Mal tinha baixado o post anterior sobre este enclave de Botafogo, delimitado pelas ruas da Passagem, General Polidoro e Álvaro Ramos (clique aqui) e, ao sair do prédio onde moro, na Passagem, esbarro com jovens tremulando bandeiras coloridas e vendedores distribuindo panfletos do condomínio que será erguido à rua Arnaldo Quintela, onde funcionava o prédio da Oi, quase em frente ao bar Vol au Vent. O marketing do panfleto não deixa dúvida sobre o tipo de sonho imobiliário que o empreendimento, chamado Opera de Milano Residenza, está vendendo: “chegou o 3 e 4 quartos que vai deixar Botafogo muito mais elegante e sofisticado”.
É um projeto da João Fortes Engenharia que está sendo comercializado pela Patrimóvel, com imóveis entre 89m2 e 119m2, cujo valor inicial do metro quadrado é de R$ 7.400, ou seja, estamos falando de mais de R$ 650 mil por um apartamento de três quartos, preço impensável há um ano. Mas, segundo a vendedora com quem falei à porta da obra, trata-se de uma pechincha, pois um empreendimento rival na esquina (Solar alguma coisa) está pedindo mais de R$ 8 mil pelo metro quadrado. Nessa realidade de preço, chego à conclusão que o valor de R$ 1,5 milhão proposto ao dono do Vol au Vent não é nada. Como as novas construções do bairro, o condomínio oferece salão de jogos, churrasqueira com forno de pizza, área de repouso com SPA, sala de brinquedos para crianças, sauna a vapor e uma imensa piscina. Elementos que, segundo a ideologia que movimenta tudo isso, vai melhorar e sofisticar o bairro.

O que temos aí, portanto, é o choque de mentalidades diferentes que se digladiam em torno do território, esbarrando-se nas esquinas. E o que tenho visto em Botafogo, simplificando perigosamente o raciocínio, são visões de mundo que valorizam, de um lado, uma idéia de “autenticidade”, presente nos moradores mais antigos, e, de outro, uma noção de “exclusividade” e “sofisticação”, presente no marketing de imobiliárias e construtoras direcionado a um consumidor de renda mais generosa.
Evidentemente, estou simplificando as coisas ao colocá-las nesses pólos. Na verdade, é tudo muito mais complexo, inclusive se formos considerar aspectos de preconceito e discriminação social, políticas de reforma urbana, forças políticas de variadas tendências que disputam o espaço público e os territórios da cidade, o problema das ocupações, favelização, remoções etc e tal. Mas ao conversar com esses moradores, novos e antigos, do bairro, percebe-se o encontro e o desencontro de noções do mundo distintas no que se refere a habitar e a conviver: enquanto uns valorizam uma idéia de “autenticidade”, outros pensam em “exclusividade”.
Sem querer ser exageradamente esquemático e fetichista, vejo que nessas conversas está, de um lado, o habitante que busca conforto, status e segurança num condomínio exclusivo (e, se é exclusivo, é diferente do convencional e, portanto, isolado, distante e distinto); e de outro, o morador antigo, que se vê como representante “legítimo” e “autêntico” dos valores culturais do bairro, que participa de sua vida, instituições, festividades e boemia (e, portanto, se sente integrado).
Pode ser a roda de samba espontânea no Bar da Adelina, puxada por Seu Vavá, ou a procissão de Santa Cecília, padroeira de Botafogo, ou ainda o Bloco do Barbas no carnaval, ou simplesmente o comércio de rua. São valores que o morador mais antigo vê, de modo geral, ameaçados ou pelo menos não compartilhados por esse novo vizinho, mais rico e distante, física e socialmente, dele.
Alguns conflitos evidenciam esse distanciamento. Um condomínio erguido há dois ou três anos na rua Fernandes Guimarães, por exemplo, trouxe moradores que destoam dos vizinhos das vilas e velhos prédios da rua. O samba que ocorria no bar Sabor da Morena foi um dos pontos iniciais de conflito. Algumas reclamações no disque-ruído e o bar acabou autuado pela prefeitura. Por outro lado, no playground do novo prédio, quase que todos os sábados ocorrem festas de aniversário de crianças, com palhaços e música da Xuxa em alto volume, o que, por sua vez, incomoda os moradores da vila ao lado. A diferença é que estes não usam ou não conhecem o recurso de reclamar com o disque-ruído.
Lembro-me sempre da pesquisa de um amigo antropólogo da UFF sobre o ruído. Ele pesquisou as reclamações do disque-ruído, chegando à conclusão que o problema não era o ruído físico em si, o volume de decibéis propriamente dito, mas sim “quem” produzia o barulho. As reclamações eram todas adjetivadas: “uma macumba infernal”, “um samba de malandros”, “um funk de bandidos”, “um culto pentecostal” e assim por diante. Dependendo de quem fazia o barulho, o delito era mais ou menos tolerável. Talvez, se na Morena, em vez samba, rolasse um jazz...
De qualquer modo, esses conflitos entre vizinhos têm um lado bom Significa que ainda há diversidade no bairro. Isto é, que diferentes tipos de noções de cidadania, de usos dos espaços públicos e de civilidades convivem e às vezes se chocam. A convivência de diferenças é que torna um lugar vivo. Basta ver o exemplo do Greenwich Village, em Nova York, tão bem retratado por Jane Jacobs, no livro Morte e vida de grandes cidades. O Village foi um bairro interessante, dinâmico, abrigando gente rica e operários, músicos, artistas e escritores e comerciantes, negros e latinos, entre outros grupos sociais. Foram os conflitos dessa convivência rica que marcaram a dinâmica do bairro. Com tantas diferenças, o espaço público acabou preservado como o espaço de todos (aqui, se tem, por exemplo, o carro que estaciona ocupando toda a calçada, ou o condomínio que privatiza a rua com cancelas e segurança)
Quando o aburguesamento — ou gentrification, como preferem os britânicos e americanos — tomou conta do Village, os moradores antigos, sem condições de arcar com o novo custo de vida estratosférico, se deslocaram para outras áreas de Nova York, como o Brooklyn, e o Village virou um lugar caro e sem a vida interessante que tinha antes. Mais um arremedo estiloso e marqueteiro do que fora dos anos 20 aos 80. Um pouco como o Leblon dos anos 60-70.
Botafogo tem uma vocação para ser um bairro dinâmico. Cinemas, bares, comércio de rua (e shoppings também) em uma região que faz a ligação entre o Centro e a Zona Sul do Rio. E, ao mesmo tempo, é um bairro de tradição, na boemia, no samba, na vida comunitária (veja a luta dos moradores para criar a Praça Mauro Duarte, que teria virado outro espigão, não fosse a mobilização de vizinhos). Botafogo ainda mantém boa parte do casario antigo, das vilas, dos prédios baixos e uma dinâmica quase interiorana em alguns trechos, como no enclave Passagem-Polidoro-Álvaro Ramos. Mas a velocidade com que novos empreendimentos vêm tomando conta do lugar ameaça esse equilíbrio dinâmico, sustentável e saudável.
Como diz meu amigo Jason Vogel: "Visitem Botafogo antes que acabe."