sábado, 18 de abril de 2009

Em busca dos malditos


Manuscrito do Gould: sua obra ficou fragmentada, espalhada e inacabada

Meu amigo Marcelo Moutinho, que pode ser encontrado no link do Pentimento abaixo ou clicando diretamente aqui, escreveu um post sobre o grande personagem nova-iorquino Joe Gould, um escritor, vagabundo, dos anos 40-50, que trocava seus textos por bebida e algum canto para dormir. Vivia nas ruas de Manhattan desde que baixara a inspiração para escrever sua obra-prima: The Oral History of Our Time (A história oral de nosso tempo), um romance sobre os personagens das ruas, moradores sem-tero do Metrô, alcoólatras e malucos como ele, pessoas que contavam suas histórias ou pensamentos ou sentimentos, em conversas longas ou curtas, inteligentes ou tolas, saborosas ou irritadas. Isso bem antes que o conceito sociológico de história oral fosse criado.


Retrato de Joe Gould, feito pela Agência Magnum

Já escrevi sobre isso no Pindorama, mas o assunto é recorrente e fascinante. Acho que essas figuras são essenciais à vida urbana, embora estejam se tornando cada vez mais escassas. Penso, trazendo a coisa para cá, no Profeta Gentileza, por exemplo. Essa coisa intermediária entre a marginalidade e a genialidade de quem não pode mais viver sob as regras convencionais. Pessoas que vêem o mundo de um jeito único e, quando cruzam nosso caminho, primeiro assustam e, depois, nos encantam e seduzem, porque se tornam a encarnação da certeza de que a possibilidade humana de ser e estar no mundo é infinita. Diante de suas dificuldades com o mundo convencional, elas se reinventam, muitas vezes de forma sofrida, dramática ou trágica.


Manduka na capa de seu primeiro disco, de 1972

Essa coisa foi tão marcante para as gerações dos anos 60-70, que até se inventou o adjetivo maluco-beleza. Quem é da minha geração deve se lembrar do Jimi Hendrix, um mendigo que dormia nas areias do Pier de Ipanema e sua presença era denunciada pelo forte cheiro de éter. Andava com um violão compondo canções cósmicas. Desapareceu repentinamente, numa época que se removiam favelas a ferro e fogo e sumiam com os moradores de rua da zona Sul. Mas isso é outro assunto.


Erickson Luna recitando em Recife

Penso também nos artistas malditos, sobretudo escritores, poetas e músicos, que são também personagens limítrofes entre a normalidade e a loucura. Normalmente elaboram uma arte requintada, arguta, expressiva e absolutamente marginal, que passa desapercebida pelo mainsstream, pela indústria do setor, pela mídia e todos os mecanismos que hoje domesticam o artista convencional. Eles não se curvam ao sistema, por assim dizer, mais por uma insubordinação atávica do que por uma postura ideológica.


A capa do livro de Luna

Joe Gould era desse quilate porque escrevia para beber. Porém, mais do que um escritor, era um ilusionista, pois sua obra-prima, A história oral de nosso tempo, nunca existiu na inteireza. Apenas em fragmentos que ele fornecia, quando as dúvidas sobre um texto tão exuberante começavam a crescer entre aqueles que o conheciam. E eram trechos geniais. Após sua morte, em 1957, se não me engano, a obra completa nunca foi encontrada. O jornalista que fez seu perfil para a revista New Yorker, Joseph Mitchell, foi em vários endereços onde Gould dissera que havia deixado, fregmentados, os manuscritos da História oral. Necas. Ela nunca havia sido concluída. Apenas trechos que apareciam aqui e ali, e que Gould relutava em mostrar e só em troca de uma boa dose de bourbon (seria ele adpeto do Jack ou do Jim?), liberava a leitura para uns poucos e ávidos privilegiados.


Manduka no México

Na parede do boteco nova-iorquino Minnetta Tarven, freqüentada pelo velho escritor-ilusionista, pode-se ler: "Escrevo para o meu próprio deleite, já que sucede de eu ser o único Joe Gould deste sistema solar. Com isso, não quero excluir a possibilidade de que existam outros sistemas solares cheios de Joe Goulds." De fato, os universos paralelos estão cheios de figuras geniais e até mesmo mais interessantes que Gould, no sentido de terem produzido de fato obras essenciais. Penso, por exemplo, no Erickson Luna, o poeta pernambucano que vivia nas ruas do Recife, cuja voz rascante troava nos mercados e praças em meio a versos de extrema qualidade e beleza. Luna publicou seus poemas num livro solo e em algumas coletâneas apareceram poemas dispersos. Esse era radical e maldito a vera. Morreu na glória da sarjeta, poeta das ruas. E quem o viu recitar, absolutamente mendigo, absolutamente poeta, não o esquecerá.

Luna formava com Francisco Espinhara, outro grande poeta do Recife contemporâneo, falecido pouco meses depois de seu companheiro de letras e bar, o movimento da Poesia Pessimista. Não sei quem cunhou o nome, penso que talvez ele limite um pouco a força lírica dos versos desses homens geniais. Meu amigo jornalista do Recife Braulio Brilhante, amigo de ambos, tem a tarefa hercúlea de escrever a história desses poetas.

Foram forjados na mesma estirpe: Manduka, Sergio Sampaio e Glauber Rocha, entre outros. Coincidentemente ou não, todos mortos. Talvez os tempos atuais não permitam mais o surgimento ou a permanência de figuras como essas, cujos ecos aparecem incompletos em histórias de raro esplendor. Pessoas que, depois de mortas, são transformadas em fetiche (bem, um pouco como faço agora, mas pelo menos tenho a desculpa de ter conhecido a maioria deles).

Acho que, mais do que nunca, são figuras boas para a gente garimpar por aí, em busca de seus resquícios, os fiapos de suas idéias, suas obras incompletas. Tentar entender suas mensagens. Vejo uma garotada, na faixa dos 20 e poucos, escrevendo febrilmente, compondo música, fazendo filmes e buscando inspiração fora das convenções. Mas o mundo se tornou muito audiovisual e virtual, de modo que a carne e o sangue das experiências me parecem um tanto diluídas. Por isso acho os botequins, os mercados, as ruas e os becos lugares viscerais.

Não se trata de salvar a memória de uma forma de fazer arte ou simplesmente de estar no mundo, embora isso seja importante tamném. Trata-se mais de um lembrete de que o mundo não se limita aos limites que conhecemos.

Obs.: As fotos desse post foram surripiadas da internet e algumas são reproduções. Infelizmente não sei o nome dos autores originais.

2 comentários:

Anônimo disse...

o momento é mais horizontal que vertical, acho que é a internet. como Será que vai ser no futuro? Isso que fazemos aqui vai ficar velho, né? já tá? rs beijao, belo post!

ipaco disse...

Sei lá, acho que estou ficando velho, sacumé?