O Vol au Vent, na Arnaldo Quintela, à frente da vila. Ao lado, o terreno de uma nova obra, após a derrubada do velho casario, e ao fundo um condomínio novo ainda em obras: um retrato do bairro
Como muitos pés-sujos da cidade, o Vol au Vent, apesar do nome chic, é um botequim simples, montado numa casa de rua, à entrada de uma vila na rua Arnaldo Quintela em Botafogo. Trata-se de um balcão simples, de um lado, e duas ou três mesinhas, do outro. Na calçada em frente ao bar, vasos de planta delimitam o território e impedem que um desavisado qualquer estacione seu carro ali. Aos domingos, a velha guarda do bairro freqüenta a casa, em frente à qual é armada uma churrasqueira. É a turma do Bar da Adelina, que, como Deus, descansa no sétimo dia da semana e não abre seu boteco na rua vizinha Rodrigo de Brito.
Essa festa dominical, porém, está com os dias contados. A informação já corre solta entre os convivas: uma construtora ofereceu R$ 1,5 milhão ao dono do singelo botequim, para transformá-lo em pó. O resto da vila já foi vendida, asseguram os fregueses. Em seu lugar subirá mais um condomínio, dos muitos que vem transformando as feições de um dos bairros mais charmosos do Rio. Charme, diga-se de passagem, que atrai as pessoas, enobrece a área, mas que, na sofreguidão com que as construções se sucedem, vai acabar por matar essa sua característica de lugar especial.
Meu amigo, colega de Globo e vizinho no bairro, Jason Vogel, foi quem me apresentou os dois botequins. E sobretudo seus personagens, moradores antigos de Botafogo, como Adelina, Lea, Vera e Seu Vavá, entre outros. Personagens que contam a história do bairro e acompanham com preocupação as grandes modificações que vêm alterando o modo de vida desse enclave de Botafogo, delimitado pelas ruas da Passagem, General Polidoro e Álvaro Ramos. É um trecho antigo, com muitas vilas, prédios baixos sem elevador, praças, esquinas, comércio tradicional de rua e gente que se considera filhos “autênticos” do bairro, participando de suas instituições e manifestações públicas, como o bloco de carnaval, associação, entre outros.
Mas o bairro também vem sendo ocupado por outro tipo de habitante, trazido sobretudo pelas recentes construções de condomínios modernos, gradeados, com as janelas distantes da rua, e moradores com poder aquisitivo maior e hábitos de consumo distintos. Sua presença crescente modifica a chamada morfologia social do bairro. Não apenas porque cada nova edificação significa a destruição de vilas e prédios antigos, mas também porque os novos habitantes não partilham dos mesmos valores comuns. Com eles, começam a chegar também novos tipos de comércio, coiffeurs no lugar de barbeiros, cafés no lugar de botequins, bancos no lugar de oficinas mecânicas, e assim por diante.
Do mesmo modo, os preços dos produtos começam a subir à medida que os comerciantes percebem que estão lidando com um consumidor com maior poder aquisitivo. Os preços dos imóveis, valorizados numa bolha financeira que se alimenta da expansão econômica e de eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, saltam. E com eles, os dos aluguéis também, estimulados ainda pela nova lei do inquilinato. Os condomínios modernos, auto-suficientes, cobram taxas exorbitantes, mas oferecem estrutura de clube, desestimulando a presença do morador na rua. Nessa nova realidade de preços, os moradores de renda mais baixa se vêem pressionados a deixar o bairro.
Em resumo, Botafogo passa por um processo de aburguesamento, como ocorreu com o Leblon nos anos 70, com o impulso de Sergio Dourado, que transformou o bairro de área de classe média baixa em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Eu, que vivi no bairro nos anos 60, me lembro de aviários em plena rua Dias Ferreira, um tipo de comércio impensável hoje em dia. Apesar disso, o Leblon manteve a vida na calçada, graças a sua robusta boemia, consolidada desde os tempos da Bossa Nova, nos anos 50. Do contrário, seria um bairro de ruas vazias.
Não é o caso de Botafogo, onde a lógica dos novos condomínios (a cada semana empresas como a CHL erguem um novo espigão no bairro) é o de moradia defensiva. Isto é, o condomínio fornece o máximo possível de serviços e segurança (dos equipamentos aos profissionais) e estimulam o morador amedrontado a evitar o máximo possível a vida nas calçadas. Em algumas calçadas, transformadas por esse tipo de construção e sem comércio de rua, já é possível constatar o vazio, que, isto sim, torna o local ermo e perigoso.
Quando esse assunto aflora, todos parecem concordar que o processo de ocupação do bairro deveria ser feito com cuidado e não sofregamente, como ocorre hoje, estimulado por todos os motivos citados acima. Mas também há um ar de desalento e desestímulo entre os moradores que se consideram “autênticos” representantes do bairro. O poder público tampouco se manifesta, refém de grandes incorporadoras e imobiliárias que estão financiando parte da reforma urbana da cidade, através de parcerias público-privadas. E ninguém discute o tipo de bairro e cidade que se quer construir. Mais uma vez, a vida de um bairro carioca será determinada pela avalanche de novas construções, sem que se tenha um estudo de impacto, de crescimento sustentável e que preserve o patrimônio físico e simbólico de Botafogo, e que, sobretudo, considere as variadas noções de vida dos moradores.
Enquanto isso, a velha guarda aproveita aos domingos as últimas cervejas geladas do Vol au Vent, antes da chegada dos tratores.
8 comentários:
Pt, que foto magnífica. Que tragédia. Não se esqueça do teu outro publico, tá lembrado?
Não esqueci, não. Estou preparando o material para tradução: Saara e Jane Jacobs...
Mas a foto é demais, né? Diz tudo. Fiz com o celular em baixa resolução... mas deu pro gasto.
Pois é amigo, hoje na FlipAut, a Feira Literária Alternativa de Pipa, estarei como provocador de uma roda de debates com o tema "A Extinção dos Paraísos", que trata exatamente deste fenômeno aparentemente inexorável: tudo que é belo, bucólico ou histórico deve ser consumido pelo capital especulativo. Porque destruímos aquilo que amamos? Cabo Frio, Angra dos Reis, Búzios, Porto Seguro, Petrópolis, Trancoso e agora Pipa na linha de tiro. O ser humano é autofágico! Saudades dos aviários do Leblon dos anos 60, quando também eu morava lá. Parabéns pelo belo post!
Paulinho, eu bebi algumas vezes aí apenas pelo nome, na verdade tinha uma senhorita que morava em frente, que pena.
abs.
Querido Tito, saudade dos nossos esforços no Buziano contra essas forças, lembra? Eu lembro de Pipa, no início dos anos 90. Voltei lá em 99 e já não reconheci mais. Imagino como estará hoje...
forte abraço
pt
Giba, pois era um bom motivo para beber no Vol au Vent. Abração.
quero só ver o povo do condominio quando Botafogo alagar.
Pois é, Thaís... e isso tem acontecido com frequência nesse início de verão...
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