Guimarães Rosa: lingaguem e enredoAmigos, adicionei na lista de
links ao lado um acesso ao site do jornal literário
Rascunho. É um jornal excelente, que tem também uma versão
online. Estava lendo uma das edições mais recentes, onde há uma longa entrevista com
Alberto Mussa, a quem conheci pessoalmente de forma muito breve, certa vez, no lançamento de um romance de
Antônio Torres. Fui apresentado a ele por
Marcelo Moutinho, mas conversamos pouco. Desde então acompanho com interesse sua trajetória e tenho alguns de seus livros. É um escritor brilhante.
Mas sua entrevista, confesso, me surpreendeu um pouco pelas opiniões ousadas, e, por outro lado, compreensíveis, sendo
Mussa da geração que é. Duas coisas me chamaram a atenção: a apenas discreta admiração por
Guimarães Rosa e até mesmo um certo desprezo por sua produção final. Justificava ele sua posição defendendo o uso de uma linguagem pelo autor em que se sinta confortável e, mais do que isso, verdadeiro. Em outras palavras, para contar histórias, não é necessário, diz ele, inventar uma linguagem.
Ele diz que, tendo estudado literatura nos anos 1980, com forte influência do estruturalismo, os escritores estavam confrontados com coisas como semiótica e o escambau. Não se esperava uma boa história, mas sim uma linguagem nova, à exemplo, inclusive, do fizeram alguns como o próprio
Guimarães Rosa, que não apenas colocou no discurso a cognição do caboclo e do vaqueiro do interior do Brasil, mas também inventou, ele próprio, um vocabulário seu, para além daquele do sertão, fruto de suas pesquisas inclusive com outros idiomas.
Mussa não menciona em sua crítica, mas eu acrescentaria as vanguardas literárias, como o concretismo (que chegou a decretar o fim do poema), o poema processo e por aí vai. Ou seja, se não houvesse um experimentalismo formal, a obra não valia a pena, por melhor e mais interessante que fosse o enredo.
Mussa defende um equilíbrio, em que se dê vez à história, ao enredo, ao
plot. Eu também defendo o equilíbrio, mas acho que se, naquele então, havia uma distorção pró linguagem e contra o enredo, hoje, a coisa se inverteu, a ponto de não se tolerar mais qualquer extravagância de linguagem. Um bom romance é apenas uma boa história e seu dever é se limitar a entreter. Uma linguagem que vá além do cotidiano só atrapalharia esse projeto. Em outros termos, a linguagem hoje deve ser invisível, desaparecer, para que a história apareça na sua plenitude dominadora. Isso me lembra demais as normas da redação jornalística, em que se jogam fora adjetivos e outros recursos semânticos para dar voz aos "fatos" puros, substantivos.
Ou seja, do jeito que a coisa está hoje,
Guimarães Rosa e
Clarice Lispector, para citar dois que bricaram com a linguagem, teriam dificuldades de colocar nas patrateleiras das livrarias obras como
Grande Sertão: Veredas e
Sagarana, de um lado, e
A paixão segundo G H e
Água Viva, de outro. Para trazer mais perto:
Catatau, de
Paulo Leminski, enfrentaria a mesma dificuldade.
Cada vez mais, acho que devemos ser indulgentes e mesmo navegar alguns quilômetros contra a maré de nossos instintos e gostos. Sempre descobrimos coisas novas e interessantes, inclusive coisas que vêm a reforçar nossas posições.
Em outra parte da entrevista ao
Rascunho,
Mussa faz uma critica sociológica à
Macunaíma e, por extensão, a
Mário de Andrade e ao modernismo de 22. Ele reforça o caráter preconceituoso do autor ao ressaltar características sociais negativas atribuídas ao índio e ao negro, como preguiça, mau-caratismo, feiura, entre outras. Achei a crítica injusta, pois trata a literatura de
Mário pelo viés sociológico (ou meramente jornalístico) e não literário propriamente dito. Ora, sendo o
Mário, como
Rosa,
Lispector e
Leminski, um inventor de linguagem,
Mussa poderia ter seguido por aí, que estaria construindo uma posição mais pertinente do que discordar da posição social do escritor, que inclusive foi contra as normas então estabelecidas.
Isso me lembrou um
post no
blog do
Luciano Trigo, anunciando o debate que haverá na
Flip sobre
Gilberto Freyre, com o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso como mediador ou participante da mesa, não me lembro bem.
Trigo afirma no
blog que não deixa de ser curioso que
FHC participe dessa homenagem a
Freyre, tendo ele escrito um livro, que desce o pau no trabalho do sociólogo pernambucano. Me lembro que comentei que qualquer análise sobre
Freyre deve dar o desconto histórico e das circunstância da formação intelectual do autor de
Casa Grande e Senzala. Dizia que, feito esse desconto, a obra de
Freyre, cuja influência intelctual mais visível é a do antropólogo
Franz Boas, mostra um vigor original muito superior à obra de
FHC, muito vinculada à linhagem
USPiana e sua interpretação do marxismo.
Acho que
Mário merece a mesma cortesia. Retirados os filtros, digamos,
cronocêntricos (que julgam o passado com os valores e representações atuais), que pregam uma posição politicamente correta no que se refere a preconceitos de ordem racial, social, étnica, religiosa e o escambau,
Macunaíma ainda é um obra de vigor literário profundo. Ou não? Os caminhos que abriu por sua ousadia literária, por sua originalidade visceral. Ou não? E mesmo sua proposta, digamos, sociológica, de interpretação do Brasil das três raças e da valorização da malandragem e outras inversões de estigmas tem a ver com o que o modernismo pregava em geral naquele momento: ir contra o estabelecido.
Não que
Mussa não reconheça isso. Ele mesmo admite que, tendo tido uma experiência pessoal profunda na umbanda e no candomblé, a forma como a religião foi pintada por
Mário o perturba a ponto de não gostar da obra. Mas aí é outra questão.