quarta-feira, 29 de abril de 2009

Uma viagem ao oriente


Aninha e Bianca, numa birosca de beira de estrada, a caminho de Paraty

Pegamos a estrada no carro de Bianca. Eu, ela e Ana D. queríamos aproveitar a rara oportunidade de poder desfrutar quatro dias seguidos de folga, coisa rara para quem trabalha em redação de jornal, sobretudo no velho Jornal do Brasil. Nosso destino: Ilha Grande, onde tenho pouso certo na pousada de um casal amigo, gente simples, da terra, e de grande coração. Fica num recanto entre Abraão e Lopes Mendes, uma enseada ainda relativamente preservada da ocupação que tomou conta da ilha nos últimos anos. Nossa idéia era se largar ao sol, beber cerveja, nadar, comer e o que mais pintasse...

Já na estrada, embalados pelos CDs de música africana que levei, entramos naquele clima de euforia que toma conta de gente quando colocamos o pé na estrada, apesar do horário muy temprano. E seguimos discutindo os assuntos mais estratosféricos, aquelas conversas que começam no trabalho e terminam em sexo e relacionamento. E estávamos tão embalados nos enredos que, quando demos por nós, havíamos passado a entrada para Angra e, mesmo que fizéssemos o próximo retorno, perderíamos a última barca do dia para a Ilha Grande.

Primeiro veio aquela irritação generalizada, mas logo estávamos rindo de nossa distração e, calculando que estávamos a essa altura perto de Paraty, decidimos dormir na pequena cidade colonial e seguir para a Ilha Grande no dia seguinte. Chegamos à calçada de pedras centenárias quando a tarde começava a cair. Descolamos uma pousada na periferia (na verdade, dois quartinhos na casa de uma mulher local) e fomos almoçar-jantar. Descolamos um bar-restaurante na parte histórica e abrimos os trabalhos com umas branquinhas da região e logo nossa conversa pegava fogo. Beliscamos uns pastéis de camarão e coisa e tal e, com o cair da noite, veio o sono e o cansaço da viagem.


Bianca ainda animada, apesar das horas na estrada

Rumamos então para os quartos para uma sesta atrasada. Foi coisa de umas duas ou três horas e despertamos com disposição para passear na parte velha da cidade e descolar um lugar legal para jantar. Achamos, escondido num dos extremos de Paraty, de frente para um canal, uma pequena porta, com ar oriental, de onde vinha uma mistura forte de cheiros: incenso e temperos misteriosos. Entramos.

Era uma casa comprida. Na primeira parte, um balcão, onde ficava o caixa, e ao lado um palquinho, onde um sujeito tocava uns mantras indianos. O restaurante, porém, era tailandês. Incensos de cedro dominavam a casa e o calor suave contrastava com o frio da noite. Nos sentimos imediatamente aconchegados. Uma deusa, vestida com uma espécie de quimono de seda, veio nos receber e nos guiou até uma mesa nos fundos.

Depois de examinarmos o cardápio, minhas amigas pediram uma sopa de gengibre e eu vi uma entrada que me lembrou os nhoc nums vietnamitas (não sei se é assim que se escreve), que minha ex fazia com exímia dedicação. Uma espécie de pastel recheado com peixe triturado com umas ervas e leite de coco (pois é, no Vietnã se usa leite de coco e dendê). Mas nesse caso, em vez de massa, usava-se uma folha de alface, que servia de casca. Depois de enrolar aquele conteúdo exótico na folha, mergulhava-se num pote com uma espécie de molho, que lembrava shoyu, mas não era. É esse os tais nhoc nums, resultado de várias misturas. Coisa da sabedoria oriental.

Enquanto me entretinha na delicada tarefa de enrolar os bolinhos de peixe e mergulhar no pote de molhe, mal reparei que minhas amigas estavam com uma expressão esquisita. O seu silêncio acabou, por fim, chamando minha atenção. Elas suavam, pálidas. Haviam desistido de suas sopas de gengibre. “Arde muito”, conseguiu balbuciar Aninha.


Aninha e Bianca, enfim na Ilha Grande, numa parada antes de pegarmos uma trilha

Compadecido e um tanto contrariado, troquei minha deliciosa entrada pela sopa das meninas. Era um prato leitoso, aparentemente inofensivo. Investi com fé, enquanto Ana e Bianca se deleitavam nas massinhas de peixe. A sopa era deliciosa, mas lá pela terceira colherada, a coisa bateu e entendi imediatamente a diferença entre as pimentas que queimam, como a malagueta baiana ou a murupi amazônica, para as pimentas que ardem, como as das iguarias indianas e... tailandesas.

Não é aquela porrada de pronto. Vai aos poucos dominando com sua ardência até se tornar insuportável. Me lembrei então de um amigo indiano, que me disse que, nessas circunstâncias, deve-se ignorar a dor e seguir comendo. Foi o que fiz, mais para mostrar minha coragem cosmopolita a minhas amigas, do que para seguir o velho conselho. E aí deu-se a magia. A ardência era tanta que foi, aos poucos, anestesiando os lábios, a língua, o céu da boca, o cerebelo... o inconsciente. E, nesse ponto, com a sensibilidade no seu extremo, literalmente à flor da pele, comecei a perceber cada ingrediente, cada nuance, cada tempero daquela sopa e do jantar que seguiu.

De volta à pousada, os três conversamos sobre essa experiência e eu adormeci levado por sonhos de paixões furiosas e amores impossíveis, enfim, realizados.

2 comentários:

Unknown disse...

Cometei a sua experiência com a sopa de gengibre com a Sara. Ela teve a mesma experiência quando estava hospedada na casa de uma familia Sikh na Malásia. É necessário passar pela ardência para descobri novos sabores.

Um fato interessante sobre a pimenta (chilly in English) é que ela foi introduzido na Índia pelos portugueses que a trouxeram das Americas, provavelmente do Brasil. Antes os indianos só conheciam a pimento do reino. Contribuição tupiniquim ao curry. Globalização é coisa antiga.

ipaco disse...

Maravilha, Orlando. O Brasil é de fato muito rico em pímenta. Desde as de cheiro, como dedo-de-moça, à malagueta baiana e a muripi do Amazonas, ideal para acompanhar uma caldeirada de tucunaré ou um matrinchã ou tambaqui na brasa. Mas o curry, na minha opinião, tem essa diferença, ele vai ardendo de forma crescente e, assim, abre o paladar para os mais variados sabores. Quando você vier ao Brasil vou levar você e Sara num lugar sensacional, para comer um camarão na moranga. Abs.