decolores. Ele conheceu o primeiro dono da casa, Carlos Vieira de Castro, quando o bar se chamava Café Vila do Conde. Àquela época, o bairro da Ponta D'Areia era uma colônia portuguesa, o que valeu ao lugar o apelido de Portugal Pequeno. Hoje, a colônia se dispersou e o velho bairro passou a abrigar estaleiros como o Mauá Jurong, que modificaram sua morfologia social, transformando-o em área industrial.
Com ou sem estacionamento, é um excelente programa ir ao Decolores e sentar-se à beira da Baía de Guanabara, diante de um pequeno cais com várias embarcações pesqueiras e de plataformas de petróleo sendo construídas, com a Ponte Rio-Niterói ao fundo. E, nesse cenário inusitado, comer um farto bacalhau (o prato da casa serve três pessoas) ouvindo velhos boleros na voz de seresteiros, um deles, o garçom Joel Santana, quando está de bom humor.
O Armazém Senado, localizado à Rua do Senado, também escapou à sina de infortúnio na sucessão familiar. Com 101 anos de idade, o estabelecimento é administrado por Antônio Magalhães Pires, de 78 anos, e seus dois filhos, Henrique e Fernando. A casa mantém um dupla freguesia, os moradores da vizinhança, que recorrem ao Senado para consumir itens de armazém, como artigos de limpeza, produtos vendidos a granel, secos e molhados diversos e até camisas e sandálias Havaianas. E na hora do almoço e do happy hour chegam os fregueses do bar, em busca dos petiscos, da cerveja, da boa carta de cachaça e de conversa para jogar fora. Os velhos garrafões de vinho deram lugar a versões finas, do Chile e da Argentina, além de marcas nacionais, como as da Casa Valduga. Graças a um acordo de redução da margem de lucro, os vinhos são vendidos a preços incrivelmente baixos. Por isso, ninguém mais se espanta ao ver sobre o balcão do Senado garrafas de cachaça, cerveja e espumantes, que saem por menos de R$ 30.
O Armazém Senado, com seu Antonio sentado numa cadeira ao fundo: velha botica carioca
Boteco de esquina, Armazém Senado é uma grande botica e, como tal, um exemplo da origem do termo botequim, que nos dicionários aparece como uma redução do diminutivo botiquinha. O lugar onde os homens arrematavam as compras da semana, e aproveitavam para beber vinho e beliscar um salaminho, enquanto as "patroas" faziam a feira. No Senado, essa prática, com poucas mudanças, como a adesão da presença feminina, ainda se repete.
Esta é também uma das características de outro boteco centenário: o Paladino, na esquina das ruas Uruguaiana e Visconde de Inhaúma, ou Rua Larga, como preferem os tradicionalistas. Armazém de produtos finos e importados, a casa se estende internamente em mais dois ambientes, onde funciona o bar propriamente dito. Sua especialidades são as omeletes, que saem em versões requintadas, e os sanduíches suculentos, além do chope claro e escuro de qualidade.
As omeletes do Paladino são um prato requintado, crocantes por fora e moles por dentro
Com seus cafés, botequins, tascas e casas de pasto, o Centro do Rio viveu no início do século XX a sua belle époque, num momento em que a capital federal se transformava em metrópole e influenciava culturalmente o resto do país. Passados 100 anos, como não poderia deixar de ser, a cidade mudou completamente, para o bem e para o mal. O comércio de rua perdeu prestígio para os shoppings; ofícios desapareceram, e, com eles, a memória de um certo modo de viver na cidade.
Esse processo de transformação é inevitável e faz parte do transcurso natural da vida urbana. Os hábitos vão mudando à medida que novas gerações passam a consumir a cidade. Como dizia o jornalista e sociólogo Robert Ezra Park, um dos pais da sociologia urbana americana, uma cidade é muito mais do que o cojunto de ruas e bairros que a configuram; ela é sobretudo composta dos sonhos, desejos e usos que dela fazem as pessoas que as habitam. Mas a resistência também faz parte do processo, como mostra a mobilização da confraria do Bar do Jóia, e, em alguns casos, as histórias do passado conseguem comover as novas gerações, que voltam a valorizar costumes, do contrário fadados à extinção.
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7 comentários:
caraca, paulinho, que texto, que tudo! bj
caraca, paulinho, que texto, que tudo! bj
Valeu, amore. Fol bom o samba ontem, lá no Salvação, não?
Caro Paulo, bela reportagem. Inspiração para amadores como eu.
Grande abraço
Ranier
Podiam ter posto a foto do Joel, do Decolores. E, se vídeo fosse, com ele cantando.
É um tipo único, o Joel.
Quando vamos lá, pedimos Skol para nosso consumo e sempre Brahma para ele tomar. É isso mesmo: o garçon tem preferência por esta marca e nos acompanha nos brindes.
Demos azar, Tania. No dia que aparecemos o Joel estava num puta mau humor e proibiu o Custódio de fotografá-lo... O homem é lua, fazer o quê?
Beijim. pt
Arrepiante Ipaco!
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